Jorge de Sena nasceu em 2 de Novembro de 1919. Engenheiro de
profissão dedicou a sua vida à literatura, sendo grande como poeta, romancista,
contista, tradutor e estudioso de obras alheias e é, para mim, com Pessoa, o
poeta mais importante do século XX português.
Li finalmente, este fim-de-semana, os “Diários” livro no
qual a sua mulher Mécia reuniu os escritos do género ao qual Sena dedicou pouca
importância. Além dos textos acerca da sua viagem, como cadete, na Sagres, o
livro vale a pena por duas peças, uma referente a um período do ano de 1953/54
e outra ao ano de 1968 que permitem conhecer, além das circunstâncias da época,
os seus gostos pessoais, processos de trabalho, amizades e ódios de estimação.
Retive, do período de 1953/54, um conjunto de referências à
escrita dos 21 sonetos que compõem “As Evidências”, com data de publicação de
1955, que mais tarde viriam a integrar “Poesia I” em cujo prefácio, à 2ª
edição, escrito pouco antes da sua morte, lhes faz referência:
“… Nos princípios de 1954, entre Fevereiro e Abril, escrevi
os 21 sonetos de As Evidências, sequência que não queria publicar como parte de
um livro de poemas, aonde ficasse submersa, mas para a qual não encontrava
editor. Foi quando, nesse ano, me foi oferecida, se não estou em erro,
paralelamente por Armindo Rodrigues e por João José Cachofel, a possibilidade
de uma edição daqueles sonetos na série “Cancioneiro Geral” do Centro
Bibliográfico. O livrinho ficou impresso nos primeiros dias de Janeiro de 1955,
foi logo apreendido pela PIDE que assaltou então o dito Centro, e só pôde ser
distribuído um mês depois de repetidas visitas à Censura, para onde se entrava
por uma portinha da Calçada da Glória, embora os censores estivessem realmente
instalados no Palácio Foz ocupado pelo SNP ou SNI, ou lá como se chamava na
altura. O livro era, além de subversivo, pornográfico, segundo me repetia
sistematicamente, com um sorriso ameno e algum sarcasmo nos olhos pontilhados
de ramela branca, por trás de uns óculos de aro finamente metálico, suponho que
o subdirector que era um major ou tenente-coronel. Eu contestava que o livro,
ora essa, não era nem uma coisa nem outra, e ele, dando-me palmadinhas no
joelho mais próximo, dizia: - Ora, ora … nós sabemos -. Ao fim de um mês destas
periódicas sessões, o livro foi libertado, e para dizer a pura verdade
evidente, era realmente subversivo e, se não propriamente pornográfico, sem
dúvida que respeitavelmente obsceno. …”
Integrado num conjunto de iniciativas pessoais, em homenagem
a Jorge de Sena, pelo 90º aniversário do seu nascimento, que agora inicio, e
que terminarei com uma surpresa para os meus amigos, publicarei os 21 sonetos
de “As Evidências” fazendo anteceder cada um deles com as referências, mais ou
menos detalhadas, que o autor lhes faz nos “Diários”.
No Diário referente ao período de 23 de Agosto de 1953 a 20
de Outubro de 1954, no dia 12 de Fevereiro de 1954, escreveu:
“Hoje, pela manhã, surgiram-me vários fragmentos de versos
ou versos inteiros, que se me organizaram num poema e num soneto, que espero
seja o primeiro da sequência por que anseio há tanto. Julgo-os do melhor que
tenho feito, e satisfazem-me em comparação com o que, e raramente, andava
fazendo.”
I
Ao desconcerto humanamente aberto
entendo e sinto: as coisas são reais
como meus olhos que as olharam tais
a luz ou treva que há no tempo certo.
De olhá-las muito não as vejo mais
que a luz mutável com que a treva perto
sempre outras as confunde: entreaberto,
menos que humano, só verei sinais.
E sinta que as pensei, ou que as senti
eu pense, ou julgue nos sinais que vi
ler a harmonia, como ali surpresa,
oculta que era para eu vê-la agora,
meu desconcerto é o desconcerto fora,
e Deus um só pudor da Natureza.
12-2-1954
Jorge de Sena
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