domingo, abril 17

Frank O´Hara


Autobiographia Literaria
by Frank O´Hara

When I was a child
I played by myself in a
corner of the schoolyard
all alone.

I hated dolls and I
hated games, animals were
not friendly and birds
flew away.

If anyone was looking
for me I hid behind a
tree and cried out "I am
an orphan."

And here I am, the
center of all beauty!
writing these poems!
Imagine!

*

Imaginem!
Réplica ao poema “Autobiographia Literaria”
de Frank O’ Hara

Quando era pequeno
tinha vergonha
e na escola
que ficava perto de casa
não sabia ao certo
o meu lugar

Brincava sozinho
imaginando o cheiro dos brinquedos
na feira do Carmo
e no caminho de casa
sonhava alto
a caminhar

Eu não cultivava os amigos
excepto dois e admiráveis
como os gestos ternos
de meus pais
que me ensinaram a liberdade
de esperar

Caminhei por entre
os silêncios
das gentes à minha volta
que esperavam de mim
o curso superior
e talvez casar

O lugar da minha infância
agora sou eu próprio,
imaginem!

Lisboa, 26 de Março de 2003

(A título excepcional, e porque é Abril, um poema que escrevi em homenagem a Frank O´Hara antecedido do poema original, em inglês, que inspirou o meu. A fotografia é de Helder Gonçalves e como todas as que tenho publicado, de sua autoria, é um original que a sua amizade me permite publicar.)

ALL-STARS


All-Stars - Fotografia de Margarida Ramos

Esta fotografia dos velhos All-Stars que o meu filho colocou em exposição no seu quarto tem merecido uma busca enorme a partir do Google. Eis como uma relíqua que se poderia transformar em lixo se transforma num objecto de culto.

Those are "The" old All Star shoes, from my son, exposed on his bad room. Google found this photo and since then it deserves a big request from many google users. Surprising, how something that could be considered as carbage, can becames a symbol.

sábado, abril 16

SULFATOS


O ex-ministro da saúde regressou ao Grupo Mello. O ex-ministro da saúde, no Grupo Mello, não terá nada a ver com os negócios da saúde do Grupo Mello. Vai dedicar-se ao negócio dos sulfatos!

Se tivesse sido ministro dos sulfatos regressaria, ao Grupo Mello, para tratar dos negócios da saúde e não teria nada a ver com o negócio dos sulfatos!

Estão a perceber?

ACONTECEU-ME



Eu vinha de comprar fósforos
e uns olhos de mulher feita
olhos de menos idade que a sua
não deixavam acender-me o cigarro.
Eu era eureka para aqueles olhos.
Entre mim e ela passava gente como se não passasse
e ela não podia ficar parada
nem eu vê-la sumir-se.
Retive a sua silhueta
para não perder-me daqueles olhos que me levavam espetado
E eu tenho visto olhos!
Mas nenhuns que me vissem
nenhuns para quem eu fosse um achado existir
para quem eu lhes acertasse lá na sua ideia
olhos como agulhas de despertar
como íman de atrair-me vivo
olhos para mim!
Quando havia mais luz
a luz tornava-me quase real o seu corpo
e apagavam-se-me os seus olhos
o mistério suspenso por um cabelo
pelo hábito deste real injusto
tinha de pôr mais distância entre ela e mim
para acender outra vez aqueles olhos
que talvez não fossem como eu os vi
e ainda que o não fossem, que importa?
Vi o mistério!
Obrigado a ti mulher que não conheço.

Almada Negreiros

Publicado em Almada: O Escritor - O Ilustrador, 1993

sexta-feira, abril 15

"a própria política é feita da mudança dos homens"


Foto de amistad

No último dia de Junho de 2004, em “Citações-4”, ensaio a mais curta e violenta crítica à eventual mudança de governo, sem a realização de eleições legislativas, com a mais longa citação de Camus assinalada a negro:

Voltando à questão dos "chefes". A mudança dos homens é a essência da política. A citação do dia é um pouco mais longa do que tem sido habitual. Mas parece-me que ilustra, com muita acuidade, uma faceta da crise política actual. A mudança do "chefe" da actual maioria representa uma profunda alteração da situação política.

Não é um detalhe que possa encontrar solução num arranjo de bastidores quando todos sabemos que "a própria política é feita da mudança dos homens".

E esta mudança é demasiado estruturante da própria política para não ser legitimada pelo mais nobre dos mecanismos da democracia representativa: o voto popular.

"Curioso. Historiadores inteligentes investigando a história de um país empregam todas as suas forças a preconizar tal política, realista por exemplo, a que se devem, segundo lhes parece, as maiores épocas desse país.

Apontam eles próprios todavia que esse estado de coisas não pôde durar porque imediatamente um outro homem de Estado ou um novo regime vieram e tudo estragaram.Nem por isso deixam de defender uma política que não resiste à mudança dos homens, enquanto se sabe que a própria política é feita da mudança dos homens. É que só pensam ou escrevem para a sua época.

Alternativa para os historiadores: cepticismo ou uma teoria política que não dependa da mudança dos homens (?)."

(Albert Camus, "Cadernos" - Caderno nº 4 - Janeiro 1942/Setembro 1945 - Livros do Brasil)

PARA O ZÉ


Para o Marcelo do pentimento com amizade

Divago, quando o que quero é só dizer
te amo. Teço as curvas, as mistas
e as quebradas, industriosa como abelha,
alegrinha como florinha amarela, desejando
as finuras, violoncelo, violino, menestrel
e fazendo o que sei, o ouvido no teu peito
para escutar o que bate. Eu te amo, homem, amo
o teu coração, o que é, a carne do que é feito,
amo sua matéria, fauna e flora,
seu poder de perecer, as aparas de tuas unhas
perdidas nas casas que habitamos, os fios
da tua barba. Esmero. Pego tua mão, me afasto, viajo
pra ter saudade, me calo, falo em latim pra requintar meu gosto:
"Dize-me, ó amado da minha alma, onde apascentas
o teu gado, onde repousas ao meio-dia, para que eu não
ande vagueando atrás dos rebanhos de teus companheiros".
Aprendo. Te aprendo, homem. O que a memória ama
fica eterno. Te amo com a memória, imperecível.
Te alinho junto das coisas que falam
uma coisa só: Deus é amor. Você me espicaça como
o desenho do peixe da guarnição de cozinha, você me guarnece,
tira de mim o ar desnudo, me faz bonita
de olhar-me, me dá uma tarefa, me emprega,
me dá um filho, comida, enche minhas mãos.
Eu te amo, homem, exatamente como amo o que
acontece quando escuto oboé. Meu coração vai desdobrando
os panos, se alargando aquecido, dando
a volta ao mundo, estalando os dedos pra pessoa e bicho.
Amo até a barata, quando descubro que assim te amo,
o que não queria dizer amo também, o piolho. Assim,
te amo do modo mais natural, vero-romântico,
homem meu, particular homem universal.
Tudo que não é mulher está em ti, maravilha.
Como grande senhora vou te amar, os alvos linhos,
a luz na cabeceira, o abajur de prata;
como criada ama, vou te amar, o delicioso amor:
com água tépida, toalha seca e sabonete cheiroso,
me abaixo e lavo teus pés, o dorso e a planta deles
eu beijo.

Adélia Prado, In "Um Jeito e Amor"
Bagagem

Fotografia de Helder Gonçalves

Esquecimentos

O "Director Geral dos Impostos", Paulo Macedo, esqueceu-se de pagar, em tempo, uma prestação da Contribuição Autárquica. Já a ex-Ministra das Finanças, que o nomeou, se tinha esquecido de declarar ao fisco, em tempo, uma outra “coisa qualquer”.

Todos nos esquecemos sempre de alguma coisa. Mas quem assume funções de topo na administração fiscal não pode esquecer-se de nenhuma das suas obrigações fiscais. A verdade é que, nestas questões de impostos, só o BCP não se esquece nunca de nada!

Mas nada me leva a simpatizar com esta campanha que o DN está conduzir contra Paulo Macedo. Repugnam-me estes métodos conduzidos por mãos ocultas visando atingir fins que bem podiam dispensar a humilhação pública dos cidadãos honestos que aceitam desempenhar funções dirigentes na administração pública.

Estes são os métodos do populismo. O governo PS não pode pactuar com eles. Portanto das três uma: ou o governo demite o "Director Geral dos Impostos", por falta de confiança política, assumindo o ónus da decisão, ou o defende publicamente, reiterando-lhe a confiança política, ou ele se demite por falta de condições para o exercício da função.

"Diário do Governo" - 9

quinta-feira, abril 14

Imbecilidades


Fotografia de amistad

Uma das questões que se colocavam, com mais acuidade, no verão de 2004, era a da capacidade política de Santana Lopes para chefiar o governo. Ainda para mais no contexto de uma sucessão de tipo “dinástica”, ou seja, sem a realização de eleição – nem legislativas, nem internas no próprio PSD.

Pedro Santana Lopes foi, simplesmente, nomeado primeiro ministro. Cumpriu-se a legalidade mas esqueceu-se a legitimidade. De facto “há imbecilidades de tal quilate...”

Eis o que escrevi nas “Citações-3, em 29 de Junho de 2004

Claro que o "bom governo" não se reduz às qualidades do "chefe". O "bom governo" exige um bom programa e uma equipa competente. Vejam o caso do governo chefiado por Durão Barroso. É um governo legítimo resultante dos resultados das eleições de Março de 2002.

Mas o governo não integrou, salvo os líderes de ambos os partidos, nenhuma das personalidades que, durante a campanha eleitoral, foram apontadas como futuros ministros. Nem António Borges, nem Dias Loureiro, nem outros que foram insinuados, ou mesmo apresentados, como valores seguros.

O governo de Durão Barroso é fraco e incompetente. A equipa que Durão Barroso reuniu no governo foi fortemente condicionada pela coligação com o PP. Estes dois anos de governo mostraram que o PP é um partido predador. O Dr. Durão Barroso abandonou, à primeira oportunidade, o governo porque percebeu que não seria capaz de o remodelar sem se desembaraçar do PP.

Os quadros social-democratas competentes, que qualificariam um governo de centro direita, nunca integrarão um governo de coligação com o PP do Dr. Paulo Portas. Os governos de coligação PDD/PP, mesmo que resultem de uma inverosímel "iniciativa presidencial", serão sempre governos fracos e incompetentes.

A tendência, no caso da formação de um governo assente na actual maioria, é para a qualidade baixar ainda mais. A competência do governo está na qualidade das mulheres e dos homens que o compõem. Qualidades humanas, políticas e técnicas. O governo de Durão Barroso está repleto de gente sem qualidade humana, sem tacto nem experiência política e eivado de incompetência técnica.

É difícil baixar ainda mais o nível mas Santana Lopes, se for primeiro-ministro, com ou sem eleições, vai conseguir. O primeiro a perceber esta realidade é o Dr. Jorge Sampaio. Durão Barroso não sei se percebe mas, em Bruxelas, não terá que escolher os comissários. O Dr. Santana Lopes tem como tradição escolher equipas fracas e incompetentes. Para ele é-lhe indiferente o governo que chefiar pois pensará sempre "no lugar que se segue".

A citação do dia: "Montesquieu. "Há imbecilidades de tal quilate, que seria preferível uma imbecilidade ainda maior.""

(Albert Camus, "Cadernos" - Caderno nº 4 - Janeiro 1942/Setembro 1945 - Livros do Brasil)

Uma Ida ao Teatro e Carmen Miranda


Carmen Miranda

No sábado passado fui ao teatro. Não a um teatro qualquer. Recebi uns dias antes um telefonema do Joaquim Teixeira, do Grupo de Teatro Lethes, de Faro, convidando-me a assistir, na Biblioteca Orlando Ribeiro, em Telheiras, à apresentação da peça “À Distância de um Lenço”, de Manuel Córrego.

Aquele grupo de teatro foi a minha segunda escola e os tempos que nele vivi, pela mão do Dr. Emílio de Campos Coroa, foram uma luz que se atravessou a minha vida.

Assisti à bela representação da uma comédia – alta – com a presença do próprio dramaturgo- Manuel Córrego, que eu conhecia por ter sido galardoado, em 1998, com um prémio do concurso anual de peças teatrais promovido pelo INATEL.

Foi bonita a representação que o autor da peça no fim, em breves palavras, assinalou com emoção. O teatro anda sempre onde menos se espera. Ali estiveram, na minha frente, uma dúzia de actores de qualidade que me fizeram identificar com a minha própria experiência passada.

A sala estava composta. Fiquei feliz por ver que a obra iniciada pelo Dr. Coroa continua pelas mãos do seu filho, do Joaquim Teixeira e tantos outros que se arriscam, por puro amor à arte, a pisar um palco.

A minha celebração do Dia Mundial do Teatro, embora tardia, ficou completa com este blog que descobri a propósito do aniversário de Carmen Miranda acerca da qual discorrem: “A 9 de fevereiro de 1909, nascia em Marco de Canavezes, distrito do Porto, Portugal, Maria do Carmo Miranda da Cunha - Carmen Miranda. Dois anos depois, a família já vivia no Rio de Janeiro, onde o pai se estabeleceu como barbeiro. Sob a influência da irmã Olinda, a jovem Maria do Carmo aprenderia a costurar e a conhecer e amar a nossa música.”

quarta-feira, abril 13

"Há sempre uma filosofia para a falta de coragem"


Camus

No verão de 2004 a crise política aberta pelo abandono de José Manuel Barroso conduziu a uma situação propícia à avaliação da governação de direita e às mais diversas especulações acerca do caminho a tomar para a conjuração da crise. No centro do “furacão” ficaram o PR e o Secretário Geral da PS, à época, Ferro Rodrigues.

Discorro neste post, e nos seguintes, acerca do “bom governo”, dos “chefes” e dos “programas”. Mais à frente aventuro-me numa especulação em torno da estratégia presidencial.

Diga-se que sempre acreditei, ingenuamente, que o PR convocaria eleições antecipadas em Julho de 2004. Enganei-me. Em 28 de Junho de 2004, na abébia vadia, sob o título “Citações-2”, escrevi:

O "bom governo" o que é? A crise aberta pela nomeação de Durão Barroso para Presidente da Comissão Europeia pode ser uma grande oportunidade para debater o tema do "bom governo".

Não falo de formalidades mas da coisa em si mesma. Tomando em consideração a ideologia de juventude do "putativo futuro" PCE a primeira condição do "bom governo " é a do timoneiro ou, na linguagem mais vernácula do maoismo, a do "grande timoneiro".

O "bom governo" carece de um "bom primeiro-ministro". As suas qualidades intrínsecas não são, no entanto, suficientes pois, em regime democrático, a bondade do líder carece de ser sufragada pelo povo. É a maçada das eleições.

Nas ditaduras um grupo de conjurados impõe, a golpe, o "chefe", enquanto nas democracias representativas, os eleitos são uma emanação do sufrágio popular.

Em democracia as escolhas não resultam das qualidades intrínsecas do "chefe" exaltadas pelo apoio "unânime" dos seus apaniguados. Este é o modelo populista que se aproxima tanto mais da ditadura quanto a democracia é transformada aos olhos das massas numa desnecessidade por "não resolver nada" ou "por não valer a pena votar" (quantas vezes já ouvimos estas palavras nos últimos dias!).

A verdadeira democracia exige a coragem tranquila dos homens que querem ser livres e estão dispostos a correr o risco de lutar pela liberdade.

A citação do dia: "Há sempre uma filosofia para a falta de coragem."

(Albert Camus, "Cadernos" - Caderno nº 4 - Janeiro 1942/Setembro 1945 - Livros do Brasil)

POEMA PARA GALILEU



Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano,
aquele teu retrato que toda a gente conhece,
em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce
sobre um modesto cabeção de pano.
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha Florença.
(Não, não, Galileo! Eu não disse Santo Ofício.
Disse Galeria dos Ofícios.)
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da requintada Florença.
Lembras-te? A Ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza della Signoria...
Eu sei...Eu sei...
As Margens doces do Arno às horas pardas da melancolia.
Ai que saudade, Galileo Galilei!

Olha. Sabes? Lá em Florença
está guardado um dedo da tua mão direita num relicário.
Palavra de honra que está!
As voltas que o mundo dá!
Se calhar até há gente que pensa
que entraste no calendário.

Eu queria agradecer-te, Galileo,
a inteligência das coisas que me deste.
Eu,
e quantos milhões de homens como eu
a quem tu esclareceste,
ia jurar - que disparate, Galileo!
- e jurava a pés juntos e apostava a cabeça
sem a menor hesitação -
que os corpos caem tanto mais depressa
quanto mais pesados são.

Pois não é evidente, Galileo?
Quem acredita que um penedo caia
com a mesma rapidez que um botão de camisa ou que um seixo de praia?

Esta era a inteligência que Deus nos deu.

Estava agora a lembrar-me, Galileo,
daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo
e tinhas à tua frente
um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo
a olharem-te severamente.
Estavam todos a ralhar contigo,
que parecia impossível que um homem da tua idade
e da tua condição,
se estivesse tornando num perigo
para a Humanidade
e para a Civilização.
Tu, embaraçado e comprometido, em silêncio mordiscavas os lábios,
e percorrias, cheio de piedade,
os rostos impenetráveis daquela fila de sábios.

Teus olhos habituados à observação dos satélites e das estrelas,
desceram lá das suas alturas
e poisaram, como aves aturdidas - parece-me que estou a vê-las - ,
nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas.
E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era tudo tal qual
conforme suas eminências desejavam,
e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal
e que os astros bailavam e entoavam
à meia-noite louvores à harmonia universal.
E juraste que nunca mais repetirias
nem a ti mesmo, na própria intimidade do teu pensamento, livre e calma,
aquelas abomináveis heresias
que ensinavas e escrevias
para eterna perdição da tua alma.
Ai, Galileo!
Mal sabiam os teus doutos juízes, grandes senhores deste pequeno mundo,
que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de braços,
andavam a correr e a rolar pelos espaços
à razão de trinta quilómetros por segundo.
Tu é que sabias, Galileo Galilei.
Por isso eram teus olhos misericordiosos,
por isso era teu coração cheio de piedade,
piedade pelos homens que não precisam de sofrer, homens ditosos
a quem Deus dispensou de buscar a verdade.
Por isso estoicamente, mansamente,
resististe a todas as torturas,
a todas as angústias, a todos os contratempos,
enquanto eles, do alto inacessível das suas alturas,
foram caindo,
caindo
caindo
caindo
caindo sempre,
e sempre,
ininterruptamente,
na razão directa dos quadrados dos tempos.

António Gedeão

Obra Poética
Edições João Sá da Costa
2001

Fotografia de Helder Gonçalves



terça-feira, abril 12

DEMOCRACIA



Decidi re-publicar a série de 16 posts sob o título “Citações” que escrevi, entre 27 de Junho e 23 de Julho de 2004, para a abébia vadia, agora em pousio absoluto.

A sua leitura tem que ser feita à luz dos acontecimentos da época, ou seja, no essencial, sob a tensão da (in)decisão política do PR acerca se convocava, ou não, eleições legislativas antecipadas.

Aqueles momentos estão prenhes de ensinamentos e as citações- todas de Camus – são, na sua maioria, pelo menos para mim, um conforto para todos os desencantos passados, presentes e futuros.

Cada um destes 16 posts será agora ilustrado com uma imagem, antecedido de um comentário e de um novo título. Este é o post "Citações 1", de 27 de Junho de 2004.

Nestas alturas de crise política que me afectam o estado de espírito, vá lá saber-se porquê, desde a juventude, ponho-me a ler Camus. Alguém disse que lemos sempre o mesmo livro mesmo quando lemos livros diferentes.

Leio quase sempre os "Cadernos" de Albert Camus mesmo quando leio outro livro qualquer. Nestes dias de descrença na capacidade dos homens para encontrarem as boas soluções de governo nada melhor do que estarmos atentos. Não podemos tomar as medidas que desejamos. Outros as tomarão por nós.

As ditaduras afastam os povos da responsabilidade da tomada das decisões. Lembro-me do discurso da falta de maturidade do povo para votar. Quanto menos for chamado a pronunciar-se acerca das grandes questões nacionais, em particular, as escolhas de governo, mais o povo se sentirá afastado dos desígnios da democracia.

Confiar? Desconfiar? O povo desconfia. Terá razão? O populismo espreita. Delegamos o poder através do voto. Será que nos vão devolver o poder, em tempo útil, para escolhermos de novo? Uma só partícula de poder a cada um de nós. Mas o suficiente para que nos sintamos reconfortados por termos influenciado as escolhas que comprometem toda a comunidade.

Não é o tempo oportuno? Mas se não escolhermos a participação popular, mesmo quando a mesma parece excessiva, estamos a abrir o caminho aos populistas. Os populistas fingem que usam o poder para servir o povo mas servem-se dele para alcançar os seus objectivos particulares.

Aqui estão as citações do dia. A continuar.

""Tudo o que não me mate torna-me mais forte." Sim, mas…E como é duro pensar na felicidade. O peso esmagador de tudo isso. O melhor é calarmo-nos para sempre e voltarmo-nos para o resto."

""Retz: "Com excepção da coragem, o senhor Duque de Orlèans tem tudo quanto é necessário a um homem honesto""

(Albert Camus, "Cadernos" - Caderno nº 4 - Janeiro 1942/Setembro 1945 - Livros do Brasil)

Fotografia de Helder Gonçalves

Os Paraísos Artificais


Jorge de Sena

Na minha terra, não há terra, há ruas;
mesmo as colinas são de prédios altos
com renda muito mais alta.

Na minha terra, não há árvores nem flores.
As flores, tão escassas, dos jardins mudam ao mês,
e a Câmara tem máquinas especialíssimas para desenraizar as árvores.

O cântico das aves - não há cânticos,
mas só canários do 3º andar e papagaios do 5º.
E a música do vento é frio nos pardieiros.

Na minha terra, porém, não há pardieiros,
que são todos na Pérsia ou na China,
ou em países inefáveis.

A minha terra não é inefável.
A vida na minha terra é que é inefável.
Inefável é o que não pode ser dito.

Jorge de Sena

"Pedra Filosofal" (1950)
Incluído em Poesia I,
Moraes Editores2ª edição, 1977.

segunda-feira, abril 11

As Árvores e as Sombras



A natureza despe-se sem pudor apesar do olhar dos homens. Nasci com a escassez da água por entre os medos da seca e da fome. Mas a natureza não detém a sua marcha perante os receios do homem.

*
No sul o frio é suave e temperado pelo mar e pela vizinhança de África. A minha terra fica mais próxima de África do que de Lisboa. Sempre nos esquecemos disso quando pensamos nos espanhóis.

*
A sul a neve caiu de 1 para 2 de Fevereiro de 1954. Vi-a cair pela primeira vez debruçado de espanto da janela com vista para o meu mundo. A rua ficou branca e fiz bolas de jogar. Mas a neve na minha memória é quente.

*
A nespereira familiar da minha infância prepara-se para dar frutos. Imagino o seu lugar no quintal de onde nunca saiu e se apresenta sempre viçosa às gerações que passam. Ela renova-se e parece imortal.

*
A figueira do caminho do campo despida de folhas olha-me curiosa. O frio fê-la ficar nua e reparei que não se mexia nem tiritava nem sequer temia a sua morte anunciada. Ela sabe que no próximo verão ainda vai dar frutos suculentos.

*
As árvores são um mundo de vida e de afectos para os artistas. Poetas, pintores, músicos, cineastas, fotógrafos ... muitos dos grandes artistas cantaram a natureza através das árvores.

*
A sombra de cada árvore é diferente conforme a sua natureza. Cada sombra projectada por uma árvore tem vida própria e uma personalidade diferente conforme as espécies. As sombras das árvores são todas diferentes.

*
Ir para a sombra era uma obsessão da minha infância. No sul o sol impõe as suas regras. As árvores no verão eram o lugar da sombra antes de serem o lugar dos frutos e da subsistência.

Fotografia de amistad

Natércia Freire



CANÇÃO DO VERDADEIRO ABANDONO

Podem todos rir de mim,
podem correr-me à pedrada,
podem espreitar-me à janela
e ter a porta fechada.

Com palavras de ilusão
não me convence ninguém.
Tudo o que guardo na mão
não tem vislumbres de além.

Não sou irmã das estrelas,
nem das pombas, nem dos astros.
Tenho uma dor consciente
de bicho que sofre as pedras
e se desloca de rastros.

De «Obra Poética», 1991-1995,
IN-CM, Lisboa

domingo, abril 10

POEMA EM LINHA RECTA


Retrato de Fernando Pessoa. [1954, óleo sobre tela, 2010 x 2010 mm - Museu da Cidade, Lisboa, Portugal - Quadro de Almada Negreiros (1893-1970), pintado para o restaurante Irmãos Unidos, de Lisboa, versão final de uma encomenda cujo projecto primitivo se intitulava «Lendo o Orpheu»] Imagem do portal da História


Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe —todos eles príncipes— na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não uni pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ô príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semi-deuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos —mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Fernando Pessoa/Álvaro da Campos

In "Quinze Poetas Portugueses do Século XX"
Selecção e Prefácio de Gastão Cruz
Assírio & Alvim

sábado, abril 9

"Comissão Permanente para o Acolhimento e Inserção Social da Comunidade Timorense" - Para que não esqueça

A propósito de uma notícia que hoje veio a público, dando conta do apoio da República de Timor-leste à candidatura de António Guterres para “Alto-Comissário da ONU para os Refugiados” (ACNUR), lembrei-me de uma missão que desempenhei a partir de inícios de 1996: Presidente da “Comissão Permanente para o Acolhimento e Inserção Social da Comunidade Timorense”.

No IR AO FUNDO E VOLTAR deixo à disposição o teor da entrevista que, à época, concedi à Lusa (?), cuja última frase é bastante significativa: "Essa comunidade (timorense) vai ter um papel importante num país que um dia há-de ser independente e democrático", as condições em que desempenhei, a título gracioso, aquela função e alguns ensinamentos.

Esclareço que nunca visitei Timor nem a título oficial nem particular. Para que não esqueça.

Saber Viver é Vender a Alma ao Diabo


Gosto dos que não sabem viver,
dos que se esquecem de comer a sopa
(Allez-vous bientôt manger votre soupe,
s... b... de marchand de nuages?")
e embarcam na primeira nuvem
para um reino sem pressa e sem dever.


Gosto dos que sonham enquanto o leite sobe,
transborda e escorre, já rio no chão,
e gosto de quem lhes segue o sonho
e lhes margina o rio com árvores de papel.

Gosto de Ofélia ao sabor da corrente.
Contigo é que me entendo,
piquena que te matas por amor
a cada novo e infeliz amor
e um dia morres mesmo
em "grande parva, que ele há tanto homem!"

(Dá Veloso-o-Frecheiro um grande grito?..)

Gosto do Napoleão-dos-Manicómios,
da Julieta-das-Trapeiras,
do Tenório-dos-Bairros
que passa fomeca mas não perde proa e parlapié...

Passarinheiros, também gosto de vocês!
Será isso viver, vender canários
que mais parecem sabonetes de limão,
vender fuliginosos passarocos implumes?

Não é viver.
É arte, lazeira, briol, poesia pura!

Não faço (quem é parvo?) a apologia do mendigo;
não me bandeio (que eu já vi esse filme...)
com gerações perdidas.

Mas senta aqui, mendigo:
vamos fazer um esparguete dos teus atacadores
e comê-lo como as pessoas educadas,
que não levantam o esparguete acima da cabeça
nem o chupam como você, seu irrecuperável!

E tu, derradeira geração perdida,
confia-me os teus sonhos de pureza
e cai de borco, que eu chamo-te ao meio-dia...

Por que não põem cifrões em vez de cruzes
nos túmulos desses rapazes desembarcados p'ra morrer?

Gosto deles assim, tão sem futuro,
enquanto se anunciam boas perspectivas
para o franco frrrrançais
e os politichiens si habiles, si rusés,
evitam mesmo a tempo a cornada fatal!

Les portugueux...
não pensam noutra coisa
senão no arame, nos carcanhóis, na estilha,
nos pintores, nas aflitas,
no tojé, na grana, no tempero,
nos marcolinos, nas fanfas, no balúrdio e
... sont toujours gueux,
mas gosto deles só porque não querem
apanhar as nozes...

Dize tu: - Já começou, porém, a racionalização do trabalho.
Direi eu: - Todavia o manguito será por muito tempo
o mais económico dos gestos!

*

Saber viver é vender a alma ao diabo,
a um diabo humanal, sem qualquer transcendência,
a um diabo que não espreita a alma, mas o furo,
a um satanazim que se dá por contente
de te levar a ti, de escarnecer de mim...

Alexandre O´Neill

Poesias Completas
1951/1981
Biblioteca de Autores Portugueses
Imprensa Nacional Casa da Moeda

sexta-feira, abril 8

Manuais Escolares



As notícias acerca do tema são manifestamente exageradas. O despacho acerca da “transmissão em cadeia” de manuais escolares, agora revogado, não chegou, na prática, a entrar em vigor.

O mês de Abril seria fatal não houvera a revogação agora concretizada. A Ministra da Educação do governo de direita, Maria do Carmo Seabra, não mediu o alcance do despacho que assinou, 5 dias antes das eleições legislativas, publicado a 9 de Março, muitos dias depois das mesmas.

A questão é simples: a viabilidade da aplicação daquele despacho – nos planos técnico e financeiro – não foi acautelada. A revogação pelo governo em funções do dito foi correcta, adequada e tomada em tempo oportuno.

Assim se evitou, com uma medida simples, males maiores para a gestão das escolas. Por razões éticas não devo aprofundar o tema. Mas as razões evocadas pelos detractores da revogação são fundadas na mais pura ignorância ou má fé.

Veja aqui o despacho de revogação bastante bem fundamentado.

E ainda algumas considerações judiciosas na Memória Flutuante

"Diário do Governo" - 9

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