terça-feira, dezembro 14

O Lugar do Meu Avô em Santos

Conheci os meus avós de forma diferente. Os paternos de memórias. Eram mais velhos e eu, filho tardio, cheguei tarde demais para os conhecer de perto. Compenso-me dessa ausência mantendo perto de mim uma fotografia do meu avô Dimas Eduardo Graça (Dimas é o nome de meu pai e de meu irmão mais velho, Eduardo é o meu).

Tirada em Santos, no Brasil, para onde emigrou no tempo em que os portugueses partiam em busca de uma vida melhor, a foto é majestosa pela qualidade, em si mesma, e pela figura que retrata.

Um dia de visita a S.Paulo quis visitar a rua na qual, em Santos, o meu avô Dimas tinha trabalhado numa fábrica de malas, baús, malões, ao que suponho propriedade de seu irmão.

No SESC de S. Paulo falei alto acerca da minha vontade de visitar a rua e, se possível, a fábrica ou os resquícios que dela tivessem sobrevivido. E eis que uma das presentes me diz ter vivido numa vivenda mesmo em frente da fábrica que eu procurava. E lembrar-se, em criança, das pessoas que nela trabalhavam.

No outro dia lá fui. Em plena zona industrial a rua estava tal e qual com o mesmo nome. E o número da porta também não tinha mudado. Era um armazém de fronte do qual pude observar a vivenda que me tinha sido referida.

Por ser domingo não pude entrar mas era aquele o espaço, agora ao serviço da empresa de celulares que a PT explora na região de S. Paulo, onde o meu avô tinha trabalhado boa parte da sua vida.

Regressei com o sentimento de ter cumprido uma das íntimas missão que, desde há muito, me tinha imposto a mim próprio.

Absorto - 1º Aniversário (13 de17)

segunda-feira, dezembro 13

À memória de Fernando Pessoa

Se eu pudesse fazer com que viesses
Todos os dias, como antigamente,
Falar-me nessa lúcida visão -
Estranha, sensualíssima, mordente;
Se eu pudesse contar-te e tu me ouvisses,
Meu pobre e grande e genial artista,
O que tem sido a vida - esta boémia
Coberta de farrapos e de estrelas,
Tristíssima, pedante, e contrafeita,
Desde que estes meus olhos numa névoa
De lágrimas te viram num caixão;
Se eu pudesse, Fernando, e tu me ouvisses,
Voltávamos à mesma: Tu, lá onde
Os astros e as divinas madrugadas
Noivam na luz eterna de um sorriso;
E eu, por aqui, vadio de descrença
Tirando o meu chapéu aos homens de juízo...
Isto por cá vai indo como dantes;
O mesmo arremelgado idiotismo
Nuns senhores que tu já conhecias
- Autênticos patifes bem falantes...
E a mesma intriga: as horas, os minutos,
As noites sempre iguais, os mesmos dias,
Tudo igual! Acordando e adormecendo
Na mesma cor, do mesmo lado, sempre
O mesmo ar e em tudo a mesma posição
De condenados, hirtos, a viver -
Sem estímulo, sem fé, sem convicção...
Poetas, escutai-me. Transformemos
A nossa natural angústia de pensar -
Num cântico de sonho!, e junto dele,
Do camarada raro que lembramos,
Fiquemos uns momentos a cantar!

António Botto

Poema de Cinza
As Canções de António Botto
Editorial Presença1999

Não deixar rasto

Eis uma notícia, da edição de hoje, do "El País" muito interessante para a realidade portuguesa actual.

El equipo de Aznar borró los archivos informáticos de Presidencia antes de irse
Una empresa especializada fue contratada por 12.000 euros para eliminar todas las copias

Cuenta el ex presidente Leopoldo Calvo-Sotelo que, cuando llegó a La Moncloa para sustituir a Adolfo Suárez, en febrero de 1981, y abrió la caja fuerte que debía contener los secretos de Estado, sólo halló en su interior un papel, en el que estaba anotada la combinación para abrirla.

José Luis Rodríguez Zapatero no se sorprendió menos cuando en abril pasado sustituyó a José María Aznar al frente del Gobierno. Todos los archivos informáticos de Presidencia estaban vacíos. La clave también figuraba en un papel: la factura, por unos 12.000 euros, de la empresa contratada para borrarlos.”

Um Búzio e Uma "Água-Forte"

Nos idos de 1976 visitei Cuba. Che tinha sido assassinado, nove anos antes, em 9 de Outubro de 1967. Faço a referência à efeméride para dar a ideia da profundidade e significado de terem já passado 37 anos desde esse acontecimento que tanto marcou a minha juventude.

Ao ver o filme “A Viagem de Che Guevara”, as personagens, os sonhos e as canções que envolvem o mito de Che, lembrei-me desta memorável viagem. Era uma delegação do MES composta por mim, pelo Vítor Wengorovius e pelo Francisco Farrica.

Julgo que não havia um objectivo concreto a alcançar mas tão só dar testemunho do processo político português. Estávamos em plena campanha das eleições presidenciais, em Portugal, e Otelo era, à época, muito popular em Cuba.

Fizemos as visitas da praxe, pisamos os lugares mais emblemáticos da revolução cubana, visitamos uma fábrica de “puros habanos”, uma plantação de cana, fomos recebidos por alguns dirigentes político intermédios, mas não por Fidel.

Lembro-me de ter ficado impressionado com o olhar triste ou, talvez, melancólico das trabalhadoras da fábrica de charutos. Apesar de tudo a viagem foi há quase trinta anos. A situação de Cuba era menos difícil do que na actualidade. O calor humano dos cubanos, a sua amabilidade e companheirismo eram, e são, incomparáveis. E, em muitos casos, disfarçavam a custo as críticas.

Mas lembro-me de ter sentido, de parte do regime, um alheamento que só consigo explicar pela nossa postura intelectual de não cedência à eventual expectativa de uma atitude reverencial que nunca seríamos capazes de assumir. Não tínhamos nada para pedir. Ninguém ousou oferecer-nos nada. Saímos como entramos.

Da minha parte trouxe de Cuba um búzio e uma “água-forte”, escolhida e comprada por mim, no atelier de Lopez-Nussa (*), aquando de um passeio livre por Havana. O búzio enorme que colhi, em plena praia de Camaguey, mereceu uma detalhada análise das desconfiadas (ou interesseiras?) autoridades alfandegárias à chegada ao aeroporto de Lisboa.

São as mais preciosas recordações que guardo dessa viagem. Mas espero lá voltar como simples turista.

(*) Pelas minhas pesquisas trata-se de uma “água-forte” de um consagrado artista plástico cubano, Leonel Lopez-Nussa Carion, 1916, Havana, da série “Música e Músicos”, intitulada “Músicas 5 A”.

Absorto - 1º Aniversário (12 de 17)


sábado, dezembro 11

De Cabeça Perdida

Tinha acordado comigo próprio não abordar mais a questão da dissolução da AR. Vamos para eleições, ponto final.

Mas a manifestação do governo frente às câmaras de TV, realizada hoje à noite, ultrapassa tudo o que seria possível imaginar.

Fez-me lembrar os tempos do PREC. Os rostos patibulares dos Ministros, o gaguejar pretensamente institucional do PM, o discurso em tom retórico e arruaceiro, a tomada de posição do PSD Madeira, proclamando o pretenso “golpe constitucional” do PR.

A direita está de cabeça perdida. A perspectiva da perda do poder fá-los perder a cabeça. Devem possuir indicações, sondagens e estudos de opinião, que aconselham à dramatização e assumpção do papel de vítimas. As sondagens devem ser mesmo muito más. Ou então é um comportamento próprio da sua natureza, ou seja, uma questão de carácter. Como diz o povo, gente má.

O Primeiro-ministro está a arrastar o país para o caos mesmo com um pé e meio fora do governo, Estive a reparar e não vi o Dr. Bagão Félix perfilado na manifestação de demissão do governo. Estranho!

Cadernos de Camus

Num período que decorreu até Março deste ano José Pacheco Pereira tomou a iniciativa de criar um blog que, durante algum tempo, consistiu num exercício de diversas leituras de Camus, em particular, dos seus “Cadernos”. Esse blog ainda está disponível.

A minha modesta contribuição ficou lá, parcialmente, depositada e, está disponível, na íntegra, no arquivo do absorto.

Por razões, certamente estimáveis, que o próprio JPP saberá, melhor do que ninguém, explicar o projecto cessou.

No contexto dos primórdios de uma batalha eleitoral que, todos já percebemos, vai ser atravessada pela mais baixa política dos anais da República apetece tratar de temas que dela se afastem mas que estão fortemente ligados à defesa dos valores sagrados da justiça e da liberdade.

Por isso me lembrei, ainda a propósito da intervenção do PR, que tinha arquivado a bibliografia de Albert Camus para posterior utilização no contexto daquele projecto.

No meio das trapalhadas e insultos desta pré-campanha eleitoral coloco essa bibliografia disponível no IR AO FUNDO E VOLTAR .



Eleições - 20 de Fevereiro

Desde a data do anúncio formal, pelo PR, da decisão de convocar eleições legislativas até à sua realização, em 20 de Fevereiro de 2005, vão passar 71 dias.

É muito tempo. É tempo demais. A decisão é, politicamente, inquestionável e, conforme apontam todas as sondagens e o senso comum, era desejada pela maioria dos portugueses.

Mas não se poderiam encurtar todos os prazos? Nenhuma sociedade aguenta tanto impasse, hesitação, “complexidade”, sigilo, sem amargar a sua sorte.

Reparem só no caso particular do combate aos incêndios de verão. Na véspera da decisão formal do PR demitiu-se o responsável máximo dos “Bombeiros e Protecção Civil”.

O responsável governamental não falava com ele. É uma técnica antiga para “despedir” e humilhar os dirigentes da administração.

Chegaremos, assim, ao verão de 2005, de novo, impreparados para a inevitável calamidade dos incêndios.

Previsão: a direita, na oposição, acusará o governo socialista de não ter feito nada para fazer face à situação.

Em Julho de 2005 já ninguém se lembrará de nada do que se está a passar neste momento.

sexta-feira, dezembro 10

O Populismo Saiu à Rua Num Dia Assim

A "Ode Triunfal" foi o que me apeteceu, verdadeiramente, publicar a título de comentário à comunicação presidencial. É mais clara. Intemporal. Está sempre actual e não se atrasa. Não é alvo de críticas nas TVs a não ser por especialistas que ninguém sabe quem são e ninguém lê. Excepto outros especialistas igualmente desconhecidos do grande público, ou seja, do povo e que, igualmente, ninguém lê.

Mas a razão comezinha da disputa do poder, ou seja, de uma série de coisas que o poema trata, com meridiana clareza, e que interferem com a nossa vidinha, exige um comentário mais prosaico: resumindo a baralhando vamos para eleições.

Dia 20 de Fevereiro. Porque não 13? Ou mesmo 6? O Carnaval? A camapnha eleitoral não pode coincidir com o Carnaval? Uma boa anedota. O que interessava a toda a gente, aos cidadãos, menos aos partidos da maioria (estão no poder) e ao PC (está "de Jerónimo") era a data mais cedo possível! Tudo demora tanto tempo! Desde 9 de Julho de 2004 a 20 de Fevereiro de 2005 contam-se mais de 7 meses!

A partir deste momento começou a campanha eleitoral. O governo que não-se-sabe-se-é-de-gestão-ou-não, e os partidos que o integram, vão aproveitar, a fundo, as vantagens de disporem do poder e de um Orçamento de Estado aprovado.

O populismo saiu à rua num dia assim...

ODE TRIUNFAL

Este poema de Fernando Pessoa pela voz de Álvaro de Campos é, convenhamos, longo para um blog. Hoje, dia 9 de Dezembro, esteve um dia frio em Lisboa e não me pareceu que a noite tivesse aquecido. Seria desapropriado publicar num blog com esta natureza, na íntegra, este belo e longo poema. Mas após ter ouvido a declaração ao País do PR, e os comentários que sobre ela estão a ser produzidos, publico uns versos e aqui deixo o link para quem esteja interessado em o ler na íntegra. A crise política deu-me para isto...

ODE TRIUNFAL

À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!

(...)

(Ah, como eu desejaria ser o souteneur disto tudo!)

A maravilhosa beleza das corrupções políticas,
Deliciosos escândalos financeiros e diplomáticos,
Agressões políticas nas ruas,
E de vez em quando o cometa dum regicídio
Que ilumina de Prodígio e Fanfarra os céus
Usuais e lúcidos da Civilização quotidiana!

Notícias desmentidas dos jornais,
Artigos políticos insinceramente sinceros,
Notícias passez à-la-caisse, grandes crimes --
Duas colunas deles passando para a segunda página!
O cheiro fresco a tinta de tipografia!
Os cartazes postos há pouco, molhados!
Vients-de-paraitre amarelos com uma cinta branca!
Como eu vos amo a todos, a todos, a todos,
Como eu vos amo de todas as maneiras,
Com os olhos e com os ouvidos e com o olfacto
E com o tacto (o que palpar-vos representa para mim!)
E com a inteligência como uma antena que fazeis vibrar!
Ah, como todos os meus sentidos têm cio de vós!

(...)

Ah, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a mesma,
Que emprega palavrões como palavras usuais,
Cujos filhos roubam às portas das mercearias
E cujas filhas aos oito anos -- e eu acho isto belo e amo-o!
Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada.
A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa
Por vielas quase irreais de estreiteza e podridão.
Maravilhosa gente humana que vive como os cães,
Que está abaixo de todos os sistemas morais,
Para quem nenhuma religião foi feita,
Nenhuma arte criada,
Nenhuma política destinada para eles!
Como eu vos amo a todos, porque sois assim,
Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus,
Inatingíveis por todos os progressos,
Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida!

(...)

Álvaro de Campos, 6-1914

quinta-feira, dezembro 9

IBM/"BM"

No mundo dos negócios a notícia do dia foi a compra da IBM por uma empresa chinesa. Os chineses avançam a todo o vapor para o domínio de áreas chave do conhecimento e do comércio mundial. Nada que não esteja “escrito nas estrelas”.

A notícia mais chocante foi a de saber que muitos alunos das nossas escolas têm como aspiração máxima o “BM”. Traduzindo: o “Balde da Massa”. Aquém e além fronteiras.

Dias com Árvores

Dias com Árvores – um blog a visitar

Sampaio - caudilho

Morais Sarmento, Ministro do Governo da República, disse que o
Presidente decidiu numa "lógica de caudilho", referindo-se à dissolução da AR e consequente convocação de eleições antecipadas.

As palavras não enganam, foram ditas, representam, em toda a sua crueza, pura ignorância ou, o que é mais certo, um inaceitável insulto ao PR.

Afinal era mesmo verdade aquilo que muitos pensavam e alguns disseram, ou seja, que Portugal se haveria de transformar numa grande Madeira.

Caudilho - "1 - político com força militar própria; 2 - ditador". Houaiss





Aldrabices

Não é preciso ser muito inteligente para entender as razões do PR para a dissolução da AR. As trapalhadas da maioria de direita e do seu governo, agora na versão aldrabices eleitoralistas, continuam…

"Ao contrário do que afirmou ontem Paulo Portas
Ministro das Actividades Económicas nega acordo para a construção de blindados na Bombardier

O ministro de Estado e das Actividades Económicas, Álvaro Barreto, negou hoje que tenha sido assinado qualquer contrato para a construção de parte dos novos blindados do Exército nas instalações da Bombardier, ao contrário do que afirmou ontem o ministro da Defesa, Paulo Portas.”

Público

quarta-feira, dezembro 8

A direita para sobreviver é capaz de tudo...

A situação política em Portugal, desde o início da passada semana, pode ser caracterizada como “complexa”. É assim que se costuma apelidar uma situação complicada na política.

O assunto teria merecido um pouco mais de pedagogia a começar nos órgãos de soberania e a prosseguir nos órgãos de comunicação social. Ninguém se deu ao trabalho de dar trabalho a tantos porta vozes e comentadores qualificados que por aí pululam.

O campo ficou aberto para a demagogia e o populismo mais rasteiros. O dia de amanhã (5ª feira), e o dia seguinte, são decisivos.

Uma coisa é certa: para sobreviver no poder a direita é capaz de tudo...mas há sinais de que a debandada já começou.

Ir à rua

A rua é uma instituição urbana. Os meus antepassados próximos, de origem rural, conheciam mal este conceito. O advento da sociedade urbana atribuiu um estatuto especial a “ir ao campo”. Mas, durante séculos, para os rurais o grande dia era o da feira que os levava a “ir à cidade”.

A geração dos “babby-boomers”, de que faço parte, experimentou a fase final desta contradição. Lembro-me da impressão que me causou o filme de Renoir, “Passeio ao Campo”.

Lembro-me dos meus passeios ao monte dos meus avós maternos que, ainda nos anos 70, não tinham energia eléctrica em casa tendo assistido, impotentes, à instalação, mesmo ao pé da porta, de dois postes que suportavam a linha que fornecia a energia a Tavira mas não os alimentava a eles.

Senti o encanto da grande urbe de Lisboa ainda mal tinha resolvido a contradição “cidade/campo”. Nos primeiros dias, após a minha chegada definitiva a Lisboa, caminhei a pé pela Baixa, calcorreei as ruas dos bairros da Estrela, Campo de Ourique e da Lapa. Até que os pés aguentassem. Só. Fiz a carreira do eléctrico 28 dos Prazeres à Graça e da Graça aos Prazeres. Lindas as palavras que identificam estes dois bairros de Lisboa.

Caminhar pelas ruas da cidade de Lisboa era uma alegria. A partir de certo momento tornou-se uma aventura e um risco. Não pelo trânsito nem sequer pela delinquência que, em Lisboa, sempre foi uma brincadeira de crianças se comparada com outras urbes da Europa ou das Américas.

Mas porque em certas esquinas, à noite, nas saídas tardias das tertúlias ou das actividades associativas (subversivas?), surgiam vozes cavas e anónimas que pronunciavam o nosso nome em tom ameaçador. Porque ao caminhar pela rua surgiam interpelações ameaçadoras de desconhecidos que nos acotovelavam. Porque o regresso a casa, à noite, tinha de ser cuidadosamente preparado prevendo a arremetida que nos levaria ao hospital ou à prisão.

Muitas destas caminhadas fi-las acompanhado pelo Eduardo Ferro Rodrigues. Nunca nos deixamos intimidar mas estávamos longe de prever como seria possível que, nos tempos da democracia, pela qual lutamos a vida toda, ressurgirem as mesmas ameaças à liberdade revestidas de novas e mais subtis formas.

Ir à rua, para mim, sempre foi um verdadeiro exercício de liberdade. Como sabemos “ir à rua” pode ser até uma manifestação espontânea, ou organizada, de protesto. Mas há quanto tempo não vamos à rua?

Em tempo: ir às urnas, em democracia, também é um salutar exercício de liberdade!

Absorto - 1º Aniversário (11 de 17)

terça-feira, dezembro 7

SIS

Um blog premiado

Vejam Por um punhado de pixels, de autoria de nemo nox, um blog premiado, em língua portuguesa.

Mário Soares - 80 anos

Pensei não escrever nada acerca dele. Todos escrevem, nestas efemérides, mesmo que as personagens não lhes interessem para coisa nenhuma.

Um dia, só pode ter sido no ano de 1969, fui com o Xico Chaves e a Helena Moura e mais alguém, que já não me lembro quem, falar com o Soares à sede da CEUD. O Xico Chaves, que vive no Brasil e não sei que é feito, é que teve a ideia.

Ficamos à espera numa sala um tempo e apareceu-nos um Soares imponente com aquele ar triunfante mesmo quando está na mó de baixo. A conversa foi curta e inconclusiva pois, pelo menos eu, não estava virado, à época, para a social-democracia ou para o socialismo democrático.

O Soares impressionava mas era demasiado pouco estimulante para o nosso desejo de mudança. Sentia-me melhor na CDE. E assim foi.

No início dos anos 80 tudo mudou. Passei a apoiar todas as iniciativas do Soares e, desde o início, a sua “impensável” primeira candidatura presidencial que havia de sair vencedora.

Na sequência da extinção do MES, com um grupo de ex-militantes deste movimento, no qual se incluía o Ferro Rodrigues, ingressei, em 1986, no PS depois de ter sido candidato independente nas eleições legislativas de 1985 nas quais só faltou ser açoitado pelo povo nas ruas. Deve ter sido o pior resultado de sempre do PS.

A partir de 1985 Mário Soares, para mim, passou a ser fixe. Até hoje. Agora já não entro nestas festas de aniversário, mesmo de inscrição livre, porque me aborrecem a maior parte dos convivas e desconfio das palmadas nas costas.

O que me interessa é o hino à vida e à intervenção cívica de que Mário Soares é um exemplo. Parabéns.

O PR e os ataques da direita

Os ataques violentos, destes dias, ao PR, provindos da direita, são difíceis de entender. As vítimas da decisão do PR estão a falar muitos decibéis acima do que seria aceitável pela opinião pública. Pela simples razão de que a opinião pública desejava esta solução ou, pelo menos, não a considerou desajustada ao desempenho do governo.

O PR fez aquilo que a maioria dos portugueses ansiava que fizesse. Ainda por cima faltam jogar imensos lances. O PR ainda nem sequer tomou a palavra para explicar as razões políticas da sua decisão. Os partidos do governo ainda não decidiram se avançam em coligação ou cada um por si; o PS ainda não apresentou o seu programa de governo embora tenha feito emergir Vitorino.

Uma coisa é certa: o PR tomou uma decisão que vai ao encontro da crescente insatisfação popular. As eleições são uma válvula de escape essencial para evitar males maiores. Trata-se de dar a palavra ao povo, um princípio sagrado da democracia representativa.

As razões da decisão do PR estão bastante explicadas pelos acontecimentos recentes conhecidos por “trapalhadas”. Mas, certamente, o PR terá outras informações que lhe permitiram assumir os riscos políticos da sua decisão.

A maioria daqueles que assumiram funções de gestão na administração pública, a todos os níveis, compreende as razões do PR. A partir de certo momento o que parecia é que só o PR as não compreendia.

A injustiça pode resultar, por uma vez, de um julgamento involuntariamente errado. A liberdade pode ser, por uma vez, ingenuamente posta em causa. Mas as injustiças reiteradas e indiscriminadas e as limitações à liberdade, assumidas como programa de governo (embora não escrito), são sinais perigosos para a democracia que não é uma conquista definitiva para todo o tempo e em qualquer circunstância.

Para salvaguardar a democracia, em última instância, é que existe no nosso sistema político a instituição Presidente da República. Que não é a “Rainha de Inglaterra” ou o “Notário da República”.

Os que hoje são governo e atacam o PR desta forma desbragada já desistiram de ser governo amanhã. Estão a caminhar para um beco sem saída. Porque, além do mais, o PR vai ser o mesmo, durante quase um ano, após as eleições gerais de 6 ou 13 de Fevereiro próximo.

E depois dele outro virá, por eleição directa, que não será, certamente, da simpatia da actual liderança do PSD e PP.

segunda-feira, dezembro 6

O poema pouco original do medo

O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias e o luxo blindado
de alguns automóveis

Vai ter olhos onde ninguém os veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis (o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com a certeza a deles

Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados

Ah o medo vai ter tudo
tudo


(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)


O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos

Sim
a ratos

Alexandre O´Neill

(In Abandono Vigiado - 1960)

António Vitorino

Acabei de ver a sua entrevista na SIC – Notícias. O que me interessa sublinhar é que ele abordou algumas questões essenciais para a construção de um programa político vencedor sem cedências à demagogia e ao populismo.

Algumas dessas questões são mesmo quase sempre esquecidas ou pouco valorizadas. A questão demográfica e o envelhecimento acelerado da população em Portugal, na Europa e no Mundo; a imigração e as complexas questões que a inevitabilidade do seu crescimento colocam às nossas sociedades; a relação entre o exercício da função política (ou outra qualquer) e a apetência e gosto individual do cidadão no seu desempenho.

Enfim uma prestação superior de alguém que se disponibiliza para participar num projecto colectivo afirmando a sua individualidade.

Assim o PS seja capaz de congregar as energias, a experiência e o saber daqueles que seriamente, com gosto e prazer, se disponibilizem para construir um projecto de governo realista, mobilizador e de esperança para Portugal.

A postura, as palavras e as ideias de António Vitorino são um bom sinal.

domingo, dezembro 5

Panfletos no Chão da Gare

Os tempos de liberdade que vivemos são uma conquista da luta daqueles que nunca aceitaram a tirania. É um lugar comum. Uma tirada antiga, porventura obsoleta. Mas no longo tempo da ditadura havia que lutar pela liberdade. Realizar as tarefas mais comezinhas como elaborar, imprimir e distribuir panfletos.

Em todas as lutas se redigem, imprimem e distribuem panfletos. As tecnologias mudam mas a essência da tarefa é sempre a mesma: passar uma mensagem. Normalmente apelar à revolta, à contestação, à desobediência. O contrário da subserviência e do medo.

Nestas caminhadas pela acção subversiva no combate à ditadura cumpriu-me um dia entregar uma remessa de panfletos contra a guerra colonial ao José Galamba que me esperava numa cervejaria na avenida do Uruguai, perto de minha casa, onde costumava ir o Carlos Paredes.

Fiz o percurso até Benfica de Metro. Ao sair da carruagem, nesta estação, o saco rebentou e os panfletos inundaram o chão da gare à vista de toda a gente. Calmamente, mas com o coração a saltar, recolhi-os de novo para dentro do que restava do saco. Toda a gente se fingiu distraída e ninguém deu especial atenção ao acidente.

Duas extraordinárias coincidências: se me não falha a memória ia acompanhado pelo José Catela, neto de um célebre inspector da polícia política, e muito perto da saída da estação do Metro funcionava a “Escola” da polícia que sempre ficou conhecida por PIDE.

Há dias de sorte.

Absorto - 1º Aniversário (10 de 17)

Nada se perde, tudo se transforma...

O JPN no respirar o mesmo ar lembra, a propósito do meu artigo “Há silêncios que não podem ser eternos”, um episódio, muito interessante, passado antes com um jornalista do Independente.

Esse episódio merece ser conhecido pois, como diz o povo, “isto anda tudo ligado”.

sábado, dezembro 4

Outro Testamento

Quando eu morrer deitem-me nu à cova
Como uma libra ou uma raiz,
Dêem a minha roupa a uma mulher nova
Para o amante que a não quis.

Façam coisas bonitas por minha alma:
Espalhem moedas, rosas, figos.
Dando-me terra dura e calma,
Cortem as unhas aos meus amigos.

Quando eu morrer mandem embora os lírios:
Vou nu, não quero que me vejam
Assim puro e conciso entre círios vergados.
As rosas sim; estão acostumadas
A bem cair no que desejam:
Sejam as rosas toleradas.
Mas não me levem os cravos ásperos e quentes
Que minha Mulher me trouxe:
Ficam para o seu cabelo de viúva,
Ali, em vez da minha mão;
Ali, naquela cara doce...
Ficam para irritar a turba
E eu existir, para analfabetos, nessa correcta irritação.

Quando eu morrer e for chegando ao cemitério,
Acima da rampa,
Mandem um coveiro sério
Verificar, campa por campa
(Mas é batendo devagarinho
Só três pancadas em cada tampa,
E um só coveiro seguro chega),
Se os mortos têm licor de ausência
(Como nas pipas de uma adega
Se bate o tampo, a ver o vinho):
Se os mortos têm licor de ausência
Para bebermos de cova a cova,
Naturalmente, como quem prova
Da lavra da própria paciência.

Quando eu morrer...
Eu morro lá!
Faço-me morto aqui, nu nas minhas palavras,
Pois quando me comovo até o osso é sonoro.

Minha casa de sons com o morador na lua,
Esqueleto que deixo em linhas trabalhado:
Minha morte civil será uma cena de rua;
Palavras, terras onde moro,
Nunca vos deixarei.

Mas quando eu morrer, só por geometria,
Largando a vertical, ferida do ar,
Façam, à portuguesa, uma alegria para todos;
Distraiam as mulheres, que poderiam chorar;
Dêem vinho, beijos, flores, figos a rodos,
E levem-me – só horizonte – para o mar.

Vitorino Nemésio

(Na sequencia de ter acabado de ver na RTP – Memória uma daquelas “charlas” extraordinárias de Nemésio realizada em 1975. Para além, claro, de Vitorino Nemésio ser um grande poeta português esquecido e este, para mim, um poema de primeira água. Um tudo nada longo para um blog mas, que querem, a crise política, deu-me para isto…)


Uma Brincadeira

O que o primeiro-ministro disse ontem na Póvoa a propósito do PR faz parecer todas as críticas que lhe foram feitas, a partir de 9 de Julho, pela esquerda uma brincadeira de crianças.

O primeiro-ministro – não se sabe se nessa qualidade se na de líder do PSD – chamou mentiroso ao PR. Com as letras todas. Não vale a pena dourar a pílula.

Por este caminho não se sabe como pode o país aguentar 3 meses com este primeiro-ministro à frente de um governo em funções plenas e não em funções de gestão. Com o seu orçamento aprovado e tudo.

Em campanha eleitoral permanente, como gosta, o PM vai misturar, em cada minuto, todas as funções. Como nunca se viu. Vai ser um festival de mentiras, insultos e indignidades.

sexta-feira, dezembro 3

Um fartar-vilanagem

“O primeiro-ministro garantiu hoje que o Orçamento de Estado para 2005 será aprovado na próxima semana, mas criticou a decisão "sem precedentes" de Jorge Sampaio ter anunciado a dissolução do Parlamento sem explicar os motivos.”
(Lusa)

Santana Lopes vai passar o tempo a atacar o PR. A direita vai juntar no mesmo saco PR, PS, os empresários e todas as forças “irresponsáveis”.

Já se percebeu como “uma parte da campanha de Santana Lopes será feita: o governo caiu porque os grandes interesses económicos não queriam o OE, as suas medidas de combate á fraude fiscal, e de imposição de impostos à banca. É hábil, apela ao populismo, e aos amadores das teorias da conspiração, mas não é verdade.”

Por outro lado alguém tem de acautelar os perigos reais de 3 meses de “governo de gestão” com Santana Lopes e Paulo Portas em campanha eleitoral.

Como afirma Miguel Sousa Tavares a rematar o seu artigo “Escrito nas Estrelas”, no Público de hoje, “Ao menos uma coisa Jorge Sampaio tem obrigação de fazer: não deixar que estes dois ou três meses de governo de gestão (até nisto, na inacreditável demora para demitir um governo, convocar eleições e nomear outro, não aprendemos nada com o passado) se transformem num fartar-vilanagem …” (link não disponível)

(Notas acerca das eleições antecipadas – 3)

Há silêncios que não podem ser eternos

"O facto que hoje evoco passou-se há dois anos. Merece ser recordado pois, entretanto, ganhou uma inusitada actualidade.

No dia 12 de Dezembro de 2002, cedo de manhã, fui acordado por um telefonema da Rádio Renascença, que me pedia um comentário às notícias que, nessa madrugada, circulavam acerca de “irregularidades” no INATEL a cuja direcção presidia."

Este texto é um extrato de um artigo publicado hoje no "Semanário Económico" que pode ser lido na sua versão integral no IR AO FUNDO E VOLTAR

Absorto - 1º Aniversário (9 de 17)



A Escola

“A escola é o único lugar do mundo onde aqueles que sabem as respostas é que fazem as perguntas” (Philippe Meirieu)

quinta-feira, dezembro 2

Uma Sala Vazia

O teatro foi uma escola para mim. Desde o liceu até ao teatro amador vivi uma experiência intensa fazendo teatro. No GTCCA (“Grupo de Teatro do Círculo Cultural do Algarve”), dirigido pelo Dr. Emílio Campos Coroa, encenaram-se os clássicos e fizeram-se representações e digressões sem conta.

Em salas pequenas e grandes, modestas e grandiosas, em ruas e praças, em barcos ancorados (“O Lugre”) e praias douradas (Albufeira), de dia e de noite. Uma loucura. A acção da família Campos Coroa na promoção do teatro foi, e é, uma gesta heróica. O exagero está na realidade e não na fantasia do teatro.

Representamos a “Trilogia das Barcas”, de Gil Vicente, versão integral, vezes sem conta. Desempenhava, nessa trilogia, três papéis, um em cada acto: o “Procurador”, no primeiro, o “Tafúl” (cena final do segundo acto) e o “Cardeal”, no terceiro. O dispêndio de energias era fenomenal e as cabeleiras nunca me cabiam na cabeça. O meu desempenho era somente razoável para um actor autodidacta, sem escola, nem formação específica.

Mas os espectáculos eram uma festa tensa e exigente. O espectáculo de Portimão (ou de Lagos?) ficou-me vincado na memória por uma razão oposta à maioria dos outros. Antes do início, perto da hora marcada, a sala apresentava-se deserta. Não sei já, ao certo, mas sentavam-se na plateia um ou dois espectadores. Tinha falhado, certamente, a divulgação.

O Dr. Emílio Campos Coroa (enfurecido!) reuniu a “companhia” nos bastidores e fez uma prédica que nunca mais esqueci. A sua mensagem era cristalina: o espectáculo realiza-se, de qualquer maneira, como se estivéssemos perante uma sala cheia. Com a mesma energia e dedicação, sem falhas nem hesitações.

Fez-se. Correu bem. Reforcei a convicção de que os compromissos são para respeitar mesmo na adversidade. Obrigado doutor.
Absorto - 1º Aniversário (8 de 17)

Lisbon Revisited (1923)

NÃO: Não quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!

Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) —
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-na!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço.
Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!

Ó céu azul — o mesmo da minha infância —
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!

Álvaro de Campos

(Publiquei antes um extracto de "Lisbon Revisited (1926)". Mais tarde o publicarei, de novo, na sua versão integral. A crise política de-me para isto...).

Orçamento de Estado - 2005

É um facto extraordinário que se pretenda impor ao PR a garantia antecipada de promulgação do OE. Então alguma vez seria possível garantir a aprovação daquilo que se não conhece?

Além do mais é uma chantagem intolerável visando o PR que é um órgão de soberania. Concordo com Vital Moreira que, no Causa Nossa, defende, com argumentos coerentes, a não aprovação, nestas circunstâncias, do OE.

"Sampaio recusa aprovar OE´2005 por antecipação

Apesar das exigências da coligação governamental para que diga antecipadamente se vai ou não aprovar o Orçamento de Estado para 2005 (OE`2005), o Presidente da República, Jorge Sampaio, recusa-se a avançar para uma aprovação antecipada do documento, frisando que «o Presidente não trabalha com cenários»."

(Notas acerca das Eleições Antecipadas - 2)

quarta-feira, dezembro 1

Fernando Pessoa (dois poemas)

Eu amo tudo o que foi

Eu amo tudo o que foi,
Tudo o que já não é,
A dor que já me não dói,
A antiga e errônea fé,
O ontem que dor deixou,
O que deixou alegria
Só porque foi, e voou
E hoje é já outro dia.

Fernando Pessoa, 1931.


Eu tenho idéias e razões

Eu tenho idéias e razões,
Conheço a cor dos argumentos
E nunca chego aos corações.

Fernando Pessoa, 1932

(A crise política deu-me para isto...)

A Grandeza

Desculpem a inconveniência. Na nossa sociedade há pessoas boas e competentes. Mas a necrologia política está cheia de cruzes anunciando o seu falecimento. Uma pequena parte delas é, por vezes lembrada, para um “adeus, até sempre”.

É esse um pouco o sentido do artigo de Cavaco Silva. O seu regresso à política partidária é improvável. Mesmo a sua candidatura presidencial é uma incógnita. “O sistema”, como diria o Dias da Cunha, está a funcionar. Para desmontar “o sistema”, desculpem a frontalidade, será porventura necessária uma revolução.

É horrível pensar nestes termos pois eu sei que a democracia representativa contém, em si mesma, a “capacidade para se regenerar”. Contém? Todos os debates, em curso, são tão “com água lisa, por favor”. Sempre os mesmos “pesos pesados”.

Mas a democracia representativa não poderá inventar uma revolução de novo tipo? Basta assegurar que a maioria dos governantes não sejam profissionais da política. Quero dizer os políticos têm que ser obrigados a aproximar-se da vida real. Não nas voltas das campanhas aos beijos e abraços com o povo.

A democracia representativa tem que se reformar a sério. É difícil? Utópico? Basta minguar o peso do estado sem lançar às urtigas as suas responsabilidades. É a produtividade? Pois é. Basta refundar o conceito de serviço público. O facto do cidadão estar ao serviço da comunidade ser mais do que uma nova pena para os crimes leves. Passar a ser uma “grande coisa” e não uma atitude de “totós”.

Os valores senhores, os valores! Não esses, os que se escondem na arca, ou se desvalorizam na banca. Os outros. Os intangíveis! Os não mercantis! Não faz mal nenhum haver eleições anuais até se descobrir uma nova fórmula de devolver à política a sua grandeza.

GRANDEZA. O contrário de sacanice. De sabujice. De aldrabice. De cobardia. É o que me apraz comentar neste primeiro dia depois do PR ter ressuscitado.

(Notas acerca das Eleições Antecipadas - 1)

No Parapeito

Não fui ao lançamento do livro da Rita. Estava doente. Mas foram a Guida e o Manuel. Sei como ela escreve bem. Já o li.

Identifico muitas personagens reais e algumas situações. Bonitos textos. A Rita escreve bem. Desde sempre.

“No Parapeito”, Rita Ferro Rodrigues, Edições Quasi, prefácio de Jorge Reis-Sá.

terça-feira, novembro 30

Poemas para Lili

Pia, pia, pia
O mocho.
Que pertencia
A um coxo.
E meteu o mocho
Na pia, pia, pia...

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Levava eu um jarrinho
P'ra ir buscar vinho
Levava um tostão
P'ra comprar pão:
E levava uma fita
Para ir bonita.

Correu atrás
De mim um rapaz:
Foi o jarro p'ra o chão,
Perdi o tostão,
Rasgou-se-me a fita...
Vejam que desdita!

Se eu não levasse um jarrinho,
Nem fosse buscar vinho,
Nem trouxesse uma fita
Pra ir bonita,
Nem corresse atrás
De mim um rapaz
Para ver o que eu fazia,
Nada disto acontecia.

Fernando Pessoa

(Os últimos acontecimentos dão-me para isto!)

Adiamento

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-rne para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o rnundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...

Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-rne toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...

O porvir...
Sim, o porvir...

Álvaro de Campos

Manuel Paiva (II)

O "Público", de hoje, publica ainda uma pequena resenha acerca de Manuel Paiva, e das suas opiniões, que não está disponível na edição online. O seu teor interessa-me, por diversas razões, e é o seguinte:

“Manuel Paiva, físico de 62 anos, queria, há muitos anos, visitar escolas básicas da Serra da Estrela. Fê-lo na semana passada. “Tenho uma grande admiração pelas pessoas que trabalham toda a vida. É triste ver que as gerações actuais não transformaram o trabalho manual no gosto pelo trabalho intelectual. Há que cultivar o mérito.”

Conta que nessas escolas encontrou professores incríveis: “São pessoas simples, mas ninguém quer saber o que têm feito pela divulgação da ciência”.

O físico acha que temos de ter uma especial atenção pelos filhos dos imigrantes do leste europeu: “São pessoas que estimam o conhecimento. São cérebros de obra, mais do que mão de obra. O populismo vai apregoar que estão a roubar o nosso lugar. Mas isso é porque o fascismo modelou a nossa mentalidade.”

Manuel Paiva

Manuel Paiva um cientista português, consagrado no estrangeiro, afirma que "Os Portugueses Não Perdoam o Sucesso". A frase pode servir para encobrir muita mediocridade mas, no essencial, é uma verdade que explica muito bem as dificuldades do processo de desenvolvimento em Portugal.

“Manuel Paiva, físico, director do Laboratório de Física Biomédica da Universidade Livre de Bruxelas, lembra-se ainda do dia em que, em 1964, partiu num comboio, de Celorico da Beira, "com raiva entre os dentes." Queria ser físico, mas isso significava então ser professor do secundário. Por isso partiu para a Bélgica. Hoje olha para o que Portugal faz pela investigação.“

Público on line

segunda-feira, novembro 29

Exames

Ao longo da nossa vida somos submetidos a provas sem fim. Exames, análises, diagnósticos, avaliações, classificações; um interminável cortejo de sujeições às leis da vida em sociedade. Comparam-nos e comparamo-nos com os outros numa incessante competição pela sobrevivência. Com mais ou menos bonomia vamos passando ou chumbando.

Os veredictos são ditados por outros que aceitamos que, de uma forma ou outra, nos julguem. Contei, tempos atrás, como chumbei num exame oral de filosofia. No meu 6º ano de liceu fui admitido à oral de filosofia com 15 valores. De nada me valeu o brilhantismo dessa nota. O “imperativo categórico” de Kant serviu de pretexto à examinadora para me mostrar quem mandava e quem devia obedecer.

Doutra vez, já na faculdade, fui confrontado com uma situação oposta. Na oral de uma cadeira ministrada pela saudosa professora Aurora Murteira o meu evidente desejo de chegar ao fim do acto levou-a a indagar-me se não gostaria de obter uma boa nota final. Fiquei surpreendido pelo seu interesse no meu sucesso. Sempre me surpreende o interesse dos outros por mim.

Disse-lhe, com sinceridade, que não me preocupava, em especial, a nota que haveria de me atribuir. Ficou, claramente, surpreendida com o meu desprendimento. A nota foi a que foi. Não me lembro qual mas, certamente, a nota justa para ela e a suficiente para mim.

Absorto - 1º Aniversário (7 de 17)

Crise?

Crise? Qual crise? Não há problema! "Uma andorinha não faz a primavera!"

domingo, novembro 28

Estabilidade

Não esperem qualquer medida drástica do PR. A demissão de um ministro não passa de um acontecimento vulgar. As suas razões divulgadas, em extensa missiva, não passam de um despautério próprio da mais baixa intriga política.

Desagregação do governo? Só por se ter demitido um ministro? Não exageremos. Ele há tantos! A estabilidade está mais do que garantida. E o regular funcionamento das instituições democráticas. Mais que fixe. Venha o orçamento de “continuidade” e está fechado o círculo que levará, em bonança, o governo até ao verão de 2005.

Há pessoas que não compreendem a verdadeira estabilidade. Estabilidade é "isto"!

A tropa

Em Outubro de 1971 cumpri a jornada obrigatória de me apresentar em Mafra. O velho Convento era o destino de todos os jovens licenciados que fossem considerados aptos para cumprir o serviço militar obrigatório.

O problema maior era o espectro da mobilização para uma das frentes da guerra colonial. No primeiro dia fiz a viagem de autocarro. Fui sem revolta e em busca de nada. Cumprir uma obrigação e, se possível, lutar contra a guerra colonial. Eu sabia que o quartel era uma instituição concentracionária clássica.

A tropa, naquela época, não era uma curta experiência de aprendizagem dos métodos próprios da guerra. Era um longo exercício de sobrevivência psicológica e física às exigências da defesa de Portugal como “Pátria una e indivisível do Minho a Timor”.

Era um teste à capacidade pessoal de resistência a uma caminhada pelo inferno dos labirintos da irracionalidade da guerra. Fui e ganhei forças para combater, por dentro, a solidão e as provações.

Um dia, na parada, o Major, Comandante da Companhia, em voz ciciada, avisou-me de que estava na lista dos “subversivos”. Ouvi e calei. Nunca mais esqueci o seu gesto que tomei à conta de generosidade. Não o conhecia. Era um oficial discreto que cumpria com os seus deveres. Eu cumpria com os meus. Nada o obrigava a correr o risco de me avisar.

Este episódio ajudou-me a aprender como é difícil, no mundo dos homens, ajuizar acerca da sua natureza e dos valores que os movem na sua relação com os outros. Não esqueci a nobreza do major.

Absorto - 1º Aniversário (6 de 17)

Henrique Chaves

A Lusa anuncia e o Público replica a notícia da demissão de Henrique Chaves empossado, há 4 dias, pelo PR.

Ah Senhor Presidente, estabilidade como esta, não há outra igual!

“Ministro do Desporto e Juventude apresenta demissão.

O Ministro do Desporto, Juventude e Reabilitação, Henrique Chaves, anunciou hoje a sua demissão do Governo, menos de uma semana após ter assumido o cargo.Num comunicado citado pela Lusa, Henrique Chaves, até há poucos dias ministro-adjunto do primeiro-ministro, refere que não concebe "a vida política e o exercício de cargos públicos sem uma relação de lealdade entre as pessoas", nem "o exercício de qualquer missão privada ou pública, sem o mínimo de estabilidade e coordenação".


Jerónimo de Sousa

Até gostava de gostar de Jerónimo de Sousa. O operário que alcança o topo da hierarquia do PCP. Desde Bento Gonçalves que tal não acontecia. Mas não consigo gostar.

O problema não é a personagem apesar da política ser muito determinada pelos protagonistas. Nem o rito da sua entronização. Nem a contracção da sua face. O problema é que o PCP, assumindo o marxismo-leninismo, como doutrina, e o centralismo democrático, como modelo de organização, deixou de pertencer, definitivamente, ao nosso tempo.

Nada acrescenta à esquerda se a esquerda pretender acrescentar alguma coisa ao desenvolvimento da sociedade portuguesa. O PCP é, para falar claro, uma clareira de nada. Por mais que engrosse e endureça o seu discurso Jerónimo de Sousa representa a exaustão política e eleitoral do PCP.

É o crepúsculo de uma utopia que não tem mais realidade para se firmar. O regresso às origens é um sinal de que o PCP se aproxima do fim.

sábado, novembro 27

Cavaco Silva ao Ataque

Cavaco Silva escreve hoje um artigo no Expresso. O mesmo pode ser lido, na íntegra, no IR AO FUNDO E VOLTAR.

O artigo intitula-se “Os políticos e a lei de Gresham” e pode ser resumido por este destaque que o Expresso lhe confere:

«Cabe às elites profissionais contribuírem para afastar da vida partidária portuguesa a sugestão da lei de Gresham, isto é, contribuírem para que os políticos competentes possam afastar os incompetentes.»

Qual o verdadeiro significado deste artigo? Tal como a intervenção proferida tempos atrás por Guterres, que também publiquei na íntegra, este artigo indicia que Cavaco se prepara para se apresentar como candidato presidencial.

Desde logo porque, ao contrário dos escritos anteriores de Cavaco, este artigo assume uma natureza declaradamente política. O que Cavaco diz, com brutalidade, é que a qualidade dos políticos que ocupam a ribalta – e não só – atingiram o grau zero da competência. Quem são esses políticos a que Cavaco se refere? Não é difícil imaginar quais sejam!

Cavaco tem razão apesar de ter contribuído fortemente para esta degradação da qualidade dos políticos. Mas o seu ataque/alerta não deixa de colocar no centro do debate uma questão crucial para a democracia portuguesa: as reformas do nosso sistema partidário não pode ser eternamente adiadas nem circunscrever-se a uma mera questão de cosmética.

É preciso ir mais fundo. E para isso os “políticos competentes” devem afastar os “incompetentes”. Resta saber quem são uns e outros!

Populismo Justiceiro

O início do julgamento do processo “Casa Pia” serviu para mostrar a que ponto chegou, no nosso país, o “populismo justiceiro”. Deu para confirmar as piores expectativas a respeito das relações promíscuas entre os poderes e a comunicação social.

Sabemos que se não trata de um exclusivo português. As execuções sumárias estiveram à vista de todos. As condenações na praça pública tornaram-se um “programa de grande audiência”.

Não há limites para o espectáculo grosseiro dos insultos e dos apelos à fogueira. Os responsáveis políticos da extrema-direita rejubilam no seu silêncio manhoso. Os seus sequazes açulam a multidão a que se faça justiça.

Assim se faz o caminho para enfraquecer os poderes democráticos que deviam ser fortes. E para fortalecer os aspirantes a tiranos que deviam ser fracos. Ver, hoje no Público, Vasco Pulido Valente.


sexta-feira, novembro 26

Fernando Vale

Fernando Vale era um homem que pertencia aquela extirpe de homens invulgares pela coerência, simplicidade e longevidade. O PS histórico perdeu um dos seus fundadores que se confunde com a 1ª República.

Algumas coincidências: a sua morte foi anunciada pelo Presidente da Câmara Municipal de Arganil que conheci bem aquando da negociação do contrato de concessão da Estalagem de Piódão entre aquela edilidade e o INATEL. Vale é natural de Coja, terra da minha amiga Teresa, que, no ME, me tem dedicado uma amizade sem falhas à qual não tenho correspondido como devia.

Homens bons. Mulheres de fé. Depois dos acontecimentos de ontem, eivados de ódio e ressentimento, evocar a morte de Fernando Vale é, paradoxalmente, um bálsamo para a alma. Apesar do sentimento de perda.

quinta-feira, novembro 25

A Queda

O dia estava frio. Tinha nevado, com intensidade, nas terras altas nos dias anteriores. Sempre gostei de visitar os lugares onde decorrem actividades sob minha responsabilidade. E tanto quanto possível experimentar participar nas mesmas. Esta era uma actividade na área do designado “desporto aventura”. Num dos mais extraordinários rios de Portugal: o Paiva.

O degelo tinha começado e as águas corriam altas e rápidas por entre os rochedos. Tudo estava preparado para a expedição. A tarefa era a descida do rio Paiva na modalidade de “rafting”.
Nada de especial. Percurso de dificuldade intermédia. Julgo que éramos 7 ao todo. Os aventureiros iam vestidos a rigor sem descurar qualquer detalhe de segurança. O monitor era um profissional experimentado e sabedor. A equipa era forte e destemida. Não cito os nomes pois não me lembro de todos com exactidão.

O início da descida correu dentro do normal. Mas o ressalto numa rocha, não sei como, fez com que eu caísse do barco à água. Após a queda iniciei uma descida aos infernos. Fui abraçado pelas águas tumultuosas e arrastado pela corrente. Fui ao fundo e voltei vezes sem conta. Os meus companheiros de aventura bem procuraram agarrar-me mas a tarefa era difícil. Imagino a sua aflição.

Naveguei centenas de metros sem controlo e finalmente fiquei à tona numa zona protegida das correntes mais fortes. Sobrevivi. Seguiu-se a retirada trepando uma escapa íngreme que não tinha fim. À força de braços os meus companheiros, com o apoio de cordas, içaram-me até ao cimo. Só no fim recuperei da hipotermia.

No louco e aterrador mergulho pelas águas límpidas e turbulentas do Paiva passaram no visor da minha memória, exclusivamente, imagens do meu filho. Quando regressei a casa era tarde e estavam todos a dormir. As faces de minha mulher e do meu filho estavam serenas. Deitei-me e adormeci. Só muito mais tarde se aperceberam do que esteve para me acontecer.
Absorto - 1º Aniversário (5 de 17)

O Binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo.

O Binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo.
O que há é pouca gente para dar por isso.

óóóó---óóóóóó óóó---óóóóóóó óóóóóóóó

Álvaro de Campos, 15-1-1928
(O vento lá fora.)

quarta-feira, novembro 24

"O salto"

A época era de pesadelo. O último lustro da década de 60 foi duro. Lutas e mais lutas. Crises e mais crises. O Maio de 68. A crise de 69. Sentia-se no meio estudantil o ambiente pesado da vigilância e repressão policiais. Os activistas eram especialmente seguidos e provocados.

Quem se expunha na actividade associativa legal, tolerada, era inevitavelmente referenciado pela polícia política do regime. Corriam-se riscos. Temia-se a prisão a qualquer momento. Abundavam os rumores e choviam os avisos. Aqueles que, como eu, acreditavam, e acreditam, no progresso nunca se deixaram intimidar. A cada um de nós coube a sua sorte.

Um dia alguém me convenceu que a minha prisão estava iminente. Pois bem, havia que tomar uma decisão. Manter a actividade? Entrar na clandestinidade? Ficar ou partir? Não pertencia, nem nunca pertenci, ao Partido Comunista que era a única organização verdadeiramente organizada em termos de clandestinidade. Não podia arriscar uma caricatura de vida clandestina sem rede. Optei por “dar o salto”. Destino: Paris.

Combinei com uns amigos os detalhes. Fizeram-se os contactos com quem havia de nos “passar”. Tomei as providências necessárias. Despedida discreta e dramática de quem mais amava. Rapar a barba. Tomar o comboio na direcção do Porto. Ponto de encontro: restaurante “Ché-Lapin”, à hora de almoço. Almoçamos e esperamos uma eternidade pelo contacto. Não apareceu ninguém. O contacto falhara. Ainda hoje não sei a razão. Nunca mais falei com o dito.

Regresso a Lisboa. Reencontros inesperados. Ao tomar o meu lugar habitual na “Esplanada do Jardim da Estrela” senti a extraordinária sensação de não ser reconhecido por ninguém. Nem sequer pelo empregado que me servia todos os dias. Só a minha voz me atraiçoou. Sempre me reconhecem pela voz.

Nunca cheguei a ser preso. Segui o meu caminho. Por um triz estive para ser um "falso exilado". Felizmente o destino protegeu-me e nem os meus pais chegaram a saber da aventura.
Absorto - 1º Aniversário (4 de 17)