sábado, junho 1

1128

Retomando um velho post de uma série que resultou da leitura entusiasmada da obra de Mattoso acerca do nosso primeiro rei para ilustrar como a força nunca está ausente da política nos momentos decisivos. E ilustrando também como, no plano simbólico e material, Portugal é uma nação antiga que apesar de todas as vicissitudes, existe desde 1128.

Na Batalha de São Mamede [24 de Junho de 1128], Afonso Henriques apoderou-se da herança de D. Teresa pela força. Segundo os Anais, prendeu os seus adversários, isto é, o conde Fernão Peres de Trava e os seus colaboradores; a tradição popular diz que prendeu também sua mãe, mas sabemos, por documentos autênticos, que pouco depois estavam ambos livres na Galiza. (…) Tinha então 19 anos. Podia tomar decisões pessoais. Mas os senhores que o apoiaram eram muito mais velhos, e governavam há muito tempo importantes territórios; entre eles estava, sem dúvida, o seu aio; sem o seu auxílio, Afonso não teria poder algum. Onde estava a verdadeira autoridade? Nas suas mãos ou nas dos nobres que com ele combatiam?
(…)
O papel da nobreza na Batalha de S. Mamede foi representado de forma simbólica no relato “popular” que dela fez a
Crónica Galego-Portuguesa (…) D. Afonso Henriques, derrotado logo no primeiro embate com Fernão Peres de Trava, foge do campo de batalha. Mas surge Soeiro Mendes. Censura-o pela fuga, como se fosse um adolescente, fá-lo regressar ao combate, e ajuda-o a vencê-lo. O significado social deste episódio é evidente: o fundador da nacionalidade devia o seu poder aos nobres.
(…)
Depois de expulsar o conde de Trava e os seus homens, Afonso Henriques concedeu, decerto, algumas benesses aos seus colaboradores, mas estas, se existiram, deixaram poucos vestígios na documentação até hoje preservada. Com efeito, os primeiros diplomas por ele emitidos não favorecem a nobreza mas a Igreja. Destinam-se, em primeiro lugar, a pobres eremitas e a um mosteiro quase desconhecido nas terras de Neiva e Barcelos. Dir-se-ia que o Infante pretende, antes de mais, obter a protecção divina por meio dos privilégios concedidos aos monges mais austeros.
(…)
Assim os primeiros anos do governo afonsino decorrem sob a dupla tutela dos ricos-homens nortenhos que asseguraram a vitória de São Mamede, e do clero que obedecia ao arcebispo de Braga.”

In “D. Afonso Henriques” de José Mattoso, ”3. Os primeiros passos de um jovem príncipe”,”A relação com a nobreza”, “A relação com o clero”, pgs. 47/49 (14).

Fotografia de Hélder Gonçalves


sexta-feira, maio 31

Variações

Experiência II

Quero de ti o corpo
seio ventre aberto

Quero o beijo de ti
sei do sexo ao certo

Quero de ti isso
o lugar exacto só

Quero a mão agora
logo não sei já

Que não quero sei
é perder-me aqui

Mas perder-me sei
Ao certo que me quero

Quero aonde ser
nada mais senão eu

Agora já sabes
o que eu quero

Eu é que não sei!

6/11/1980


[In Primeiros Poemas, edição de autor, Dez. 2007]

quarta-feira, maio 29

EVIDÊNCIAS VI

Concluí pela manhã o 6º soneto.

VI

Ambígua identidade, incauto amor
que o vento esculpe em pedras do deserto
como as que, vagas, pelo mar incerto
o mesmo vento aos areais conduz;

serena insaciedade, ausente ardor,
limiar a que a não-vida a descoberto
assoma viva qual se fôra perto
a fímbria clara exposta a contra-luz;

marcado e repetido, ou imperceptível
e como que perene, o suceder
das coisas, cujo ser é noutras ser
a forma contornada e previsível;

- demoram-se as estátuas, e quebradas
serão tristeza de outras não talhadas.


Jorge de Sena

21-2-1954

segunda-feira, maio 27

A primeira coisa é não desesperar




“As amendoeiras”: (…)
A primeira coisa é não desesperar. Não prestemos ouvidos demasiadamente àqueles que gritam, anunciando o fim do mundo. As civilizações não morrem assim tão facilmente; e mesmo que o mundo estivesse a ponto de vir abaixo, isso só ocorreria depois de ruírem outros. É bem verdade que vivemos numa época trágica. Contudo, muita gente, confunde o trágico com o desespero. “O trágico”, dizia Lawrence, “deveria ser uma espécie de grande pontapé dado na infelicidade”. 


Albert Camus, in Núpcias, O Verão

domingo, maio 26

EVIDÊNCIAS V




O dia inteiro lutando com um 5º soneto. O que foi dolorosamente interrompido pela visita dos pais do Lemos* - que ouvi suspenso na aparência amável e divertida, mesmo simpatizando porque o estimo muito. Excelente a anedota autêntica de a Estrela Faria ter “ganho” na Bienal o prémio que o amante dela, um brásio rico, inventou com o próprio nome … e pagou (10 contos). Depois num aflitivo esforço de concentração, o soneto organizou-se, e terminei-o inteiramente outro do que planejara ou supusera que ele seria. E, enquanto escrevo, ouço a espectacular mas emocionante Rapsódia Hebraica de Block, para violoncelo e orquestra. Aprecio neste compositor a veemência e uma certa facilidade dramática que faltam, tão francamente sentimentais, em quase todos os modernos.
Envolvido no Zaratustra, de Strauss, sai-me o esperado soneto das galáxias (para o que refolheara o Eddington – ó eruditos do piolho catado!).


*Refere-se, certamente, aos pais de Fernando Lemos que, em 1953, havia emigrado para o Brasil.

V

Na antiga e fácil pátria da amargura
com qual quais chegam vossas vozes vão
quebrando as ondas minha voz mais pura
só de ter visto o mesmo coração

que como exílio fora não perdura,
eis-me silêncio arrebatado e não
nenhuma ausência ou extrema formosura
de um Deus que volta em pompa e escuridão.

Desnudo e em sangue, ai que não volta: existe
suspenso a vosso lado, e o duplo sexo
goteja embora no pudor perplexo
com que O não vedes na paisagem triste.

Eis-me que apenas me roubais quem sois:
se Deus deseja é desejar por dois.

Jorge de Sena

20-2-1954

sábado, maio 25

POLÍTICA (9)

Mais do que acontece nas épocas de abundância (mesmo aparente) a política é mais importante nas épocas de carência. Não tenho à mão qualquer manual mas pululam os escritos, e reflexões, acerca da arte da política de tantos autores consagrados de todas as épocas. E ocupa um lugar central na minha cabeça, acerca da política, a palavra compromisso, tantas vezes glosada em todos os tempos. A diferença que habita em todo o lugar em que o homem vive e luta, no interior e exterior de si próprio, exige o permanente exercício do compromisso. Dos pequenos aos grandes interesses, dos pequenos aos grandes gestos, viver em comum, como nos cumpre viver na sociedade civilizada do nosso tempo, exige aos políticos, nas decisões que dizem respeito a toda a comunidade, exercer a capacidade dos compromissos, respeitando as diferenças.

quinta-feira, maio 23

AS EVIDÊNCIAS IV


Um 4º soneto, que apareceu a correr pouco antes de eu ir para S. Carlos ouvir a Electra …

IV

Da solidão que o vosso mal povoa
de monstruosas mãos e duros dentes,
lá onde agudo só um latido ecoa,
e o amor se esconde em piolhosos pentes;

Do vácuo fedorento, excrementício,
com que de roubos vosso rasto acaba
idêntico a vós próprios desde o início,
que desde sempre foi a mesma baba;

Da solidão que dais e que roubais,
do vácuo que levais e que deixais,
do pavoroso nada que imitais
quando cobris dos ouropéis legais

o horror de estardes sós em companhia –
o mal que sois em mim se refugia.


Jorge de Sena

15-4-1954*

[*Nos Diários a referência ao 4º soneto surge a 20 de Fevereiro pelo que a data acima, inscrita na 2ª edição de Poesia I é, declaradamente, uma gralha devendo ler-se 20-2-1954.]

Morreu Georges Moustaki

quarta-feira, maio 22

POLÍTICA (8)

As grandes instituições internacionais da área financeira suponho que não são dirigidas por santos, com voto de castidade e/ou de pobreza nem tal seria exigível - e ainda bem. O FMI tem alcançado os píncaros na prova ou, no mínimo, de indícios da tentação para a venalidade dos seus máximos expoentes. Não que saiba mais do que é do domínio público, nem especule em vão, pois os casos andam de tribunal em tribunal e de escândalo em escândalo, à força da evidência dos pecados da carne e dinheiro ou, ao menos, de seus fortes indícios. Pecados quem os não tem? Mas os presidentes do FMI, uma espécie única no mundo de presidentes do dinheiro, deveriam ostentar, pelo contrário, não a santidade mas, ao menos, a parcimónia nos usos e costumes. Banalizar esta acção da justiça francesa e tomar a protagonista da mesma como uma vulgar cidadã do mundo é um pouco excessivo!

terça-feira, maio 21

AS EVIDÊNCIAS III

13

Esta manhã, 3º soneto que me fez chegar ao meio -dia à repartição.

III

Que coisas sois? – se sois como que gente,
se as vozes imitais, se olhando olhais,
se os gestos de fingir com que adorais
os mesmos são de a vida estar presente?

Que coisas sois? – que o mundo humanamente
entre vós e vós próprios limitais?
Se é de outrem essa morte que matais
quando morreis temendo-a frente a frente?

Que coisas sois? – Menos que humanos, vis,
viscosos, fluidos e crustáceos, cães
paridos sem pecado pelas mães
que o súcubo emprenhou, sois de raiz

facas sem lâmina a que falta o cabo,
que a quem se abaixa se lhe vê o rabo.

13-2-1954

Jorge de Sena

segunda-feira, maio 20

ÁLVARO CUNHAL

Acabei de ver na TVI uma reportagem acerca de facetas menos políticas da vida de Álvaro Cunhal. Uma peça bem-feita tanto quanto é possível retractar facetas da vida de um mito. Não sou eu, nesta breve nota, que desmentirei as suas qualidades humanas, artista com obra de inegável qualidade, embora céptico acerca das virtudes da sua acção politica. Mas é uma vantagem inigualável da democracia que haja liberdade para que se possam evocar aqueles que nela desempenharam um papel relevante seja qual for o nosso ponto de vista acerca da bondade desse papel. Lembrei-me, a propósito destas memórias de família de Cunhal, que tenho comigo uma cópia dactilografada – senão mesmo o original tal a qualidade do exemplar – de uma obra de seu pai, Avelino Cunhal, a peça “Ajuste de Contas”, de Maio de 1946, com uma nota prévia de L.F.R. (que só pode ser Luis Francisco Rebelo). Vá lá saber-se a razão!           

domingo, maio 19

POLÍTICA (7)

Esta é uma daquelas crises que chegou ao ponto de tornar banal uma recente afirmação do líder do principal partido da oposição: "Estamos metidos numa grave crise. Numa crise social, numa crise económica, numa crise política, e estas três crises somadas podem dar origem a uma crise de regime." Sublinho que foi dito, preto no branco, “uma crise de regime”, ou seja, do regime democrático. Outros responsáveis nacionais, de todos os quadrantes políticos, e ideológicos, o têm dito com mais ou menos ênfase, dramatismo, tranquilidade ou alarme. Eis uma boa questão para discutir amanhã no Conselho de Estado. E estou certo que a sua discussão ocupará uma boa parte do conclave.

sábado, maio 18

POLÍTICA (6)

Vejo imagem de reuniões partidárias, (cada vez mais afastadas do público), ouço declarações políticas iguais semanas a fio, (daqui a quatro meses ocorrem as eleições na Alemanha), os políticos comentaristas comandam a formação da opinião pública (como se os políticos eleitos sentissem a necessidade de delegar a palavra!), as coligações são exercícios difíceis, como os casamentos, (exigem momentos de exaltação e silêncios profundos), Alegre afirmou numa entrevista que a esquerda não serve para nada, (ele, não sei!), a UGT reorienta a sua linha de acção, (prenúncio de novos tempos políticos? Proença confirma entrando para a direcção do PS), a chanceler alemã é recebida pelo Papa, (filha de padre luterano busca a bênção do chefe dos católicos – gestos simbólicos!), D. Clemente vai assumir o Patriarcado de Lisboa, (um dia travou um debate com Saramago na televisão, aliás muito interessante …) Amanhã é um novo dia!

AS EVIDÊNCIAS - II

Prosseguindo a publicação dos 21 sonetos de “As Evidências”. Nos “Diários” de Jorge de Sena surge, no dia 12 de Fevereiro de 1954, a seguinte anotação: “Das 24 à 1.15, um segundo soneto.” É este:


II


Desta vergonha de existir ouvindo,
amordaçado, as vãs palavras belas,
por repetidas quanto mais traindo
tornadas vácuas da beleza delas;

desta vergonha de viver mentindo
só porque escuto o que dizeis com elas;
desta vergonha de assistir medindo
por elas as injúrias por trás delas

ao mesmo sangue com que foram feitas,
ao suor e ao sémen por que não eleitas
e à simples morte de chegar-se ao fim;

desta vergonha inominável grito
a própria vida com que às coisas fito:
Calai-vos, ímpios, que jurais por mim!


12-2-1954


[No dia 15 de Fevereiro escreveu referindo-se a um encontro com Adolfo Casais Monteiro com quem tinha estado no café: “Dos sonetos em curso, que lhe li, gostou dos dois primeiros e menos do terceiro.” ... que virá a seguir.]

quinta-feira, maio 16

O SENTIMENTO DE UM OCIDENTAL

I

AVE-MARIAS

Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba-me;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina.

Batem os carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, Sampetersburgo, o mundo!

Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga, os mestres carpinteiros.

Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos,
Embrenho-me a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.

E evoco, então, as crónicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!

E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinido de louças e talheres
Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.

Num trem de praça arengam dois dentistas;
Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!

Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.

Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.

Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infecção!

II

NOITE FECHADA

Toca-se às grades, nas cadeias. Som
Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!
O Aljube, em que hoje estão velhinhas e criancas,
Bem raramente encerra uma mulher de "dom"!

E eu desconfio, até, de um aneurisma
Tão mórbido me sinto, ao acender das luzes;
À vista das prisões, da velha Sé, das Cruzes,
Chora-me o coração que se enche e que se abisma.

A espaços, iluminam-se os andares,
E as tascas, os cafés, as tendas, os estancos
Alastram em lençol os seus reflexos brancos;
E a Lua lembra o circo e os jogos malabares.

Duas igrejas, num saudoso largo,
Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero:
Nelas esfumo um ermo inquisidor severo,
Assim que pela História eu me aventuro e alargo.

Na parte que abateu no terremoto,
Muram-me as construções rectas, iguais, crescidas;
Afrontam-me, no resto, as íngremes subidas,
E os sinos dum tanger monástico e devoto.

Mas, num recinto público e vulgar,
Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras,
Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras,
Um épico doutrora ascende, num pilar!

E eu sonho o Cólera, imagino a Febre,
Nesta acumulação de corpos enfezados;
Sombrios e espectrais recolhem os soldados;
Inflama-se um palácio em face de um casebre.

Partem patrulhas de cavalaria
Dos arcos dos quartéis que foram já conventos;
Idade Média! A pé, outras, a passos lentos,
Derramam-se por toda a capital, que esfria.

Triste cidade! Eu temo que me avives
Uma paixão defunta! Aos lampiões distantes,
Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes,
Curvadas a sorrir às montras dos ourives.

E mais: as costureiras, as floristas
Descem dos magasins, causam-me sobressaltos;
Custa-lhes a elevar os seus pescoços altos
E muitas delas são comparsas ou coristas.

E eu, de luneta de uma lente só,
Eu acho sempre assunto a quadros revoltados:
Entro na brasserie; às mesas de emigrados,
Ao riso e à crua luz joga-se o dominó.

III

AO GÁS

E saio. A noite pesa, esmaga. Nos
Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.
Ó moles hospitais! Sai das embocaduras
Um sopro que arrepia os ombros quase nus.

Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso
Ver círios laterais, ver filas de capelas,
Com santos e fiéis, andores, ramos, velas,
Em uma catedral de um comprimento imenso.

As burguesinhas do Catolicismo
Resvalam pelo chão minado pelos canos;
E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,
As freiras que os jejuns matavam de histerismo.

Num cutileiro, de avental, ao torno,
Um forjador maneja um malho, rubramente;
E de uma padaria exala-se, inda quente,
Um cheiro salutar e honesto a pão no forno.

E eu que medito um livro que exacerbe,
Quisera que o real e a análise mo dessem;
Casas de confecções e modas resplandecem;
Pelas vitrines olha um ratoneiro imberbe.

Longas descidas! Não poder pintar
Com versos magistrais, salubres e sinceros,
A esguia difusão dos vossos reverberos,
E a vossa palidez romântica e lunar!

Que grande cobra, a lúbrica pessoa,
Que espartilhada escolhe uns xales com debuxo!
Sua excelência atrai, magnética, entre luxo,
Que ao longo dos balcões de mogno se amontoa.

E aquela velha, de bandós! Por vezes,
A sua traîne imita um leque antigo, aberto,
Nas barras verticais, a duas tintas. Perto,
Escarvam, à vitória, os seus mecklemburgueses.

Desdobram-se tecidos estrangeiros;
Plantas ornamentais secam nos mostradores;
Flocos de pós-de-arroz pairam sufocadores,
E em nuvens de cetins requebram-se os caixeiros.

Mas tudo cansa! Apagam-se nas frentes
Os candelabros, como estrelas, pouco a pouco;
Da solidão regouga um cauteleiro rouco;
Tornam-se mausoléus as armações fulgentes.

"Dó da miséria!... Compaixão de mim!..."
E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,
Pede-me sempre esmola um homenzinho idoso,
Meu velho professor nas aulas de Latim!

IV

HORAS MORTAS

O tecto fundo de oxigénio, de ar,
Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras;
Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras,
Enleva-me a quimera azul de transmigrar.

Por baixo, que portões! Que arruamentos!
Um parafuso cai nas lajes, às escuras:
Colocam-se taipais, rangem as fechaduras,
E os olhos dum caleche espantam-me, sangrentos.

E eu sigo, como as linhas de uma pauta
A dupla correnteza augusta das fachadas;
Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas,
As notas pastoris de uma longínqua flauta.

Se eu não morresse, nunca! E eternamente
Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas!
Esqueço-me a prever castíssimas esposas,
Que aninhem em mansões de vidro transparente!

Ó nossos filhos! Que de sonhos ágeis,
Pousando, vos trarão a nitidez às vidas!
Eu quero as vossas mães e irmãs estremecidas,
Numas habitações translúcidas e frágeis.

Ah! Como a raça ruiva do porvir,
E as frotas dos avós, e os nómadas ardentes,
Nós vamos explorar todos os continentes
E pelas vastidões aquáticas seguir!

Mas se vivemos, os emparedados,
Sem árvores, no vale escuro das muralhas!...
Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas
E os gritos de socorro ouvir, estrangulados.

E nestes nebulosos corredores
Nauseiam-me, surgindo, os ventres das tabernas;
Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas,
Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores.

Eu não receio, todavia, os roubos;
Afastam-se, a distância, os dúbios caminhantes;
E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes,
Amareladamente, os cães parecem lobos.

E os guardas que revistam as escadas,
Caminham de lanterna e servem de chaveiros;
Por cima, as imorais, nos seus roupões ligeiros,
Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas.

E, enorme, nesta massa irregular
De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,
A Dor humana busca os amplos horizontes,
E tem marés, de fel, como um sinistro mar!

Cesário Verde
(Em Portugal a Camões, publicação extraordináriado 
Jornal de Viagens do Porto, no dia 10 de Junho de 1880)

quarta-feira, maio 15

AS EVIDÊNCIAS



Reencontrei um conjunto de textos que escrevi a propósito do 90 º aniversário do nascimento de Jorge de Sena  com a publicação de "As Evidências" que, sabe-se lá a razão, agora republico. Um poeta mal amado que desde que o descobri sempre me acompanhou nos bons e maus momentos.
Jorge de Sena nasceu em 2 de Novembro de 1919. Engenheiro de profissão dedicou a sua vida à literatura, sendo grande como poeta, romancista, contista, tradutor e estudioso de obras alheias e é, para mim, com Pessoa, o poeta mais importante do século XX português.

Li finalmente, este fim-de-semana, os “Diários” livro no qual a sua mulher Mécia reuniu os escritos do género ao qual Sena dedicou pouca importância. Além dos textos acerca da sua viagem, como cadete, na Sagres, o livro vale a pena por duas peças, uma referente a um período do ano de 1953/54 e outra ao ano de 1968 que permitem conhecer, além das circunstâncias da época, os seus gostos pessoais, processos de trabalho, amizades e ódios de estimação.

Retive, do período de 1953/54, um conjunto de referências à escrita dos 21 sonetos que compõem “As Evidências”, com data de publicação de 1955, que mais tarde viriam a integrar “Poesia I” em cujo prefácio, à 2ª edição, escrito pouco antes da sua morte, lhes faz referência:

“… Nos princípios de 1954, entre Fevereiro e Abril, escrevi os 21 sonetos de As Evidências, sequência que não queria publicar como parte de um livro de poemas, aonde ficasse submersa, mas para a qual não encontrava editor. Foi quando, nesse ano, me foi oferecida, se não estou em erro, paralelamente por Armindo Rodrigues e por João José Cachofel, a possibilidade de uma edição daqueles sonetos na série “Cancioneiro Geral” do Centro Bibliográfico. O livrinho ficou impresso nos primeiros dias de Janeiro de 1955, foi logo apreendido pela PIDE que assaltou então o dito Centro, e só pôde ser distribuído um mês depois de repetidas visitas à Censura, para onde se entrava por uma portinha da Calçada da Glória, embora os censores estivessem realmente instalados no Palácio Foz ocupado pelo SNP ou SNI, ou lá como se chamava na altura. O livro era, além de subversivo, pornográfico, segundo me repetia sistematicamente, com um sorriso ameno e algum sarcasmo nos olhos pontilhados de ramela branca, por trás de uns óculos de aro finamente metálico, suponho que o subdirector que era um major ou tenente-coronel. Eu contestava que o livro, ora essa, não era nem uma coisa nem outra, e ele, dando-me palmadinhas no joelho mais próximo, dizia: - Ora, ora … nós sabemos -. Ao fim de um mês destas periódicas sessões, o livro foi libertado, e para dizer a pura verdade evidente, era realmente subversivo e, se não propriamente pornográfico, sem dúvida que respeitavelmente obsceno. …”

Integrado num conjunto de iniciativas pessoais, em homenagem a Jorge de Sena, pelo 90º aniversário do seu nascimento, que agora inicio, e que terminarei com uma surpresa para os meus amigos, publicarei os 21 sonetos de “As Evidências” fazendo anteceder cada um deles com as referências, mais ou menos detalhadas, que o autor lhes faz nos “Diários”.

No Diário referente ao período de 23 de Agosto de 1953 a 20 de Outubro de 1954, no dia 12 de Fevereiro de 1954, escreveu:

“Hoje, pela manhã, surgiram-me vários fragmentos de versos ou versos inteiros, que se me organizaram num poema e num soneto, que espero seja o primeiro da sequência por que anseio há tanto. Julgo-os do melhor que tenho feito, e satisfazem-me em comparação com o que, e raramente, andava fazendo.”

I

Ao desconcerto humanamente aberto
entendo e sinto: as coisas são reais
como meus olhos que as olharam tais
a luz ou treva que há no tempo certo.

De olhá-las muito não as vejo mais
que a luz mutável com que a treva perto
sempre outras as confunde: entreaberto,
menos que humano, só verei sinais.

E sinta que as pensei, ou que as senti
eu pense, ou julgue nos sinais que vi
ler a harmonia, como ali surpresa,

oculta que era para eu vê-la agora,
meu desconcerto é o desconcerto fora,
e Deus um só pudor da Natureza.

12-2-1954

Jorge de Sena

Tracy Chapman

segunda-feira, maio 13

POLÍTICA (5)

Banaliza-se o passado, o adquirido, a tradição, a herança, abrindo caminho para a rasura da memória e das bases materiais do bem-estar para o qual a maioria trabalhou – lutou – abrangendo famílias/gerações. Não estamos a falar de criminosos que teriam amealhado recursos por meios ilícitos – que também os há - mas de cidadãos que pela sua iniciativa, pelo trabalho e sucesso dos empreendimentos a que meteram ombros, próprios e alheios – os empreendedores não são uma descoberta do nosso tempo – aforraram, investiram e ganharam para assegurar o seu futuro e o dos seus. São pequenos médios e grandes patrimónios, vidas livres da tutela de patrões e de tiranias de todas as estirpes, mais ou menos florescentes , mais ou menos cuidados, acima de tudo, assumidamente, diversos. Sempre podem ocorrer cataclismos – terramotos, guerras, incêndios, bancarrotas – mas foram criados, ao longo do tempo, seguros para cobertura dos riscos, mútuas, um modelo de contrato social que é o fundamento essencial da nossa forma de organização política e  social, de um modo de viver em sociedade. A Europa organizou-se, no pós 2ª guerra, sob um modelo, com a marca UE, evolutivo na diversidade de nações (algumas delas federadas em estados), que nesse modelo de organização buscaram prosperidade, que se julgava assentar num compromisso pela manutenção da paz, na solidariedade e no socorro mútuo em caso de calamidade, fosse de que tipo fosse. Ao que somos dados assistir hoje, agora, aqui, em palavras simples, é à vitória da ditadura do dinheiro que sequestrou a coesão e a solidariedade social. Começam a chover os sinais de desagregação dos valores fundamentais em que assentou o mais longo período de paz na Europa.




PARA A MINHA TIA LUCÍLIA

Uma estravagância. Uma fotografia minha bastante atual, que disponho de poucas, e não sou apreciador de exposição pública através de imagens pessoais. Mas lembrei-me da minha tia Lucília, que vejo tão poucas vezes, e ela que tanto gosta de mim, e eu que tanto gosto dela, e através deste meio, lhe ofereço uma fotografia minha bastante atual. Um beijo!