quarta-feira, abril 27

"Se quer que lhe diga, nunca acreditei na Gestapo".


Foto de amistad

Paulo Portas, no Congresso do CDP/PP, no fim-de-semana passado, explicitou a sua opinião, pesada como chumbo, acerca da razão de fundo do colapso do governo de direita: a “fuga” de José Manuel Barroso.

Em “Citações-10”, em 7 de Julho de 2004, é essa ideia que está subjacente ao que escrevi. A citação de Camus escolhida só aparentemente é desproporcionada ao acontecimento. Em Portugal, quase sempre, fingimos que não vemos o que, na verdade, nos mata.

Só esse estado de espírito explica a acomodação social a 48 anos de ditadura e a indiferença perante as injustiças que, em pleno regime democrático, se institucionalizam, sob os nossos olhos, reclamando-se, quantas vezes, de uma legitimidade obscena.

São os vazios da democracia e as suas zonas de penumbra que permitem formular esta inquietante pergunta: será que estamos livres de novas formas de tirania? Podemos dizer, a esse respeito, como Camus: tomamos as nossas precauções “mas como que abstractamente”. Não me parece que os sinais sejam muito promissores... Eis o que, então, escrevi:

O que está em causa na crise política actual? Sem rodeios: O Primeiro-ministro demissionário, Durão Barroso, fugiu.

Proclamou que tinha aprendido as lições da derrota nas eleições europeias e uns dias depois demitiu-se. Percebe-se que o homem buscou o sucesso de uma carreira profissional.

Mas o povo de direita pensava que tinha votado num político devoto à defesa dos interesses do país e do seu povo. Ao menos pelo período do contrato que estabeleceu, de livre vontade, através da sua apresentação ao sufrágio: 4 anos.

Este episódio não é só uma traição aos seus correligionários. É uma machadada no prestígio do regime democrático. O assunto é sério. De futuro, como já ouvi, é necessário olhar os candidatos tanto pelo lado da sua fidelidade aos compromissos programáticos como pelo lado da garantia da sua permanência no exercício da função todo o tempo do contrato, em exclusividade.

Estes detalhes não são, como se prova, tão despiciendos como poderia parecer. No caso de Santana Lopes não são mesmo nada despiciendos. A inconstância não pode ser elevada à categoria de um valor do Estado Democrático. A não ser que se queira acabar com ele.

A citação do dia:

""Se quer que lhe diga, nunca acreditei na Gestapo. É que nunca ninguém a via. Tomava evidentemente as minhas precauções, mas como que abstractamente. De tempos a tempos, um camarada desaparecia. Noutro dia, diante de Saint-Germain-des-Prés, vi dois tipos altos que obrigavam a soco um homem a entrar para um táxi. E ninguém dizia nada. Um criado de café disse-me: "Cale-se. São eles." Isto levou-me a suspeitar de que efectivamente existiam e de que um dia…Mas eram apenas suspeitas. A verdade é que só poderei acreditar na Gestapo quando receber o primeiro pontapé na barriga. Sou assim. Eis porque não devem ter ilusão quanto à minha coragem, lá porque estou na resistência, como dizem. Não, não posso reclamar qualquer mérito, precisamente porque não tenho imaginação."

Albert Camus, "Cadernos" - Caderno nº 5 - Setembro 1945/Abril de 1948 - Livros do Brasil)

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