Deixar uma marca no nosso tempo como se tudo se tivesse passado, sem nada de permeio, a não ser os outros e o que se fez e se não fez no encontro com eles,
Editado por Eduardo Graça
sábado, maio 3
25 de ABRIL- 25 de abril - 40 anos, 82
Fotografia de Hélder Gonçalves
Deixo que a palavra
tão incerta
teça
a liberdade a meio
deste Abril
para que a memória em Portugal não esqueça
tomando da flor
o cravo na matriz
teimando que a paixão
a tudo vença
dizendo não àquilo
que não quis
Maria Teresa Horta
Março 99
sexta-feira, maio 2
APENAS ISSO - 25 de abril - 40 anos, 81
Fotografia de Hélder Gonçalves
Dai-me ainda outro verão,
um verão do sul, redondo
lento maduro; um verão
de rolas frementes de cio,
de porosa alegria, de luz varrida
pela cal; dai-me
mais um verão rente à sombra
do pátio onde um rumor
cativo do poço sobe aos ramos;
um verão
limpo como o céu da boca;
mais dentro, mais fundo.
Ou por fim o silêncio.
Caindo a prumo.
Foz do Douro, 8/1/99
quinta-feira, maio 1
BREVE OLÊNCIA - 25 de abril - 40 anos, 80
Fotografia de Hélder Gonçalves
Estão cerrados todos os jardins,
onde asas voaram e se romperam as pedras.
Como esquecer as estrelas pousadas no verão
e a ciência exacta das flores claras de ar?
Estão cerrados todos os jardins,
queimados da fome, escarlates de treva.
Que tempo esvoaça, lacuna ou máscara,
pelo lento longo suor das noites?
Estão cerrados todos os jardins,
hoje ervas sem pálpebras, gritos sem boca.
Cativeiros de estátuas, deixaram que o tempo
durasse muito tempo, em campo entardecido.
Estão cerrados todos os jardins,
Em palavras vendidas que esconderam o mundo.
Os olhos ruídos soam a sombra
nos risos sem riso, nos corações calados.
Estão cerrados todos os jardins.
A pele cresce, digerimos o vazio.
As palavras articulam-se de ossos.
Mudada em terra, toda água morrerá.
Estão cerrados todos os jardins
e seus lazeres felinos, seus salmos de pé.
É a hora surda de cicatrizes sem beijos,
de muros soterrados e pulsos incolores.
Estão cerrados todos os jardins
e vão nascendo dólmenes e corujas de ouro.
Porque se agita ainda a cauda dos peixes,
buscando fogos extintos no termo dos rios?
Estão cerrados todos os jardins.
A nada a alma se assemelha.
O mar perdeu-se contra as paredes.
Vivemos do que não pudemos viver.
Estão cerrados todos os jardins,
são antigas as novidades do mundo,
obedecemos a ordens, a norte do futuro.
Mas ainda estamos nus. E respiraremos.
Orlando Neves
Estão cerrados todos os jardins,
onde asas voaram e se romperam as pedras.
Como esquecer as estrelas pousadas no verão
e a ciência exacta das flores claras de ar?
Estão cerrados todos os jardins,
queimados da fome, escarlates de treva.
Que tempo esvoaça, lacuna ou máscara,
pelo lento longo suor das noites?
Estão cerrados todos os jardins,
hoje ervas sem pálpebras, gritos sem boca.
Cativeiros de estátuas, deixaram que o tempo
durasse muito tempo, em campo entardecido.
Estão cerrados todos os jardins,
Em palavras vendidas que esconderam o mundo.
Os olhos ruídos soam a sombra
nos risos sem riso, nos corações calados.
Estão cerrados todos os jardins.
A pele cresce, digerimos o vazio.
As palavras articulam-se de ossos.
Mudada em terra, toda água morrerá.
Estão cerrados todos os jardins
e seus lazeres felinos, seus salmos de pé.
É a hora surda de cicatrizes sem beijos,
de muros soterrados e pulsos incolores.
Estão cerrados todos os jardins
e vão nascendo dólmenes e corujas de ouro.
Porque se agita ainda a cauda dos peixes,
buscando fogos extintos no termo dos rios?
Estão cerrados todos os jardins.
A nada a alma se assemelha.
O mar perdeu-se contra as paredes.
Vivemos do que não pudemos viver.
Estão cerrados todos os jardins,
são antigas as novidades do mundo,
obedecemos a ordens, a norte do futuro.
Mas ainda estamos nus. E respiraremos.
Orlando Neves
quarta-feira, abril 30
terça-feira, abril 29
DEPOIS - 25 de abril - 40 anos, 78
Fotografia de Hélder Gonçalves
Primeiro sabem-se as respostas.
As perguntas chegam depois,
como aves voltando a casa ao fim da tarde
e pousando, uma a uma, no coração,
quando o coração já se recolheu
de perguntas e de respostas.
Que coração, no entanto, pode repousar
com o restolhar de asas no telhado?
A dúvida agita
os cortinados
e nos sítios mais íntimos da vida
acorda o passado.
Porquê, tão tardo, o passado?
Se ficou por saldar algo
com Deus ou com o Diabo
e é o coração o saldo
porquê agora, Cobrança,
quando medo e esperança
se recolheram também sob
lembranças extenuadas?
Enche-se de novo o silêncio de vozes despertas
e de poços e de portas entreabertas
e sonham no escuro
as coisas acabadas.
Manuel António Pina
segunda-feira, abril 28
ANIVERSÁRIO
ANIVERSÁRIO
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.]
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho... )
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!
O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),]
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!]
Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...]
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,]
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado –,]
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...
15 de Outubro de 1929
Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)
domingo, abril 27
DA VOZ DAS COISAS - 25 de abril - 40 anos, 77
Fotografia de Hélder Gonçalves
Só a rajada de vento
dá o som lírico
às pás do moinho.
Somente as coisas tocadas
pelo amor das outras
têm voz.
Fiama Hasse Pais Brandão
Só a rajada de vento
dá o som lírico
às pás do moinho.
Somente as coisas tocadas
pelo amor das outras
têm voz.
Fiama Hasse Pais Brandão
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sexta-feira, abril 25
O POETA - 25 de abril - 40 anos, 76
Fotografia de Hélder Gonçalves
Trabalha agora na importação e exportação. Importa
metáforas, exporta alegorias. Podia ser um trabalhador por conta própria,
um desses que preenche cadernos de folha azul com números
de deve e haver. De facto, o que deve são palavras; e o que tem
é esse vazio de frases que lhe acontece quando se encosta
ao vidro, no inverno, e a chuva cai do outro lado. Então, pensa
que poderia importar o sol e exportar as nuvens. Poderia ser
um trabalhador do tempo. Mas, de certo modo, a sua
prática confunde-se com a de um escultor do movimento. Fere,
com a pedra do instante, o que passa a caminho da eternidade;
suspende o gesto que sonha o céu; e fixa, na dureza da noite,
o bater de asas, o azul, a sábia interrupção da morte.
quinta-feira, abril 24
sem título - 25 de abril - 40 anos, 75
Fotografia de Hélder Gonçalves
No verão, por vezes, o vento Leste invade
a urbe. O vento da meseta – que o povo
diz não trazer nada de bom -, seca tudo
na sua frente. Também a cidade
está cheia de pessoas que secam tudo
na sua frente. Só conhecem pássaros
em gaiolas, árvores em toros
para crepitarem nas lareiras. O vento
cai, os insectos que arrastou
adubam os canteiros. As pessoas
duram todo o ano, estão sempre
vigilantes nas suas teias. De quem
falo – perguntas –. Ignoro! Abri
o computador a pensar num poema
e o texto foi invadido por um vento
cálido que não sei
para onde se dirige. Esperarei
Setembro, outra atmosfera, poderei
sair de casa, ir até ao correio,
escrever mensagens em que as aves
chilreiem, façam ninhos primaveris,
e pensar a cidade como se eu fosse
um forasteiro, com olhos de espanto:
carregar a memória com o crepúsculo,
coleccionar metáforas para,
no regresso, depositar
sob o teu olhar, avançar a mão
para a floresta, galopar intra-muros,
ouvir depois o boletim meteorológico
para saber onde iremos amanhã.
quarta-feira, abril 23
Sem título - 25 de abril - 40 anos, 74
Fotografia de Hélder Gonçalves
Para que nasças no mês anterior
Para que nasças muito antes de chegares
Para que amanheças já aberta e recortada
No tempo anterior à tua vinda
Para que amanheças
Ó rosa anterior
Para que venhas
Mesmo antes de seres compreendida. Ainda
Antes da terra te poder gerar. Ó rosa
Já florida
Para que nasças muito antes de chegares
Para que amanheças já aberta e recortada
No tempo anterior à tua vinda
Para que amanheças
Ó rosa anterior
Para que venhas
Mesmo antes de seres compreendida. Ainda
Antes da terra te poder gerar. Ó rosa
Já florida
segunda-feira, abril 21
POEMA EM SALDO Nº 25 - 25 de abril - 40 anos, 73
Fotografia de Hélder Gonçalves
Uma data que regressa sempre
transparente à cabeça
um sino pendular nas cavernas do corpo
e então escrevê-lo é abrir as potências
do sangue, dos pés até à raiz
dos cabelos, deixar crescer
a vida circular dos dias
pelo silêncio poderoso
se fundamenta um olhar
um sonho uma estátua invisível
dentro da memória
ordena-se o esquecimento
mantendo sempre a respiração do Mundo
entre muitos e muitos horizontes.
José Alberto Mar
Gaia, 1999
domingo, abril 20
OS AMANTES OBSCUROS - 25 de abril - 40 anos, 72
Fotografia de Hélder Gonçalves
Nossos sentidos juntos fazem chama:
e as fantasias nossas vão soltar
os desejos desertos de quem ama
e em verso ou coração se quis tornar.
Nossos sentidos são matéria prima
de um canto que é mais leve do que o ar;
o mundo todo não nos adivinha:
somos sombra sem luz, sequer luar.
Que o corpo quebre a noite desolada,
que o corvo ceda a voz à escuridão:
mil luzes são o nome da amada;
quem se perdeu no verso é sem perdão.
sábado, abril 19
CIDADE DA AGONIA ou A PROMESSA POR CUMPRIR - 25 de abril - 40 anos, 71
Fotografia de Hélder Gonçalves
Um fulvo rubor, o último
no Tejo a anoitecer.
Que me segredas,
debruçada da janela,
sobre a água em flor?
Cerram-se os olhos do nosso bairro,
no Tejo a anoitecer.
Que me segredas,
debruçada da janela,
sobre a água em flor?
Cerram-se os olhos do nosso bairro,
as sombras desencontram-se no escuro
da indiferença e do medo.
A cintilação dos arranha-céus
da nova riqueza
é fria, inexorável.
Fugiram todas as pombas e as gralhas
e os corvos
das artérias nobres da cidade
e das ruas, becos, calçadas onde só restam
corpos estilhaçados como estrelas
e palavras, relâmpagos, lágrimas, silêncios,
fúria, rosas profanadas
e miríades de antenas de televisão,
sobejos de festim,
um campo de derrota.
Será alguma vez o homem
irmão do homem?
sexta-feira, abril 18
Sem Título - 25 de abril - 40 anos, 70
Fotografia de Hélder Gonçalves
Uma infância perfurada por zeppelins.
Hoje, de comando na mão, zappas.
És o canhoto de um anjo – melancolia
que te sufoca o amor e as veias,
uma a uma, esvaziadas de Deus.
Mas a que outra luz pode o coração
aceder se o lugar não foi capinado,
se a treva amarinha no imo líquido
das gavinhas sem tu a teres capinado –
e os anjos e os rinos quase extintos?
Vinte unhas: o escuro mate da morte.
António Cabrita
quinta-feira, abril 17
CANÇÃO DO RIO PROFUNDO - 25 de abril - 40 anos, 69
espelho na mão
penteando
ao pôr-do-sol
os cabelos
E vi o gnomo
escondido
guarda fiel dos segredos
que nenhum canto revela
nenhum pente
nenhum segredo
só o fulgor deste mundo.
Y.K. Centeno
penteando
ao pôr-do-sol
os cabelos
E vi o gnomo
escondido
guarda fiel dos segredos
que nenhum canto revela
nenhum pente
nenhum segredo
só o fulgor deste mundo.
Y.K. Centeno
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terça-feira, abril 15
Sem título - 25 de abril - 40 anos, 68
Fotografia de Hélder Gonçalves
Bendito sejas arado
que lavras
neste chão sagrado
por odisseias mil
as palavras
rubras e secretas
na boca dos poetas
proclamando Abril.
6/1/99
Papiniano Carlos
domingo, abril 13
O QUE PENSA SIM E O QUE PENSA NÃO - 25 de abril - 40 anos, 67
Fotografia de Hélder Gonçalves
Há o que pensa sim e diz que não
há o que pensa não e diz que sim
há aquele que decerto me odeia
e não faz senão rir-se para mim
Há o que diz que sim e diz que não
conforme a meia-cara com que fala
e aquele que diz sim que sim que sim
sem saber o motivo que o embala
Há o que pensa sim e diz que sim
e esse é concerteza meu irmão
esse que diz sim pensando sim
é o que luta por uma razão.
Fernando Miguel Bernardes
Há o que pensa sim e diz que não
há o que pensa não e diz que sim
há aquele que decerto me odeia
e não faz senão rir-se para mim
Há o que diz que sim e diz que não
conforme a meia-cara com que fala
e aquele que diz sim que sim que sim
sem saber o motivo que o embala
Há o que pensa sim e diz que sim
e esse é concerteza meu irmão
esse que diz sim pensando sim
é o que luta por uma razão.
Fernando Miguel Bernardes
sábado, abril 12
LIBERDADE - 25 de abril - 40 anos, 66
Era ainda a voz da juventude
quando a liberdade entrou
pelo canto da boca
As mãos acariciavam o sonho
enquanto o cheiro cinzento das grades
evadia os ideais
Hoje
em busca da palavra
o novo Abril amotina-se
na memória
Inconformada
pelo preço do não ser
arde agora
a palavra
traída
sem ousar … falar
26/1/99
Fernando Macias
pelo canto da boca
As mãos acariciavam o sonho
enquanto o cheiro cinzento das grades
evadia os ideais
Hoje
em busca da palavra
o novo Abril amotina-se
na memória
Inconformada
pelo preço do não ser
arde agora
a palavra
traída
sem ousar … falar
26/1/99
Fernando Macias
Fotografia de Hélder Gonçalves
quinta-feira, abril 10
DOURO DE MIE ALMA - 25 de abril - 40 anos, 65
Fotografia de Hélder Gonçalves
Ah! riu de ls mius amores!
Guardian de las streilhas.
Quanto gusto de ti
I de ls tous ancantos!
Que buòno vê
Ber las ailas a bolar.
Ls paixaricos a cantar.
Las fáias a assomar …
Oubir, scuitar …
Ls cachones a fungar.
Niébros i carrascos a silbar.
Pastores sues fraitas a tocar
L’auga a caminar
Sien parar …
Pa l mar eimenso …
A chorar …
Ah! Douro de mie alma!
Tu tenes, boç.
Sós fuônte de bida.
D’einergie i riqueza.
L sangre de la tiêrra.
Como tu.
Nun hai eigual.
Sós la lhuç de Miranda.
Lhuç de Pertual!
Domingos Raposo
(Em língua mirandesa.)
terça-feira, abril 8
POST-CARD (Os velhos, os pombos, os gatos) - 25 de abril - 40 anos, 64
Fotografia de Hélder Gonçalves
Alguns habitantes queixam-se dos pombos. Do mal
que fazem às fachadas, às estátuas, à pintura
dos automóveis. Os pombos não voam a gasolina
e têm humaníssimos hábitos como a gula, as
rivalidades do cio, a sede e a urgência
de defecar. Não entendem coleiras, gaiolas, servidões
de casota, falta de jardins e adornos
de penas alheias. E por esta divina ignorância
recebem, às vezes, algum milho displicente
dádiva de crianças para a fotografia ou de benignos
velhos reformados. Algumas mulheres continuam a
socorrer os antiquíssimos ( e terrestres) gatos
vadios. Gatos da nossa infância. Das traseiras,
dos muros, dos quintais – o Sindbad, a Pardoca – com
restos de arroz em papéis engordurados. Carinhosas
velhas, atentas à famélica e materna condição
das ninhadas, enquanto os pombos e os velhos
debicam espaços onde levavam asas. Por instantes
retomam uma destronada simbologia:
Eles no Céu, elas na Terra.
Inês Lourenço
Porto, 98
que fazem às fachadas, às estátuas, à pintura
dos automóveis. Os pombos não voam a gasolina
e têm humaníssimos hábitos como a gula, as
rivalidades do cio, a sede e a urgência
de defecar. Não entendem coleiras, gaiolas, servidões
de casota, falta de jardins e adornos
de penas alheias. E por esta divina ignorância
recebem, às vezes, algum milho displicente
dádiva de crianças para a fotografia ou de benignos
velhos reformados. Algumas mulheres continuam a
socorrer os antiquíssimos ( e terrestres) gatos
vadios. Gatos da nossa infância. Das traseiras,
dos muros, dos quintais – o Sindbad, a Pardoca – com
restos de arroz em papéis engordurados. Carinhosas
velhas, atentas à famélica e materna condição
das ninhadas, enquanto os pombos e os velhos
debicam espaços onde levavam asas. Por instantes
retomam uma destronada simbologia:
Eles no Céu, elas na Terra.
Inês Lourenço
Porto, 98
segunda-feira, abril 7
tábua - 25 de abril - 40 anos, 63
Fotografia de Hélder Gonçalves
haverá ainda esta lua de água
se a cinza nos cobrir os próprios passos.
março, noite a arder, o rumor e a frágua,
e estreiteza de todos os espaços.
à cidade doámos outra fome,
um arrepio de canto e florescer,
barcos correndo as ruas já sem nome,
um jeito de euforia a incandescer.
e andámos inscrevendo o timbre azul
onde era o abandono e a solidão,
a folha ressequida, a finitude.
caminhamos agora para sul.
a harpa e o destino em cada mão
mesmo que a vida fira e nos demude.
José Manuel Mendes
haverá ainda esta lua de água
se a cinza nos cobrir os próprios passos.
março, noite a arder, o rumor e a frágua,
e estreiteza de todos os espaços.
à cidade doámos outra fome,
um arrepio de canto e florescer,
barcos correndo as ruas já sem nome,
um jeito de euforia a incandescer.
e andámos inscrevendo o timbre azul
onde era o abandono e a solidão,
a folha ressequida, a finitude.
caminhamos agora para sul.
a harpa e o destino em cada mão
mesmo que a vida fira e nos demude.
José Manuel Mendes
domingo, abril 6
25 DE ABRIL DE 1974 - 25 de abril - 40 anos, 62
Fotografia de Hélder Gonçalves
Há dias em que os dentes se descerram
deixa o sangue de correr pelas avenidas
Há dias em que a morte se protege
da fúria desse sangue redivivo
Há dias que nascem sem um nome
e é preciso baptizá-lo sem demora
com um nome de flor ou de miragem
Há dias em que o sol muda de casa
para os bairros silenciados da cidade
Há dias que se tingem de vermelho
com risos e palavras inauditas
Há dias em que as praças se levantam
num tumulto de gestos com sentido
Há dias que se enchem de ambição
civil mas nua como um eco
Há dias em que o silêncio se cala
e uma voz ergue um canto nunca ouvido
João Pedro Mésseder
Há dias em que os dentes se descerram
deixa o sangue de correr pelas avenidas
Há dias em que a morte se protege
da fúria desse sangue redivivo
Há dias que nascem sem um nome
e é preciso baptizá-lo sem demora
com um nome de flor ou de miragem
Há dias em que o sol muda de casa
para os bairros silenciados da cidade
Há dias que se tingem de vermelho
com risos e palavras inauditas
Há dias em que as praças se levantam
num tumulto de gestos com sentido
Há dias que se enchem de ambição
civil mas nua como um eco
Há dias em que o silêncio se cala
e uma voz ergue um canto nunca ouvido
João Pedro Mésseder
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sexta-feira, abril 4
PALAVRAS (PARA UM PANFLETO) - 25 de abril - 40 anos, 61
Fotografia de Hélder Gonçalves
as palavras metem-se por baixo das portas
e são os versos (que medo!) da insubmissão;
as palavras atacam os poderes atravessadas
nos dentes de uma boca que morde, fala, grita.
as palavras carregadas de sentido estão aqui,
estão nestes versos que te aparecem nas mãos,
como um pássaro de asas de lume e olhos grenat,
como um poema que não se conforma nos livros.
as palavras, cortantes como essas lâminas, abrem
os pulsos dos anjos insensatos, erguem-se, foices,
ceifando as cabeças dos burros da cidade fechada,
as palavras preenchem os olhos vazios das pessoas.
as palavras distribuem-se como poemas volantes
nas vésperas de um primeiro de maio, em abril,
para que conste e sirva de aviso aos caducos,
para que em cada manhã sejam o pão e a estrela.
as palavras, acreditem ou não, meus caros senhores,
caem do céu nas nossas mãos e os olhos, doidos!,
não acreditam que os ventos as levem para longe,
as palavras escrevem-se para sempre nestas nuvens.
José Viale Moutinho
quinta-feira, abril 3
O QUE AQUELA NOITE ME QUIS DAR - 25 de abril - 40 anos, 60
Fotografia de Hélder Gonçalves
Eu não estava em casa nessa noite, filho,
nem podia estar. Estava nas ruas com os soldados
que rumavam às rádios e aos quartéis, engalanados
de sombra e de júbilo, a ver o que aquela noite
ia dar, o que a nossa liberdade prometia ser.
E tu, filho, tinhas a idade rumorejante
desse Abril embalado por uma canção do Zeca.
Como posso eu explicar-te tudo aquilo
que tu nasceste para aprender, para viver?
Eu estava aquartelado no meu silêncio
de pétalas, sílabas e marés, no meu dédalo
de vozes embriagadas pelo vento,
na coragem errante das pelejas da infância
e pouco ou nada sabia do mistério desse mês
capaz de transformar em assombro as nossas vidas.
Sim, sou eu neste retrato antigo,
a receber em festa os exilados, os que chegavam
com grinaldas de cantigas e a flor de uma ilusão
bordada a sangue e espuma no capote das nocturnas caminhadas.
Sim, sou eu a escrever a primeira reportagem
do primeiro de muitos dias em que o tempo
deixou de contar, em que os relógios
se tornaram corolas de paixão e riso
na lapela larga da alegria desta pátria.
Eu não estava em casa nessa noite, filho,
estava a afinar o coração pelo tom
das mais belas melodias que alguém pode aprender
para dar a quem ama a paz de um sono sem tormento.
José Jorge Letria
Dezembro de 1998
segunda-feira, março 31
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