Deixar uma marca no nosso tempo como se tudo se tivesse passado, sem nada de permeio, a não ser os outros e o que se fez e se não fez no encontro com eles,
Editado por Eduardo Graça
terça-feira, janeiro 7
UMA VISITA - 25 de abril - 40 anos, 4
Fotografia de Victor Valente
Visitei hoje, pela primeira vez, em Coimbra, o Centro de Documentação 25 de Abril. Concretizei, em trabalho, uma visita adiada anos a fio. É curioso que tenha sido realizada no primeiro dia após a entrada em funções do novo Presidente da República.
Não por ele mas pelo que acabou de cessar funções. Desde há muitos anos que tenho para lá depositar um conjunto de documentos do auto extinto MES. Nada de muito importante – que não privilegio as memórias do passado, antes prefiro as do futuro – mas é uma pena que se percam alguns daqueles documentos pois são originais.
Agora que as instituições de topo do estado estão quase a ficar “limpas” de ex-MES – por via do tempo e sabe-se lá mais do quê – talvez tenha chegado a hora de esvaziar o meu pequeno e modesto saco das memórias do MES entregando-as a quem delas possa cuidar.
Gostei do que vi e senti nesta visita. Algumas coisas inéditas e comoventes. Trouxe um livro – “A Fita do Tempo da Revolução – A noite que mudou Portugal” que consiste na reprodução do manuscrito do conjunto de registos de informação das chamadas telefónicas realizadas pelas duas partes em confronto na madrugada do 25 de Abril de 74.
Assim fiquei a saber a hora exacta de um acontecimento a que assisti – quase todo – ao vivo e o qual relatei, brevemente, nalguns posts antigos que podem ser lidos aqui aqui e aqui:
05H55/ Comunicação p[ara] o Ministro
- estavam a comunicar ao Ministro q[ue] a coluna da EPC estava a passar no Cartaxo há 20 min[utos].
- passou uma coluna em Almeirim às 05.35.
- Há uma coluna não blindada na Av. Da República
(Eu ia atrás dela com o António Dias e o João Mário Anjos)(…)
- M[ensagem] para passar ao sr. Cor. Romeiras p/.
O ministro está cercado no T.[erreiro] do Paço. EPC colocou uma automet[ralhadora] na Estação de Sul e Sueste e outra na Rua do Arsenal.(Estávamos na Rua do Arsenal neste momento)(…)
06H00/Min Ex[ército]
- Romeiras já vai na 24 de Julho. Veja se pode salvar. Já estamos todos cercados.
(…)
06H14/Min[istro] cercado no Terreiro do Paço
Era o Ministro do Exército
(…)
06H21/Forças RC7 aderiram
Cmdt forças RC7 (Alf. David e Silva)
Esta era uma importante força militar que até este momento se encontrava ao lado das forças leais ao governo.
Eu pensei que esta força (temível), leal ao governo, era comandada pelo Brig. Junqueira dos Reis, mas o relato atribui o seu comando ao Alf. David e Silva, referenciando, no entanto, a presença do Brigadeiro Junqueira, aliás meu conterrâneo, tal o ministro do exército à época, Luz Cunha, somente mais tarde na fita do tempo:
07H20/ As forças in[imigas] estão a ser comandadas Brig. Reis que vai col[una] Romeiras. Vão ocupar embocaduras Terreiro [do] Paço com forças RI1.
O Brig. Junqueira dos Reis era o 2º Comandante do Governo Militar de Lisboa e comandava a força da ordem pública do GML.(Já tínhamos encetada a viagem para ajudar na tomada do nosso objectivo que era o “2º GCAM”, no Campo Grande)
Por último tinha na memória a imagem difusa de que todos estes acontecimentos se tinham passado mais cedo. Afinal era mesmo muito tarde nessa madrugada do dia mais excitante da minha vida (e do António Dias+ João Anjos que me acompanhavam).
POST EDITADO EM 10 DE MARÇO DE 2006
segunda-feira, janeiro 6
PRESIDENTES, ELIS E OS EFEITOS COLATERIAS DA DITADURA - 25 de abril - 40 anos,3
Elis Regina
Em Portugal, com respeito a Presidentes da República, excluindo a 1ª República (1910/1926), ninguém se queixa de terem sido demais. É interessante observar o sublime e recolhido regozijo dos portugueses perante a durabilidade dos mandatos presidenciais.
Descontados Gomes da Costa, que “comandou” a “revolução nacional”, em 1926, e de António de Spínola, que “comandou” a de 1974, tendo sido rapidamente descartados, Portugal contou, no exercício da função presidencial, no Estado Novo, desde 1926 a 1974, com três Presidentes da República: Óscar Fragoso Carmona, Craveiro Lopes e Américo Thomás (chefes militares respectivamente das forças de “Terra, Ar e Mar”) e, depois do 25 de Abril, com quatro: Costa Gomes, Ramalho Eanes, Mário Soares e Jorge Sampaio.
Verdadeiramente só os três últimos foram eleitos, pelo voto livre dos portugueses, preenchendo, em 2006, 30 anos de vivência democrática.
Curiosamente, desde o fim da 1ª República, até aos nossos dias, no decurso de oitenta anos (80) só dois Presidentes foram civis (Soares e Sampaio), ambos eleitos. Todos os outros foram altos chefes militares ou acabaram sendo altos chefes militares (caso de Eanes). Os seus mandatos, em média, foram longos.
Talvez se possa concluir que o progresso da Pátria não tem ganho grande coisa por estar associado ao autoritarismo que esses militares, em contextos diferentes, protagonizaram nem à durabilidade dos seus mandatos. Curioso, não é? Dá para pensar!
(A foto de Elis Regina, retirada do new york on time, nada tem a ver, aparentemente, com o assunto. É que me veio à memória uma cena que nunca mais esqueci e na qual participei. As ditaduras provocam estranhos fenómenos de cegueira, de distorção da realidade e de injustiça na apreciação do papel dos outros em cada momento. Então não é que um belo dia uma entidade ligada à ditadura se lembrou de promover um espectáculo, em Lisboa, com a Elis Regina e o Jair Rodrigues e o movimento estudantil, não sei porque carga de água, metido em brios de revolta, resolveu boicotá-lo. A Elis e o Jair não entendiam nada do que se estava a passar – via-se-lhes nos rostos espantados - mas o que é verdade é que não houve espectáculo. À Elis, lá onde se encontre, e ao Jair, pela parte que me toca, desculpem!)
POST DE 2005, SOB ETIQUETA 25 DE ABRIL
domingo, janeiro 5
LUIZ PACHECO (25 de abril - 40 anos,2)
Acabei de ler o “Diário Remendado (1971-1975)” de Luiz Pacheco, da D. Quixote. Uma diário autobiográfico, ou algo que se aproxima do género. Não se trata, certamente, de uma obra-prima mas é leitura muito interessante para aqueles que se interessam pelo percurso de alguns dos chamados escritores portugueses malditos do nosso tempo.
Ao que consta do posfácio de João Pedro George, “biógrafo improvável” de Pacheco, segundo as palavras do próprio, este texto “é um fragmento de um diário muito mais vasto”. O que supõe que outros diários possam vir a surgir no futuro.
Retenho duas curiosidades que me tocaram pessoalmente: a descrição dos acontecimentos do dia 25 de Abril de 1974, por Pacheco, que termina com estas duas frases esplêndidas: “Foi bonito e foi rápido. Já posso morrer mais descansadinho.”
Ainda a revelação de que Aldina, uma “pintora com biografia”, mulher de António José Forte, segundo Pacheco, votou no MES nas eleições para a Assembleia Constituinte de 25 de Abril de 1975. Uma boa companhia.
Veja aqui uma parte da obra de Luiz Pacheco.
CHORO POR TI EUSÉBIO
Morreu Eusébio. Um herói e um símbolo para gerações de portugueses. O futebol é um jogo coletivo mas nele avultam alguns jogadores que o tornam mágico. Eusébio era um deles e desde criança me fez sonhar e acreditar que os mais fracos sempre podem vencer os mais fortes. Deixo em sua homenagem um texto que em tempos escrevi neste blogue em homenagem ao futebol. QUE VIVA!
Uma multidão no estádio, em nossa
casa, parece-nos sempre pequena. Amigável. Conhecemos muitos rostos. Mesmo as
vozes nos são familiares. Os ditos, as recriminações, “seu isto, seu aquilo …”.
Uma multidão que incentiva os ídolos de um tempo que é o nosso é como se fosse
alguém da nossa família. Os momentos de glória exigem uma multidão que aclame os
heróis. Vista de longe a multidão é anónima. Uma massa de gente que grita,
aclama, protesta e gesticula. Vista de perto é um mundo de paixões e afectos que
se partilham com fervor. As claques podem ser uma degenerescência das multidões
que aplaudem por puro prazer apoiando os seus à vitória. O tumulto pode
substituir a festa. Mas a essência do futebol é a festa. A partilha do prazer
entre pobres, remediados e ricos; homens e mulheres; crianças, jovens e velhos,
misturados na turba que ferve na crença na vitória que, tantas vezes, se
transforma na melancolia da derrota. A multidão que se manifesta mostra a alma de
um povo que aspira a libertar-se das rotinas do trabalho e das agruras da vida.
A história das multidões, para o bem e para o mal, é uma parte da própria
história das nações, cidades, associações e famílias. O futebol é o sol que
ilumina a vida da maioria nas comunidades.
sábado, janeiro 4
Emídio Guerreiro (25 de abril - 40 anos,1)
Este é o ano do 40º aniversário do 25 de abril sobre o qual muito se falará (assim espero que seja) numa celebração de um acontecimento já longínquo daquelas que começam a ressoar a liturgia morta. É a realidade pois o tempo não perdoa. Mas a memória carece de ser avivada sempre que estiver em causa a questão da liberdade. Coloquei neste blogue a etiqueta "25 de abril" em 160 posts sendo certo que só bastante tarde comecei a utilizar etiquetas por assuntos. Vou voltar a postar diariamente, ou quase, uma seleção desses posts para lembrar o regresso à liberdade e à democracia, após 48 anos de ditadura.
Na época de todas as mortes. Emídio Guerreiro um lutador pela democracia e pela liberdade. Morreu aos 105 anos. Bem haja.
Biografia Breve - Uma vida em três séculos
Ao longo da sua longa vida, que atravessou três séculos, Emídio Guerreiro assistiu à implantação da República, viu nascer e morrer a ditadura, de que foi um dos mais destacados combatentes, atravessou duas guerras mundiais e participou na construção do regime democrático em Portugal.
Emídio Guerreiro nasceu a 6 de Setembro de 1899, em Guimarães, numa família de ideais republicanos, que acolheria como seus durante toda a vida. Frequentou a Universidade do Porto, onde cursou Matemática, depois de ter lutado como voluntário na I Guerra Mundial - o seu primeiro encontro com a conturbada história do século XX.
Em 1926, um golpe de Estado impõe a ditadura em Portugal, mas a 3 de Fevereiro do ano seguinte Emídio Guerreiro junta-se aos revoltosos que, em vão, tentaram derrubar os golpistas.Em 1928, funda no Porto a loja maçónica "A Comuna", do Grande Oriente Lusitano Unido.
Em 1932, escreve um panfleto contra o então presidente Óscar Carmona, acabando por ser detido, mas um ano depois conseguiria evadir-se, iniciando um exílio que se prolongaria por mais de 40 anos. A primeira paragem é em Espanha, onde dá aulas, mas o início da guerra civil leva-o a combater ao lado das forças republicanas.
Em 1939, com a vitória dos franquistas, fixa-se em França, passando à clandestinidade quando os nazis invadem o país, durante a II Guerra Mundial, tendo sido membro activo da resistência à ocupação alemã. Findo o conflito, Emídio Guerreiro voltou ao ensino de Matemática, desta vez na Academia de Paris.
Na capital francesa, funda em 1967, juntamente com outros exilados políticos, a LUAR, Liga Unificada de Acção Revolucionária, para combater o regime salazarista.
De regresso a Portugal, depois do 25 de Abril, foi um dos fundadores do PPD. Em 1975 foi eleito secretário-geral, tendo liderando o partido durante o período de ausência de Sá Carneiro no estrangeiro, por doença. Deputado à Assembleia Constituinte, viria a afastar-se do PPD, descontente com o rumo que o partido estava a seguir, e nos últimos anos aproximou-se do PS.
Em entrevista ao "Expresso", por ocasião do centenário do seu nascimento, Emídio Guerreiro elegeu a dignidade humana como o ideal que norteou a sua vida.
"Como não pode haver dignidade se não houver liberdade, naturalmente que eu lutei pela liberdade. Lutei contra todos os regimes prepotentes, lutei contra todas as ditaduras", afirmou.
LUSA
PELO 54º ANIVERSÁRIO DA MORTE DE ALBERT CAMUS
No dia do 54º aniversário da morte de Albert Camus (7/11/1913-4/1/1960) evoco a sua memória deixando mais um fragmento da sua escrita sobre um dos temas mais relevantes que atravessam a sua obra: justiça e liberdade.
“Antinomias políticas. Vivemos
num mundo em que é preciso escolher sermos vítimas ou carrascos – e nada mais.
Esta escolha não é fácil. Pareceu-me sempre que na realidade não há carrascos,
há apenas vítimas. No fim de contas, bem entendido. Mas é uma verdade que está
pouco espalhada.
Gosto imenso da liberdade. E para todo o intelectual, a liberdade acaba por confundir-se com a liberdade de expressão. Mas compreendo perfeitamente que esta preocupação não está em primeiro lugar para uma grande quantidade de Europeus, porque só a justiça lhes pode dar o mínimo material de que precisamos e que, com ou sem razão, sacrificariam de bom grado a liberdade a essa justiça elementar.
Sei estas coisas há muito tempo. Se me parecia necessário defender a conciliação entre a justiça e a liberdade, era porque aí residia em meu entender a última esperança do Ocidente. Mas essa conciliação apenas pode efectivar-se num certo clima que hoje é praticamente utópico. Será preciso sacrificar um ou outro destes valores? Que deveremos pensar, neste caso?”
Gosto imenso da liberdade. E para todo o intelectual, a liberdade acaba por confundir-se com a liberdade de expressão. Mas compreendo perfeitamente que esta preocupação não está em primeiro lugar para uma grande quantidade de Europeus, porque só a justiça lhes pode dar o mínimo material de que precisamos e que, com ou sem razão, sacrificariam de bom grado a liberdade a essa justiça elementar.
Sei estas coisas há muito tempo. Se me parecia necessário defender a conciliação entre a justiça e a liberdade, era porque aí residia em meu entender a última esperança do Ocidente. Mas essa conciliação apenas pode efectivar-se num certo clima que hoje é praticamente utópico. Será preciso sacrificar um ou outro destes valores? Que deveremos pensar, neste caso?”
Albert Camus, in Caderno n.º 5 (setembro 1945/abril
1948)
sexta-feira, janeiro 3
Beethoven - Symphony No. 9
Tão afastado da música! Regresso, neste início de 2014, com a Sinfonia nº 9 de Beethoven. Vou intervalar as palavras, as imagens e a música ao ritmo da minha disposição, gosto e acaso. Para todas, e todos, os meus amigos que insistem em visitar-me com os desejos de Bom Ano de 2014.
quinta-feira, janeiro 2
DIA 2
Dia 2. Como romper o ciclo vicioso? Com um acontecimento novo. Como romper o cerco? Com um novo intento, uma fuga, um salto, um movimento. Todos se olham e se interrogam mesmo julgando-se adversários ou inimigos. Não perder o equilíbrio, prezar os que nos amam, criar se nos propiciarem a oportunidade, resistir à injustiça dos homens e do mundo, reunir as forças que em nosso redor anseiam por romper a inação, não desistir de nada em que acreditemos, um pequeno gesto pode mudar uma vida, uma multidão de gestos pode mudar o mundo. Segurar com firmeza a vida e nunca abdicar de apreciar a beleza.
quarta-feira, janeiro 1
ANO NOVO
Fotografia de Hélder Gonçalves
Ainda à beira do atlântico, mar que desaba na praia longo e grosso, desfeito em espuma, com sua voz ecoando ressonâncias a descobertas, vos deixo os desejos de BOM ANO DE 2014.
Ainda à beira do atlântico, mar que desaba na praia longo e grosso, desfeito em espuma, com sua voz ecoando ressonâncias a descobertas, vos deixo os desejos de BOM ANO DE 2014.
2014
Fotografia de Hélder Gonçalves
Dia um. Ano 2014. Dia de Ano Novo, como soe dizer-se, aqui assinalo o regresso a casa. Perto do ponto mais ocidental da Europa ouço o marulhar das ondas deste mar que sempre me acompanha nesta época. Os amigos são um espaço de pertença que se confunde com a natureza que me invade. Nada a lamentar. Reconstruindo os espaços, físicos e humanos, que nos permitem ganhar energias para enfrentar os desafios da vida em todas as suas dimensões. Aí vou, 2014 para te enfrentar como se foras o ano PRIMEIRO da minha vida.
segunda-feira, dezembro 30
PORMENORES
Não sei se vale muito a pena preocuparmo-nos com pormenores, mas há pormenores que se preocupam connosco. A longevidade, noutros tempos, era um pormenor despiciendo, uma raridade em pessoa, que tendo sido levada à conta de pormenor despiciendo se transformou num pormenor tremendo. Os velhos tornaram-se um despertador que marca todas as estratégias de futuro. Muitos estudaram o fenómeno intitulado, academicamente, por "envelhecimento demográfico", a quebra da natalidade associada à explosão da longevidade. Poucos são capazes de encarar a morte de frente. Ainda menos as sociedades. Hoje numa reunião daquelas que se dedicam ao encerramento do ano, alguém não podia voltar ao conclave a 2 janeiro, por ser o dia do nascimento do seu primeiro filho. Há pormenores surpreendentes.
domingo, dezembro 29
REVOLTA
"Revolta
Finalmente, escolho a liberdade. Pois que, mesmo se a justiça não for realizada, a liberdade preserva o poder de protesto contra a injustiça e salva a comunidade.
A justiça num mundo silencioso, a justiça dos mundos destrói a cumplicidade, nega a revolta e devolve o consentimento, mas desta vez sob a mais baixa das formas. É aqui que se vê o primado que o valor da liberdade pouco a pouco recebe. Mas o difícil é nunca perder de vista que ele deve exigir ao mesmo tempo a justiça, como foi dito.
Dito isto, há também uma justiça, ainda que muito diferente, fundando o único valor constante na história dos homens que só morreram bem, quando o fizeram pela liberdade.
A liberdade é poder defender o que não penso, mesmo num regime ou num mundo que aprovo. É poder dar razão ao adversário."
Albert Camus, Caderno n.º 4 (janeiro 1942/setembro 1945)
(Mesmo perto do fim do Caderno nº 4, esta releitura, leva-me a retomar uma das citações que melhor explicita uma das preocupações dominantes em todo o pensamento e obra de Camus: a relação entre liberdade e justiça. Quando, nos nossos dias, na vida quotidiana e nos combates cívicos e políticos, se menospreza, ou subalterniza, o valor da liberdade sempre me vem à memória o primeiro parágrafo desta citação: “Finalmente, escolho a liberdade …”)
CONTINUAR (II)
No último domingo do ano de 2013, uma última palavra acerca
deste blogue em actividade desde o mês de dezembro de 2003. Dez anos é muito
tempo e nunca imaginei que este blogue pudesse durar tanto tempo. Não vale a
pena tentar explicar a permanência desta janela de comunicação com os outros. O
que para mim vale a pena, por razões e fidelidade, é dar-lhe continuidade
desafiando-me a permanecer activo, lúcido e presente em todas as batalhas que
sejam precisas travar para preservar esse precioso bem: a liberdade.
sábado, dezembro 28
ALBERT CAMUS
Ainda neste ano do centenário de Albert Camus publico uma série de sublinhados de leitura com inevitáveis repetições e algumas novidades a partir de um trabalho que preparei e que, por uma qualquer razão, não foi publicado. Mas, ao mesmo tempo, prossigo nas releituras de onde surgirão, certamente, novos posts.
Entre muitos modelos possíveis de testemunho acerca do centenário do nascimento de Albert Camus, nascido em 7/11/1913, escolho um entretecido de citações dos “Carnets”, a leitura inaugural da sua obra, pelos meus 20 anos, com breves notas. A biografia e bibliografia de Camus, pelo centenário, foram, de forma surpreendente para mim, razoavelmente divulgadas e o seu estilo de escrita, concisa, fragmentável, “excessivamente perfeita”, segundo os seus detractores, suporta a minha ousadia. As citações são retiradas da edição portuguesa dos Cadernos nº 1 (maio de 1935/setembro de 1937); nº2 (setembro de 1937/abril de 1939); nº3 (abril de 1939/fevereiro 1942); nº4 (janeiro 1942/setembro 1945) e nº 5 (setembro 1945/abril 1948) e não obedecem a ordem cronológica; as citações da edição francesa são acompanhadas pela indicação da fonte.
"O prazer que se encontra
nas relações entre homens. Aquele, subtil, que consiste em dar ou pedir lume-
uma cumplicidade, uma franco-maçonaria do cigarro."
Caderno n.º
2 (setembro de 1937/abril de 1939)
sexta-feira, dezembro 27
A PALAVRA LIVRE DE UM PAPA SEM MEDO
Fotografia de Hélder Gonçalves
É espantoso o alvoroço que vai nas hostes - da direita à esquerda - a propósito das palavras ditas, e escritas, pelo Papa Francisco. Não imagino o que se passará nos meandros da igreja de Roma, nem nos corredores dos paços Episcopais. Porventura um misto de incredulidade e medo pelo destemor das suas criticas à sociedade desigual e violenta em que vivemos, criamos e alimentamos, cada um à sua maneira, e com sua quota de responsabilidade, palavras que ressoam fundo pelos quatro cantos do mundo. Nada que já não tenha acontecido antes com outros Papas. Nada que não corresponda ao que se espera de uma voz que deve obediência a princípios que a Igreja proclama e aos quais se deve manter fiel. Na EXORTAÇÃO APOSTÓLICA - EVANGELII GAUDIUM - um texto assumidamente programático - o Papa, no fundo, nada mais faz do que assumir os princípios da doutrina social da igreja (para simplificar), apontando um caminho que permita derramar nas nossas sociedade de consumo, amplamente desesperançadas, uma nova crença no Homem, na sua obra e futuro. Como escreve Adriano Moreira num recente artigo de opinião o Estado Social, que o Papa defende, não é mais do que uma criação da confluência do ideário e da ação da doutrina social da igreja e do socialismo democrático. Não admira que uma ampla frente de lideres políticos, da esquerda à direita democráticas, de lideres de opinião de todos os quadrantes ideológicos (salvo os extremistas, seja qual for a sua extração), e milhões de mulheres e homens de boa vontade, crentes e não crentes, sintam vibrar o seu coração com as palavras e ações deste Papa. Na minha modesta opinião nada mais natural num mundo e num tempo sedento de liberdade e de justiça verdadeiras.
quinta-feira, dezembro 26
VISITAS DE NATAL
Da esquerda para a direita: o meu irmão Dimas de flor na lapela. O meu pai Dimas, vestido a rigor, de fato e gravata. Minha mãe, Tolentina, de fina camisa branca. A avó, Maria da Conceição, já doente, austera no seu vestido preto. A tia Lucília, uma beleza cinéfila, brilha à luz quente que envolve o Algarve de todas as estações. O mais pequeno, eu próprio, circunspecto, talvez, pela contrariedade do traje.
Fim da visitação de Natal. A mais comovente de todas é a visita à minha tia Lucília. Irmã mais nova de meu pai. Nascida em 1917. Os fragmentos de suas memórias sempre me surpreendem. A primeira mulher que me beijou chamada às pressas para ajudar no meu nascimento. Uma mulher linda que se desprende ao encontro dos outros. Nesta fotografia, na casa do encontro de hoje, somos os sobreviventes do grupo que mostra uma família feliz.
quarta-feira, dezembro 25
DIA DE NATAL
Dia de Natal. Chove no sul. A luz é a mesma. Quando rompe no céu nuvrado a luz do sul é diferente. O cheiro, mesmo na cidade, suspenso no ar é diferente. O ar que me rodeia o corpo é diferente. Somos uma unidade feita de terra e de gente que trazemos dentro. Toda a vida. Regresso e partida. Divisão e partilha. Memória e ação. Somos natureza. Natal.
terça-feira, dezembro 24
PAPA FRANCISCO - EXORTAÇÃO APOSTÓLICA - EVANGELII GAUDIUM
SOBRE O
ANÚNCIO DO EVANGELHO NO MUNDO
ATUAL
24 de
novembro de 2013[Os meus sublinhados da leitura deste texto programático notável do Papa Francisco o qual, às primeiras impressões, a Hierarquia da Igreja Católica procura minimizar. Pareceu-me adequado à época natalícia divulgar alguns excertos que sublinhei de uma leitura integral e atenta. O texto está disponível na sitio da Conferência Episcopal Portuguesa.]
17. Aqui escolhi propor algumas diretrizes que possam
encorajar e orientar, em toda a Igreja, uma nova etapa evangelizadora, cheia de
ardor e dinamismo. Neste quadro e com base na doutrina da Constituição
dogmática Lumen gentium, decidi, entre outros temas, de me deter amplamente
sobre as seguintes questões:
a) A reforma da Igreja em saída missionária.
b) As tentações dos agentes pastorais.
c) A Igreja vista como a totalidade do povo de Deus que
evangeliza.
d) A homilia e a sua preparação.
e) A inclusão social dos pobres.
f) A paz e o diálogo social.
g) As motivações espirituais
para o compromisso missionário.
25. Não ignoro que hoje os
documentos não suscitam o mesmo interesse que noutras épocas, acabando
rapidamente esquecidos. Apesar disso sublinho que aquilo que pretendo deixar
expresso aqui, possui um significado programático e tem consequências
importantes. Espero que todas as comunidades se esforcem por usar os meios
necessários para avançar no caminho de uma conversão pastoral e missionária,
que não pode deixar as coisas como estão. Neste momento, não nos
serve uma «simples administração» Constituamo-nos em «estado permanente de
missão”, em todas as regiões da Terra.
48.
Se a Igreja inteira assume este dinamismo missionário, há de chegar a todos,
sem exceção. Mas, a quem deveria privilegiar? Quando se lê o Evangelho,
encontramos uma orientação muito clara: não tanto aos amigos e vizinhos ricos,
mas sobretudo aos pobres e aos doentes, àqueles que muitas vezes são
desprezados e esquecidos, «àqueles que não têm com que te retribuir» (Lc
14,14). Não devem subsistir dúvidas nem explicações que debilitem esta mensagem
claríssima. Hoje e sempre, «os pobres são os destinatários
privilegiados do Evangelho», e a evangelização dirigida gratuitamente a eles é
sinal do Reino que Jesus veio trazer. Há que afirmar sem rodeios que existe um
vínculo indissolúvel entre a nossa fé e os pobres. Não os deixemos jamais
sozinhos!
52. A humanidade vive, neste momento, uma viragem histórica,
que podemos constatar nos progressos que se verificam em vários campos. São
louváveis os sucessos que contribuem para o bem-estar das pessoas, por exemplo,
no âmbito da saúde, da educação e da comunicação. Todavia não podemos
esquecer que a maior parte dos homens e mulheres do nosso tempo vive o seu dia
a dia precariamente, com funestas consequências. Aumentam algumas doenças. O
medo e o desespero apoderam-se do coração de inúmeras pessoas, mesmo nos
chamados países ricos. A alegria de viver frequentemente se desvanece; crescem
a falta de respeito e a violência, a desigualdade social torna-se cada vez mais
patente. É preciso lutar para viver, e muitas vezes viver com pouca
dignidade. Esta mudança de época foi causada pelos enormes saltos qualitativos,
quantitativos, velozes e acumulados que se verificam no progresso científico,
nas inovações tecnológicas e nas suas rápidas aplicações em diversos âmbitos da
natureza e da vida. Estamos na era do conhecimento e da informação, fonte de
novas formas de um poder muitas vezes anónimo.
Não a uma economia da exclusão
53. Assim como o mandamento «não matar» põe um
limite claro para assegurar o valor da vida humana, assim também hoje devemos
dizer «não a uma economia da exclusão e da desigualdade social». Esta economia
mata. Não é possível que a morte por enregelamento dum idoso sem abrigo
não seja notícia, enquanto o é a descida de dois pontos na Bolsa. Isto é
exclusão. Não se pode tolerar mais o facto de se lançar comida no lixo, quando
há pessoas que passam fome. Isto é desigualdade social. Hoje, tudo entra no
jogo da competitividade e da lei do mais forte, onde o poderoso engole o mais
fraco. Em consequência desta situação, grandes massas da população veem-se
excluídas e marginalizadas: sem trabalho, sem perspetivas, num beco sem saída.
O ser humano é considerado, em si mesmo, como um bem de consumo que se pode
usar e depois lançar fora. Assim teve início a cultura do «descartável», que
aliás chega a ser promovida. Já não se trata simplesmente do fenómeno de
exploração e opressão, mas de uma realidade nova: com a exclusão, fere-se, na
própria raiz, a pertença à sociedade onde se vive, pois quem vive nas favelas,
na periferia ou sem poder já não está nela, mas fora. Os excluídos não são
«explorados», mas resíduos, «sobras».
54. Neste contexto, alguns defendem ainda as
teorias da «recaída favorável» que pressupõem que todo o crescimento económico,
favorecido pelo livre mercado, consegue por si mesmo produzir maior equidade e
inclusão social no mundo.
Esta opinião, que nunca foi confirmada pelos factos, exprime uma
confiança vaga e ingénua na bondade daqueles que detêm o poder económico e nos
mecanismos sacralizados do sistema económico reinante. Entretanto, os excluídos
continuam a esperar. Para se poder apoiar um estilo de vida que exclui os
outros ou mesmo entusiasmar-se com este ideal egoísta, desenvolveu-se uma
globalização da indiferença. Quase sem nos dar conta, tornamo-nos incapazes de nos compadecer
ao ouvir os clamores alheios, já não choramos à vista do drama dos outros, nem
nos interessamos por cuidar deles, como se tudo fosse uma responsabilidade de
outrem, que não nos incumbe. A cultura do bem-estar anestesia-nos, a ponto de
perdermos a serenidade se o mercado oferece algo que ainda não comprámos,
enquanto todas estas vidas ceifadas por falta de possibilidades nos parecem um
mero espetáculo que não nos incomoda de forma alguma.
Não à nova idolatria do dinheiro
55. Uma das causas desta situação está na relação
estabelecida com o dinheiro, porque aceitamos pacificamente o seu domínio sobre
nós e sobre as nossas sociedades. A crise financeira que atravessamos faz-nos
esquecer que, na sua origem, há uma crise antropológica profunda: a negação da
primazia do ser humano. Criámos novos ídolos. A adoração do antigo
bezerro de ouro (cf. Ex 32,1-35) encontrou uma nova e cruel versão no
fetichismo do dinheiro e na ditadura de uma economia sem rosto e sem um
objetivo verdadeiramente humano. A crise mundial, que acomete as
finanças e a economia, põe a descoberto os seus próprios desequilíbrios e
sobretudo a grave carência de uma orientação antropológica que reduz o ser
humano apenas a uma das suas necessidades: o consumo.
56. Enquanto os lucros de poucos crescem exponencialmente,
os da maioria situam-se cada vez mais longe do bem-estar daquela minoria feliz.
Tal desequilíbrio provém de ideologias que defendem a autonomia absoluta
dos mercados e a especulação financeira. Por isso, negam o direito de controlo
dos Estados, encarregados de velar pela tutela do bem comum. Instaura-se uma
nova tirania invisível, às vezes virtual, que impõe, de forma unilateral e
implacável, as suas leis e as suas regras. Além disso, a dívida e os respetivos juros afastam os
países das possibilidades viáveis da sua economia, e os cidadãos do seu real
poder de compra. A tudo isto vem juntar-se uma corrupção ramificada e uma
evasão fiscal egoísta, que assumiram dimensões mundiais. A ambição do poder e
do ter não conhece limites. Neste sistema que tende a devorar tudo para
aumentar os benefícios, qualquer realidade que seja frágil, como o meio
ambiente, fica indefesa perante aos interesses do mercado divinizado,
transformados em regra absoluta.
58. Uma reforma financeira que tivesse em conta a ética exigiria uma vigorosa mudança de atitudes por parte dos dirigentes políticos, a quem exorto a enfrentarem este desafio com determinação e clarividência, sem esquecer naturalmente a especificidade de cada contexto. O dinheiro deve servir, e não governar! O Papa ama a todos, ricos e pobres, mas tem a obrigação, em nome de Cristo, de lembrar que os ricos devem ajudar os pobres, respeitá-los e promovê-los. Exorto-vos a uma solidariedade desinteressada e a um regresso da economia e das finanças a uma ética propícia ao ser humano.
182. Os ensinamentos da Igreja acerca de
situações contingentes estão sujeitos a maiores ou novos desenvolvimentos e
podem ser objeto de discussão, mas não podemos evitar de ser concretos – sem
pretender entrar em detalhes – para que os grandes princípios sociais não se
fiquem em meras generalidades que não interpelam ninguém. É preciso tirar as
suas consequências práticas, para que «possam incidir com eficácia também nas
complexas situações hodiernas». Os Pastores, acolhendo as contribuições
das diversas ciências, têm o direito de exprimir opiniões sobre tudo aquilo que
diz respeito à vida das pessoas, dado que a tarefa da evangelização implica e exige uma promoção
integral de cada ser humano. Já não se pode afirmar que a religião se deve
limitar ao âmbito privado e serve apenas para preparar as almas para o Céu.
Sabemos que Deus deseja a felicidade dos seus filhos também nesta Terra, embora
estejam chamados à plenitude eterna, porque Ele criou todas as coisas «para
nosso usufruto» (1Tm 6,17), para que todos possam usufruir delas. Por isso, a
conversão cristã exige rever, «especialmente, tudo o que diz respeito à ordem
social e consecução do bem comum».
183. Por conseguinte, ninguém pode exigir-nos
que releguemos a religião para a intimidade secreta das pessoas, sem qualquer
influência na vida social e nacional, sem nos preocuparmos com a saúde das
instituições da sociedade civil, sem nos pronunciarmos sobre os acontecimentos
que interessam aos cidadãos. Quem ousaria encerrar num templo e
silenciar a mensagem de São Francisco de Assis e da Beata Teresa de Calcutá?
Eles não o poderiam aceitar. Uma fé autêntica – que nunca é cómoda nem
individualista – comporta sempre um profundo desejo de mudar o mundo,
transmitir valores, deixar a terra um pouco melhor depois da nossa passagem por
ela. Amamos este magnífico planeta, onde Deus nos colocou, e amamos a
humanidade que o habita, com todos os seus dramas e cansaços, com os seus
anseios e esperanças, com os seus valores e fragilidades. A Terra é a nossa
casa comum, e todos somos irmãos. Embora «a justa ordem da sociedade e do
Estado seja dever central da política», a Igreja «não pode nem deve ficar à
margem na luta pela justiça». Todos os cristãos, incluindo os Pastores, são
chamados a preocupar-se com a construção dum mundo melhor. É disto mesmo que se
trata, pois o pensamento social da Igreja é primariamente positivo e construtivo,
orienta uma ação transformadora e, neste sentido, não deixa de ser um sinal de
esperança que brota do coração amoroso de Jesus Cristo. Ao mesmo tempo, «une o
próprio empenho ao esforço em campo social das demais Igrejas e Comunidades
eclesiais, tanto na reflexão doutrinal como na prática».
185. Em seguida, procurarei
concentrar-me sobre duas grandes questões que me parecem fundamentais,
neste momento da história. Desenvolvê-las-ei com uma certa amplitude, porque considero que
irão determinar o futuro da humanidade. A primeira é a inclusão
social dos pobres; e a segunda, a questão da paz e do diálogo social.
2. A inclusão social dos pobres188 (…)
Embora um pouco desgastada e, por vezes, até mal
interpretada, a palavra «solidariedade» significa muito mais do que alguns atos
esporádicos de generosidade; supõe a criação de uma nova mentalidade que pense
em termos de comunidade, de prioridade da vida de todos sobre a apropriação dos
bens por parte de alguns.
189. A solidariedade é uma reação espontânea de quem reconhece a função social da propriedade e o destino universal dos bens como realidades anteriores à propriedade privada. A posse privada dos bens justifica-se para cuidar deles e aumentá-los de modo a servirem melhor o bem comum, pelo que a solidariedade deve ser vivida como a decisão de devolver ao pobre o que lhe corresponde. Estas convicções e práticas de solidariedade, quando encarnam, abrem caminho a outras transformações estruturais e tornam-nas possíveis. Uma mudança nas estruturas, sem se gerar novas convicções e atitudes, fará com que essas mesmas estruturas, mais cedo ou mais tarde, se tornem corruptas, pesadas e ineficazes.
190. Às vezes trata-se de ouvir o clamor de povos inteiros,
dos povos mais pobres da Terra, porque «a paz funda-se não só no respeito pelos
direitos do homem, mas também no respeito pelo direito dos povos».
Lamentavelmente, até os direitos humanos podem ser usados como justificação
para uma defesa exacerbada dos direitos individuais ou dos direitos dos povos
mais ricos. Respeitando a independência e a cultura de cada nação, é preciso
recordar-se sempre de que o Planeta é de toda a humanidade e para toda a
humanidade, e que o simples facto de ter nascido num lugar com menores recursos
ou menor desenvolvimento não justifica que algumas pessoas vivam menos
dignamente. É preciso repetir que «os mais favorecidos devem renunciar a alguns
dos seus direitos, para poderem colocar, com mais liberalidade, os seus bens ao
serviço dos outros». Para falarmos adequadamente dos nossos direitos, é
preciso alongar mais o olhar e abrir os ouvidos ao clamor dos outros povos ou
de outras regiões do próprio país. Precisamos de crescer numa solidariedade que
«permita a todos os povos tornarem-se artífices do seu destino», tal como «cada
homem é chamado a desenvolver-se».
196. Às vezes, somos duros de coração e de mente,
esquecemo-nos, entretemo-nos, extasiamo-nos com as imensas possibilidades de
consumo e de distração que esta sociedade oferece. Gera-se assim uma espécie de
alienação que nos afeta a todos, pois «alienada é a sociedade que, nas suas
formas de organização social, de produção e de consumo, torna mais difícil a
realização deste dom e a constituição dessa solidariedade inter-humana».
202. A necessidade de resolver as causas estruturais da
pobreza não pode esperar; e não apenas por uma exigência pragmática de obter
resultados e ordenar a sociedade, mas também para a curar de uma mazela que a
torna frágil e indigna e que só poderá levá-la a novas crises. Os planos de
assistência, que acorrem a determinadas emergências, deveriam considerar-se
apenas como respostas provisórias. Enquanto não forem radicalmente
solucionados os problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos
mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da
desigualdade social, não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo,
problema algum. A desigualdade é a raiz dos males sociais.
205. Peço a Deus que cresça o número de políticos capazes de
entrar num autêntico diálogo que vise efetivamente sanar as raízes profundas e
não a aparência dos males do nosso mundo. A política, tão denegrida, é uma
sublime vocação, é uma das formas mais preciosas da caridade, porque busca o
bem comum. Temos de nos convencer de que a caridade «é o princípio não só das
microrrelações estabelecidas entre amigos, na família, no pequeno grupo, mas
também das macrorrelações como relacionamentos sociais, económicos, políticos».
Rezo ao Senhor para que nos conceda mais políticos, que tenham
verdadeiramente a peito a sociedade, o povo, a vida dos pobres. É indispensável
que os governantes e o poder financeiro levantem o olhar e alarguem as suas
perspetivas, procurando que haja trabalho digno, instrução e cuidados de saúde
para todos os cidadãos. E porque não recorrerem a Deus pedindo-lhe que inspire
os seus planos? Estou convencido de que, a partir de uma abertura à
transcendência, poder-se-ia formar uma nova mentalidade política e económica
que ajudaria a superar a dicotomia absoluta entre a economia e o bem comum
social.
221. Para avançar nesta construção de um povo em
paz, justiça e fraternidade, há quatro princípios relacionados com tensões
bipolares próprias de toda a realidade social. Derivam dos grandes
postulados da Doutrina Social da Igreja, que constituem o «primeiro e
fundamental parâmetro de referência para a interpretação e o exame dos
fenómenos sociais». À luz deles, desejo agora propor estes quatro princípios
que orientam especificamente o desenvolvimento da convivência social e a
construção de um povo onde as diferenças se harmonizam dentro de um projeto
comum. Faço-o na convicção de que a sua aplicação pode ser um verdadeiro
caminho para a paz dentro de cada nação e no mundo inteiro.
O tempo é superior ao espaço
222. Existe uma tensão bipolar entre a plenitude e o limite.
A plenitude gera a vontade de possuir tudo, e o limite é o muro que nos aparece
pela frente. O «tempo», considerado em sentido amplo, faz referimento à
plenitude como expressão do horizonte que se abre diante de nós, e o momento é
expressão do limite que se vive num espaço circunscrito. Os
cidadãos vivem em tensão entre a conjuntura do momento e a luz do tempo, do
horizonte maior, da utopia que nos abre ao futuro como causa final que atrai.
Daqui surge um primeiro princípio para progredir na construção de um povo: o
tempo é superior ao espaço.
A unidade prevalece sobre o conflito
226. O conflito não pode ser ignorado ou dissimulado;
deve ser aceite. Mas se ficamos encurralados nele, perdemos a
perspetiva, os horizontes reduzem-se e a própria realidade fica fragmentada.
Quando paramos na conjuntura conflitual, perdemos o sentido da unidade profunda
da realidade.
227. Perante o conflito, alguns limitam-se a olhá-lo e
passam adiante como se nada fosse, lavam as mãos para poder continuar com a sua
vida. Outros entram de tal maneira no conflito que ficam prisioneiros, perdem o
horizonte, projetam nas instituições as suas próprias confusões e insatisfações
e, assim, a unidade torna-se impossível. Mas há uma terceira forma,
a mais adequada, de enfrentar o conflito: é aceitar suportar o conflito,
resolvê-lo e transformá-lo no elo de ligação de um novo processo. «Felizes os pacificadores».
228. Deste modo, torna-se possível desenvolver uma
comunhão nas diferenças, que pode ser facilitada só por pessoas
magnânimas que têm a coragem de ultrapassar a superfície conflitual e
consideram os outros na sua dignidade mais profunda. Por isso, é necessário
postular um princípio que é indispensável para construir a amizade social:
a unidade é superior ao conflito. A solidariedade, entendida no seu
sentido mais profundo e desafiador, torna-se assim um estilo de construção da
história, um âmbito vital onde os conflitos, as tensões e os opostos podem
alcançar uma unidade multifacetada que gera nova vida. Não é apostar no sincretismo
ou na absorção de um no outro, mas na resolução num plano superior que conserva
em si as preciosas potencialidades das polaridades em contraste.
A realidade é mais importante do que a ideia
231. Existe também uma tensão bipolar entre a ideia e a
realidade: a realidade simplesmente é, a ideia elabora-se. Entre as duas, deve
estabelecer-se um diálogo constante, evitando que a ideia acabe por separar-se
da realidade. É perigoso viver no reino só da palavra, da imagem, do
sofisma. Por isso, há que postular um terceiro princípio: a realidade é
superior à ideia. Isto supõe evitar várias formas de ocultar a
realidade: os purismos angélicos, os totalitarismos do relativo, os
nominalismos declaracionistas, os projetos mais formais que reais, os
fundamentalismos anti-históricos, os éticos sem bondade, os intelectualismos
sem sabedoria.
232. A ideia – as elaborações conceituais – está ao serviço
da captação, compreensão e condução da realidade. A ideia desligada da
realidade dá origem a idealismos e nominalismos ineficazes que, no máximo,
classificam ou definem, mas não empenham. O que empenha é a realidade iluminada
pelo raciocínio. É preciso passar do nominalismo formal à objetividade
harmoniosa. Caso contrário, manipula-se a verdade, do mesmo modo que se
substitui a ginástica pela cosmética185. Há políticos – e também
líderes religiosos – que se interrogam por que motivo o povo não os compreende
nem segue, se as suas propostas são tão lógicas e claras. Possivelmente é
porque se instalaram no reino das puras ideias e reduziram a política ou a fé à
retórica; outros esqueceram a simplicidade e importaram de fora uma
racionalidade alheia às pessoas.
234. Entre a globalização e a localização também
se gera uma tensão. É preciso prestar atenção à dimensão global para não cair
numa mesquinha quotidianidade. Ao mesmo tempo convém não perder de vista o que
é local, que nos faz caminhar com os pés na terra. As duas coisas unidas
impedem de cair em algum destes dois extremos: o primeiro, que os cidadãos
vivam num universalismo abstrato e globalizante, miméticos passageiros do carro
de apoio, admirando os fogos de artifício do mundo, que é de outros, com a boca
aberta e aplausos programados; o outro extremo é que se transformem num museu
folclórico de eremitas locais, condenados a repetir sempre as mesmas coisas,
incapazes de se deixar interpelar pelo que é diverso e de apreciar a beleza que
Deus espalha fora das suas fronteiras.
240. O cuidado e a promoção do bem comum da sociedade
compete ao Estado. Este, com base nos princípios de subsidiariedade e
solidariedade e com um grande esforço de diálogo político e criação de
consensos, desempenha um papel fundamental – que não pode ser delegado – na
busca do desenvolvimento integral de todos. Este papel exige, nas
circunstâncias atuais, uma profunda humildade social.
segunda-feira, dezembro 23
ÂNCORAS
Chove em Lisboa. Antevéspera de Natal. Regresso à terra como sempre acontece todos os anos por estes dias. Encontros marcados sem palavras prévias no espaço de todas as pertenças. Os lugares e as gentes. As âncoras que me prendem à vida e me fazem respirar resistindo às adversidades. Nada a temer, tudo a ganhar. Como sempre. Natal!
domingo, dezembro 22
LEIS
Escrevendo na folha branca numa manhã de domingo - dia seguinte ao solstício de inverno. Sucedem-se os desastres à beira mar - pelo menos dois com o mesmo número de vitimas - (7) - e o mesmo número de sobreviventes (1). Em qualquer dos casos não ouvi falar na consabida "abertura de inquérito" o que, certamente, aconteceu pois é o que decorre da lei. No caso dos pequenos barcos que adornam e viram sob a força da "agitação marítima" (notável expressão!), não ouvi falar, desta vez, da falta de utilização de coletes pelos marinheiros (sejam profissionais ou amadores) o que é obrigatório por lei. Hoje que tanto se fala de leis, e das consequências da sua aplicação, ao mais alto nível do Estado, fala-se pouco das consequências fatais da sua não observância ao nível da sociedade. Uma questão de cultura. Natal!
sábado, dezembro 21
SOLSTÍCIO
Solstício de Inverno, hoje, dentro de minutos, o dia mais pequeno do ano, na marcha dos dias. Está em curso o processo de compras - as prendas possíveis e algumas das desejadas. Editei um livro artesanal como acontece de quando em vez - edição restrita de 50 exemplares. (na pequena nota biográfica publicada neste blogue pode saber-se do seu título!) Quase só para a família e alguns amigos. O melhor que posso ofertar aos outros que amo e estimo de mim próprio. Como sempre acontece arrisco ser injusto na distribuição mas ninguém é perfeito. Natal!
sexta-feira, dezembro 20
NATAL
Volto à página branca como se fora um caderno de apontamentos. Agora o Natal com seu cortejo de atos e memórias. Na minha primeira idade a chaminé oferecia-me uma sombrinha de chocolate. Imensa alegria no reluzente brilho único da prata colorida. Não tenho medo da redução do consumo a que as sociedades foram conduzidas pela avidez do capital financeiro. Por isso não se admirem os meus amigos pela sedução que sobre mim exercem as palavras do Papa Francisco. Tudo tem a sua conta e medida, nada podendo justificar a sacralização, ou banalização, da miséria e o silencioso, mas brutal, aumento das desigualdades. Não é uma questão de perfilhar uma posição ideológica ou defender uma barricada politica, mas simplesmente, a de não sacrificar, em qualquer circunstância, a defesa de princípios basilares em que assenta a dignidade humana: liberdade, igualdade, fraternidade. Ou se quiserem, como digo vezes sem conta no meu mister de todos os dias: cooperação e solidariedade! Natal!
CONTINUAR
Escrevo na tela branca como mais gosto no primeiro dia do 11º ano de existência deste blogue. Ainda não é desta vez que me resigno ao apagamento e ao silêncio. Por via deste canal de comunicação dirijo-me aos amigos que me acompanham e que, por essa forma, teimam em querer saber de mim. O fascínio desta empresa artesanal tem tudo a ver com o exercício da liberdade. A minha agenda circunscreve-se a esse desejo incontrolável de manter aberta uma janela quase intima através da qual, de forma libérrima, me pronuncio e comunico com os outros e o mundo, sem querer saber da dimensão dele. Vamos pois continuar! Obrigado!
quinta-feira, dezembro 19
10 ANOS
Fotografia de Hélder Gonçalves
Deixar uma marca
Deixar uma marca no nosso tempo como se tudo
se tivesse passado, sem nada de permeio, a não ser os outros e o que se fez e se
não fez no encontro com eles,
nada dever ao esquecimento que esvazia o sentido do perdão olhando o mundo e tomando a medida exacta da nossa pequenez,
atravessar a solidão, esse luxo dos ricos, como dizia Camus, usufruindo da luz que os nossos amantes derramam em nós porque por amor nos iluminam,
observar atentos o direito e o avesso, a luz e a sombra, a dor e a perda, a charrua e a levada de água pura, crer no destino e acreditar no futuro do homem,
louvar a Deus as mãos que nos pegam, e nunca deixam de nos pegar, mesmo depois de sucumbirem injustamente à desdita da sorte ou à lei da vida,
guardar o sangue frio perante o disparar da veia jugular ou da espingarda apontada à fronte do combatente irregular,
incensar o gesto ameno e contemporizador que se busca e surge isento no labirinto da carnificina populista,
ousar a abjecção da tirania, admirar a grandeza da abdicação e desejar a amizade das mulheres,
admirar a vista do mar azul frente à terra atapetada de flores de amendoeira em silêncio e paz.
(um programa para o absorto)
[Publicado em 19 de dezembro de 2003.]
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