quarta-feira, dezembro 1

Fernando Pessoa (dois poemas)

Eu amo tudo o que foi

Eu amo tudo o que foi,
Tudo o que já não é,
A dor que já me não dói,
A antiga e errônea fé,
O ontem que dor deixou,
O que deixou alegria
Só porque foi, e voou
E hoje é já outro dia.

Fernando Pessoa, 1931.


Eu tenho idéias e razões

Eu tenho idéias e razões,
Conheço a cor dos argumentos
E nunca chego aos corações.

Fernando Pessoa, 1932

(A crise política deu-me para isto...)

A Grandeza

Desculpem a inconveniência. Na nossa sociedade há pessoas boas e competentes. Mas a necrologia política está cheia de cruzes anunciando o seu falecimento. Uma pequena parte delas é, por vezes lembrada, para um “adeus, até sempre”.

É esse um pouco o sentido do artigo de Cavaco Silva. O seu regresso à política partidária é improvável. Mesmo a sua candidatura presidencial é uma incógnita. “O sistema”, como diria o Dias da Cunha, está a funcionar. Para desmontar “o sistema”, desculpem a frontalidade, será porventura necessária uma revolução.

É horrível pensar nestes termos pois eu sei que a democracia representativa contém, em si mesma, a “capacidade para se regenerar”. Contém? Todos os debates, em curso, são tão “com água lisa, por favor”. Sempre os mesmos “pesos pesados”.

Mas a democracia representativa não poderá inventar uma revolução de novo tipo? Basta assegurar que a maioria dos governantes não sejam profissionais da política. Quero dizer os políticos têm que ser obrigados a aproximar-se da vida real. Não nas voltas das campanhas aos beijos e abraços com o povo.

A democracia representativa tem que se reformar a sério. É difícil? Utópico? Basta minguar o peso do estado sem lançar às urtigas as suas responsabilidades. É a produtividade? Pois é. Basta refundar o conceito de serviço público. O facto do cidadão estar ao serviço da comunidade ser mais do que uma nova pena para os crimes leves. Passar a ser uma “grande coisa” e não uma atitude de “totós”.

Os valores senhores, os valores! Não esses, os que se escondem na arca, ou se desvalorizam na banca. Os outros. Os intangíveis! Os não mercantis! Não faz mal nenhum haver eleições anuais até se descobrir uma nova fórmula de devolver à política a sua grandeza.

GRANDEZA. O contrário de sacanice. De sabujice. De aldrabice. De cobardia. É o que me apraz comentar neste primeiro dia depois do PR ter ressuscitado.

(Notas acerca das Eleições Antecipadas - 1)

No Parapeito

Não fui ao lançamento do livro da Rita. Estava doente. Mas foram a Guida e o Manuel. Sei como ela escreve bem. Já o li.

Identifico muitas personagens reais e algumas situações. Bonitos textos. A Rita escreve bem. Desde sempre.

“No Parapeito”, Rita Ferro Rodrigues, Edições Quasi, prefácio de Jorge Reis-Sá.

terça-feira, novembro 30

Poemas para Lili

Pia, pia, pia
O mocho.
Que pertencia
A um coxo.
E meteu o mocho
Na pia, pia, pia...

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Levava eu um jarrinho
P'ra ir buscar vinho
Levava um tostão
P'ra comprar pão:
E levava uma fita
Para ir bonita.

Correu atrás
De mim um rapaz:
Foi o jarro p'ra o chão,
Perdi o tostão,
Rasgou-se-me a fita...
Vejam que desdita!

Se eu não levasse um jarrinho,
Nem fosse buscar vinho,
Nem trouxesse uma fita
Pra ir bonita,
Nem corresse atrás
De mim um rapaz
Para ver o que eu fazia,
Nada disto acontecia.

Fernando Pessoa

(Os últimos acontecimentos dão-me para isto!)

Adiamento

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-rne para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o rnundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...

Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-rne toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...

O porvir...
Sim, o porvir...

Álvaro de Campos

Manuel Paiva (II)

O "Público", de hoje, publica ainda uma pequena resenha acerca de Manuel Paiva, e das suas opiniões, que não está disponível na edição online. O seu teor interessa-me, por diversas razões, e é o seguinte:

“Manuel Paiva, físico de 62 anos, queria, há muitos anos, visitar escolas básicas da Serra da Estrela. Fê-lo na semana passada. “Tenho uma grande admiração pelas pessoas que trabalham toda a vida. É triste ver que as gerações actuais não transformaram o trabalho manual no gosto pelo trabalho intelectual. Há que cultivar o mérito.”

Conta que nessas escolas encontrou professores incríveis: “São pessoas simples, mas ninguém quer saber o que têm feito pela divulgação da ciência”.

O físico acha que temos de ter uma especial atenção pelos filhos dos imigrantes do leste europeu: “São pessoas que estimam o conhecimento. São cérebros de obra, mais do que mão de obra. O populismo vai apregoar que estão a roubar o nosso lugar. Mas isso é porque o fascismo modelou a nossa mentalidade.”

Manuel Paiva

Manuel Paiva um cientista português, consagrado no estrangeiro, afirma que "Os Portugueses Não Perdoam o Sucesso". A frase pode servir para encobrir muita mediocridade mas, no essencial, é uma verdade que explica muito bem as dificuldades do processo de desenvolvimento em Portugal.

“Manuel Paiva, físico, director do Laboratório de Física Biomédica da Universidade Livre de Bruxelas, lembra-se ainda do dia em que, em 1964, partiu num comboio, de Celorico da Beira, "com raiva entre os dentes." Queria ser físico, mas isso significava então ser professor do secundário. Por isso partiu para a Bélgica. Hoje olha para o que Portugal faz pela investigação.“

Público on line

segunda-feira, novembro 29

Exames

Ao longo da nossa vida somos submetidos a provas sem fim. Exames, análises, diagnósticos, avaliações, classificações; um interminável cortejo de sujeições às leis da vida em sociedade. Comparam-nos e comparamo-nos com os outros numa incessante competição pela sobrevivência. Com mais ou menos bonomia vamos passando ou chumbando.

Os veredictos são ditados por outros que aceitamos que, de uma forma ou outra, nos julguem. Contei, tempos atrás, como chumbei num exame oral de filosofia. No meu 6º ano de liceu fui admitido à oral de filosofia com 15 valores. De nada me valeu o brilhantismo dessa nota. O “imperativo categórico” de Kant serviu de pretexto à examinadora para me mostrar quem mandava e quem devia obedecer.

Doutra vez, já na faculdade, fui confrontado com uma situação oposta. Na oral de uma cadeira ministrada pela saudosa professora Aurora Murteira o meu evidente desejo de chegar ao fim do acto levou-a a indagar-me se não gostaria de obter uma boa nota final. Fiquei surpreendido pelo seu interesse no meu sucesso. Sempre me surpreende o interesse dos outros por mim.

Disse-lhe, com sinceridade, que não me preocupava, em especial, a nota que haveria de me atribuir. Ficou, claramente, surpreendida com o meu desprendimento. A nota foi a que foi. Não me lembro qual mas, certamente, a nota justa para ela e a suficiente para mim.

Absorto - 1º Aniversário (7 de 17)

Crise?

Crise? Qual crise? Não há problema! "Uma andorinha não faz a primavera!"

domingo, novembro 28

Estabilidade

Não esperem qualquer medida drástica do PR. A demissão de um ministro não passa de um acontecimento vulgar. As suas razões divulgadas, em extensa missiva, não passam de um despautério próprio da mais baixa intriga política.

Desagregação do governo? Só por se ter demitido um ministro? Não exageremos. Ele há tantos! A estabilidade está mais do que garantida. E o regular funcionamento das instituições democráticas. Mais que fixe. Venha o orçamento de “continuidade” e está fechado o círculo que levará, em bonança, o governo até ao verão de 2005.

Há pessoas que não compreendem a verdadeira estabilidade. Estabilidade é "isto"!

A tropa

Em Outubro de 1971 cumpri a jornada obrigatória de me apresentar em Mafra. O velho Convento era o destino de todos os jovens licenciados que fossem considerados aptos para cumprir o serviço militar obrigatório.

O problema maior era o espectro da mobilização para uma das frentes da guerra colonial. No primeiro dia fiz a viagem de autocarro. Fui sem revolta e em busca de nada. Cumprir uma obrigação e, se possível, lutar contra a guerra colonial. Eu sabia que o quartel era uma instituição concentracionária clássica.

A tropa, naquela época, não era uma curta experiência de aprendizagem dos métodos próprios da guerra. Era um longo exercício de sobrevivência psicológica e física às exigências da defesa de Portugal como “Pátria una e indivisível do Minho a Timor”.

Era um teste à capacidade pessoal de resistência a uma caminhada pelo inferno dos labirintos da irracionalidade da guerra. Fui e ganhei forças para combater, por dentro, a solidão e as provações.

Um dia, na parada, o Major, Comandante da Companhia, em voz ciciada, avisou-me de que estava na lista dos “subversivos”. Ouvi e calei. Nunca mais esqueci o seu gesto que tomei à conta de generosidade. Não o conhecia. Era um oficial discreto que cumpria com os seus deveres. Eu cumpria com os meus. Nada o obrigava a correr o risco de me avisar.

Este episódio ajudou-me a aprender como é difícil, no mundo dos homens, ajuizar acerca da sua natureza e dos valores que os movem na sua relação com os outros. Não esqueci a nobreza do major.

Absorto - 1º Aniversário (6 de 17)

Henrique Chaves

A Lusa anuncia e o Público replica a notícia da demissão de Henrique Chaves empossado, há 4 dias, pelo PR.

Ah Senhor Presidente, estabilidade como esta, não há outra igual!

“Ministro do Desporto e Juventude apresenta demissão.

O Ministro do Desporto, Juventude e Reabilitação, Henrique Chaves, anunciou hoje a sua demissão do Governo, menos de uma semana após ter assumido o cargo.Num comunicado citado pela Lusa, Henrique Chaves, até há poucos dias ministro-adjunto do primeiro-ministro, refere que não concebe "a vida política e o exercício de cargos públicos sem uma relação de lealdade entre as pessoas", nem "o exercício de qualquer missão privada ou pública, sem o mínimo de estabilidade e coordenação".


Jerónimo de Sousa

Até gostava de gostar de Jerónimo de Sousa. O operário que alcança o topo da hierarquia do PCP. Desde Bento Gonçalves que tal não acontecia. Mas não consigo gostar.

O problema não é a personagem apesar da política ser muito determinada pelos protagonistas. Nem o rito da sua entronização. Nem a contracção da sua face. O problema é que o PCP, assumindo o marxismo-leninismo, como doutrina, e o centralismo democrático, como modelo de organização, deixou de pertencer, definitivamente, ao nosso tempo.

Nada acrescenta à esquerda se a esquerda pretender acrescentar alguma coisa ao desenvolvimento da sociedade portuguesa. O PCP é, para falar claro, uma clareira de nada. Por mais que engrosse e endureça o seu discurso Jerónimo de Sousa representa a exaustão política e eleitoral do PCP.

É o crepúsculo de uma utopia que não tem mais realidade para se firmar. O regresso às origens é um sinal de que o PCP se aproxima do fim.

sábado, novembro 27

Cavaco Silva ao Ataque

Cavaco Silva escreve hoje um artigo no Expresso. O mesmo pode ser lido, na íntegra, no IR AO FUNDO E VOLTAR.

O artigo intitula-se “Os políticos e a lei de Gresham” e pode ser resumido por este destaque que o Expresso lhe confere:

«Cabe às elites profissionais contribuírem para afastar da vida partidária portuguesa a sugestão da lei de Gresham, isto é, contribuírem para que os políticos competentes possam afastar os incompetentes.»

Qual o verdadeiro significado deste artigo? Tal como a intervenção proferida tempos atrás por Guterres, que também publiquei na íntegra, este artigo indicia que Cavaco se prepara para se apresentar como candidato presidencial.

Desde logo porque, ao contrário dos escritos anteriores de Cavaco, este artigo assume uma natureza declaradamente política. O que Cavaco diz, com brutalidade, é que a qualidade dos políticos que ocupam a ribalta – e não só – atingiram o grau zero da competência. Quem são esses políticos a que Cavaco se refere? Não é difícil imaginar quais sejam!

Cavaco tem razão apesar de ter contribuído fortemente para esta degradação da qualidade dos políticos. Mas o seu ataque/alerta não deixa de colocar no centro do debate uma questão crucial para a democracia portuguesa: as reformas do nosso sistema partidário não pode ser eternamente adiadas nem circunscrever-se a uma mera questão de cosmética.

É preciso ir mais fundo. E para isso os “políticos competentes” devem afastar os “incompetentes”. Resta saber quem são uns e outros!

Populismo Justiceiro

O início do julgamento do processo “Casa Pia” serviu para mostrar a que ponto chegou, no nosso país, o “populismo justiceiro”. Deu para confirmar as piores expectativas a respeito das relações promíscuas entre os poderes e a comunicação social.

Sabemos que se não trata de um exclusivo português. As execuções sumárias estiveram à vista de todos. As condenações na praça pública tornaram-se um “programa de grande audiência”.

Não há limites para o espectáculo grosseiro dos insultos e dos apelos à fogueira. Os responsáveis políticos da extrema-direita rejubilam no seu silêncio manhoso. Os seus sequazes açulam a multidão a que se faça justiça.

Assim se faz o caminho para enfraquecer os poderes democráticos que deviam ser fortes. E para fortalecer os aspirantes a tiranos que deviam ser fracos. Ver, hoje no Público, Vasco Pulido Valente.


sexta-feira, novembro 26

Fernando Vale

Fernando Vale era um homem que pertencia aquela extirpe de homens invulgares pela coerência, simplicidade e longevidade. O PS histórico perdeu um dos seus fundadores que se confunde com a 1ª República.

Algumas coincidências: a sua morte foi anunciada pelo Presidente da Câmara Municipal de Arganil que conheci bem aquando da negociação do contrato de concessão da Estalagem de Piódão entre aquela edilidade e o INATEL. Vale é natural de Coja, terra da minha amiga Teresa, que, no ME, me tem dedicado uma amizade sem falhas à qual não tenho correspondido como devia.

Homens bons. Mulheres de fé. Depois dos acontecimentos de ontem, eivados de ódio e ressentimento, evocar a morte de Fernando Vale é, paradoxalmente, um bálsamo para a alma. Apesar do sentimento de perda.

quinta-feira, novembro 25

A Queda

O dia estava frio. Tinha nevado, com intensidade, nas terras altas nos dias anteriores. Sempre gostei de visitar os lugares onde decorrem actividades sob minha responsabilidade. E tanto quanto possível experimentar participar nas mesmas. Esta era uma actividade na área do designado “desporto aventura”. Num dos mais extraordinários rios de Portugal: o Paiva.

O degelo tinha começado e as águas corriam altas e rápidas por entre os rochedos. Tudo estava preparado para a expedição. A tarefa era a descida do rio Paiva na modalidade de “rafting”.
Nada de especial. Percurso de dificuldade intermédia. Julgo que éramos 7 ao todo. Os aventureiros iam vestidos a rigor sem descurar qualquer detalhe de segurança. O monitor era um profissional experimentado e sabedor. A equipa era forte e destemida. Não cito os nomes pois não me lembro de todos com exactidão.

O início da descida correu dentro do normal. Mas o ressalto numa rocha, não sei como, fez com que eu caísse do barco à água. Após a queda iniciei uma descida aos infernos. Fui abraçado pelas águas tumultuosas e arrastado pela corrente. Fui ao fundo e voltei vezes sem conta. Os meus companheiros de aventura bem procuraram agarrar-me mas a tarefa era difícil. Imagino a sua aflição.

Naveguei centenas de metros sem controlo e finalmente fiquei à tona numa zona protegida das correntes mais fortes. Sobrevivi. Seguiu-se a retirada trepando uma escapa íngreme que não tinha fim. À força de braços os meus companheiros, com o apoio de cordas, içaram-me até ao cimo. Só no fim recuperei da hipotermia.

No louco e aterrador mergulho pelas águas límpidas e turbulentas do Paiva passaram no visor da minha memória, exclusivamente, imagens do meu filho. Quando regressei a casa era tarde e estavam todos a dormir. As faces de minha mulher e do meu filho estavam serenas. Deitei-me e adormeci. Só muito mais tarde se aperceberam do que esteve para me acontecer.
Absorto - 1º Aniversário (5 de 17)

O Binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo.

O Binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo.
O que há é pouca gente para dar por isso.

óóóó---óóóóóó óóó---óóóóóóó óóóóóóóó

Álvaro de Campos, 15-1-1928
(O vento lá fora.)

quarta-feira, novembro 24

"O salto"

A época era de pesadelo. O último lustro da década de 60 foi duro. Lutas e mais lutas. Crises e mais crises. O Maio de 68. A crise de 69. Sentia-se no meio estudantil o ambiente pesado da vigilância e repressão policiais. Os activistas eram especialmente seguidos e provocados.

Quem se expunha na actividade associativa legal, tolerada, era inevitavelmente referenciado pela polícia política do regime. Corriam-se riscos. Temia-se a prisão a qualquer momento. Abundavam os rumores e choviam os avisos. Aqueles que, como eu, acreditavam, e acreditam, no progresso nunca se deixaram intimidar. A cada um de nós coube a sua sorte.

Um dia alguém me convenceu que a minha prisão estava iminente. Pois bem, havia que tomar uma decisão. Manter a actividade? Entrar na clandestinidade? Ficar ou partir? Não pertencia, nem nunca pertenci, ao Partido Comunista que era a única organização verdadeiramente organizada em termos de clandestinidade. Não podia arriscar uma caricatura de vida clandestina sem rede. Optei por “dar o salto”. Destino: Paris.

Combinei com uns amigos os detalhes. Fizeram-se os contactos com quem havia de nos “passar”. Tomei as providências necessárias. Despedida discreta e dramática de quem mais amava. Rapar a barba. Tomar o comboio na direcção do Porto. Ponto de encontro: restaurante “Ché-Lapin”, à hora de almoço. Almoçamos e esperamos uma eternidade pelo contacto. Não apareceu ninguém. O contacto falhara. Ainda hoje não sei a razão. Nunca mais falei com o dito.

Regresso a Lisboa. Reencontros inesperados. Ao tomar o meu lugar habitual na “Esplanada do Jardim da Estrela” senti a extraordinária sensação de não ser reconhecido por ninguém. Nem sequer pelo empregado que me servia todos os dias. Só a minha voz me atraiçoou. Sempre me reconhecem pela voz.

Nunca cheguei a ser preso. Segui o meu caminho. Por um triz estive para ser um "falso exilado". Felizmente o destino protegeu-me e nem os meus pais chegaram a saber da aventura.
Absorto - 1º Aniversário (4 de 17)

Política plástica

Sou sincero. Não vi com atenção a entrevista do PM a Judite de Sousa. Passei por lá uns segundos. O suficiente para entender a natureza da entrevista.

Depois já li o que JPP escreveu. Está tudo dito. A lógica é a de aparecer ou morrer. Já escrevi aqui acerca da natureza da relação entre o PM e a comunicação.

Há uma banda musical que ostenta uma designação muito interessante: é a “banda plástica”. Fazem muito bem animação de rua, tocam bem, vestem-se de forma divertida, fazem da música uma autêntica diversão. Gosto muito da “banda plástica”.

A “política plástica” é bem menos divertida. Era preciso estar vestido a preceito, tocar boa música, aparentar, ao menos, um ar divertido. É provável que o problema seja meu. Não estou habituado ao estilo.

Tenho uma fé profunda na capacidade dos homens para se fazerem entender. Não creio que o PM não se faça entender. Aqueles que o ouvem têm que acreditar que ele acredita naquilo que diz. É esse o problema. O PM não faz com que os outros acreditem que ele acredita. É um problema de credibilidade.

Na “banda plástica” não é preciso acreditar. Gosta-se ou não se gosta. Com o PM é preciso acreditar. Mesmo que não se goste. Mas, além dos indefectíveis, alguém acredita? Há quem diga que este é um problema de toda a política contemporânea. É a autenticidade que se ausentou para parte incerta.