quarta-feira, novembro 1

A MÃE DE D. AFONSO HENRIQUES

D. Teresa, mãe de D. Afonso Henriques, era filha do rei Afonso VI de Leão e Castela e de Constança, sendo irmã de Urraca e Raimundo (Conde de Amous e da Galiza). D. Teresa morre em 1 de Novembro de 1130. Afonso Henriques tinha 21 anos de idade. “Se podemos imaginar alguns dos traços que o infante herdou de seu pai, torna-se bem mais difícil deduzir, das informações que temos, o que deveria ser a sua mãe. De facto, a figura de D. Teresa suscitou as mais variadas e contraditórias especulações, sem que seja possível formar uma opinião segura acerca do seu temperamento e dos motivos que nortearam as suas decisões.” (…) “Tentando encontrar o sentido das intervenções politicas que lhe conhecemos, não podemos deixar de ver nela uma personalidade ambiciosa, fortemente convencida do seu direito a herdar um dos estados governados por seu pai, ou seja, pelo menos, a Galiza. Na opinião de B. Reilly, Teresa nunca reconheceu sua irmã Urraca como rainha e herdeira de Afonso VI.” (…) “Tudo isto formou o temperamento não menos ambicioso de Afonso Henriques. O ambiente conflituoso e agitado da sua época, tanto do ponto de vista político, como religioso e social, não podia deixar de acentuar a propensão temperamental que herdou de sua mãe. Mesmo que tenha convivido pouco com ela, como é provável, a isso o convidava não só o que, sem dúvida, lhe contavam os membros da corte, companheiros e criados que lhe transmitiam as tradições familiares, empoladas e dramatizadas por exageros de vassalos, mas também o sistema de valores da época e do Norte da Península, fortemente polarizado pela luta contra o Islão, pelos conflitos religiosos e pela afirmação dos ideais nobiliárquicos cultivados pelos jovens cavaleiros.” In “D. Afonso Henriques” de José Mattoso, “1. A Juventude de um predestinado” – "A mãe", pg. 20. (4)

domingo, outubro 29

Homenagem ao papagaio verde

(...) “Um dia, quando, arquejante da rua e das escadas, cheguei à varanda, o Papagaio Verde estava inerte no canto da gaiola, com o bico pousado no chão. Peguei-lhe, aspergi-o com água, sacudi-o, com a mão auscultei-o longamente. Não morrera ainda. Levei-o para a sala, deitei-o nas almofadas, puxei a cadeira para junto do piano, e, enquanto com os dedos da mão esquerda lhe apertava a pata, toquei só com a direita a música de que ele gostava mais. As lágrimas embaciavam-me as teclas, não me deixavam ver distintamente. Senti que os dedos dele apertavam os meus. Ajoelhei-me junto da cadeira, debruçado sobre ele, e as unhas dele cravaram-se-me no dedo. Mexeu a cabeça, abriu para mim um olho espantado, resmoneou ciciadas algumas sílabas soltas. Depois, ficou imóvel, só com o peito alteando-se numa respiração irregular e funda. Então abriu descaidamente as asas e tentou voltar-se. Ajudei-o, e estendeu o bico para mim. Amparei-o pousado no braço da cadeira, onde as patas não tinham força de agarrar-se. Quis endireitar-se, não pôde, nem mesmo apoiado nas minhas mãos. Voltei a deitá-lo nas almofadas, apertou-me com força o dedo na sua pata, e disse numa voz clara e nítida, dos seus bons tempos de chamar os vendedores que passavam na rua: - Filhos da puta! – Eu afaguei-o suavemente, chorando, e senti que a pata esmorecia no meu dedo. Foi a primeira pessoa que eu vi morrer.” Jorge de Sena

sexta-feira, outubro 27

ANIVERSÁRIO

O meu filho Manuel Maria faz hoje 33 anos. Há muito que não escrevia aqui celebrando o seu aniversário. Um filho é o bem mais precioso de que dispomos, além de todas as riquezas materiais, um eco de nós que se projeta no futuro. O que de nós resta após a morte certa. A vitória da vida apesar de todas as ameaças que sempre nos rodeiam. O meu filho Manuel vai viver para a Noruega, vai ser pai, vai enfrentar uma vida nova repleta de desafios e de incertezas. Mas afinal o que é a vida senão a continuada superação de desafios e o vencimento das incertezas. Enquanto viva nunca o perderei, digo, nunca o perderemos na sua caminhada que sempre será em prol da justiça e da liberdade. Sei de certeza certa que também ele nunca nos perderá. (Com a sua avó materna Elvira.)

segunda-feira, outubro 23

Na apresentação do livro de Eduardo Ferro Rodrigues (intervenção)

Caro Eduardo, Caro Presidente, Caro Primeiro Ministro, Caras amigas e caros amigos: Agradeço-te o convite para participar na apresentação deste teu livro, que muito me honra. Não vou improvisar. “Puxo da “sebenta” para poder ser mais preciso, para poder ser mais breve”, como António Sérgio disse na “Alocução aos Socialistas” de 1 de maio de 1947. Três palavras me surgiram da leitura deste teu livro: amizade, gratidão e pertença. Amizade. Olho para o dia de hoje e concluo que cumprimos mais de 55 anos de uma amizade sem falhas. Fui revisitar as minhas leituras dos tempos do início dela e deparo-me com Camus lido pelos meus 20 anos, precisamente no dia 3 de abril de 1968, e cito: “jovem eu pedia às pessoas mais do que elas me podiam dar: uma amizade contínua, uma emoção permanente.” e “Os deveres da amizade ajudam a suportar os prazeres da sociedade.” Fragmentos que sublinhei no livro “Cadernos” no exato tempo em que nos conhecemos e iniciámos uma amizade indizível que, como todas as verdadeiras amizades, atingiu o grau supremo de uma amizade sem palavras, além das circunstâncias, uma “religião da amizade”, até ao fim. Sempre. Gratidão. Sabes quantos nomes evocas neste livro? “Todos os nomes”: 800. Incluí animais de companhia, excluí personagens históricas. É um mar de nomes que evocas por reconhecimento e gratidão, foi o que sentiste necessário, uma reunião plenária de sentimentos, reconheço-te no livro através da narrativa e dos nomes que nela evocas, mais do que pelas referências que me fazes, talvez de mais, mas, em privado, reclamando delas, entendi a tua resposta: “são o que sinto”, assim como todas e todos os nomeados, tratados com recta sinceridade. Pertença. A tua vida auto- retratada nos limites de um livro permite vislumbrar um forte sentido de pertença. Sentido de pertença apaixonado. Radical. Desde o princípio. Sentido de pertença apaixonado à família sempre vivida com um lugar-comum em que todas cabem, família alargada, além da família de sangue, um continuo geracional de vivências partilhadas que nestas páginas estão bem presentes. Vibrantes. Sentido de pertença apaixonado aos grupos construídos com amigos de infância, na escola, na cidade, na rua, desde a jovem adolescência, que o Tó Luís e a Isabel Alçada bem descreveram. Sentido de pertença apaixonado ao sporting clube associação. Sabem quantas associações formais existem em Portugal? Mais de 74 000. E da sua importância estruturante da sociedade pouco se fala e releva. Sentido de pertença apaixonado ao movimento associativo estudantil na hora de tudo pôr em causa, com o maio de 68 no outro lado da rua, magma em que mergulhamos e nos deu a conhecer. Sentido de pertença apaixonado aos movimentos políticos com vistas para o sonho das grandes transformações da sociedade nunca alcançadas, do MES - a radicalidade que ajudámos a criar e a extinguir com festa, pompa e circunstância - ao PS - a esquerda possível balançando entre o sonho das reformas radicais e a mudança incremental-reformista. Sentido de pertença apaixonado no exercício de funções técnicas e políticas, do GEBEI (e saúdo o seu fundador e dirigente máximo, Eng. º João Cravinho aqui presente), a Ministro, de militante de base a secretário-geral do PS, de embaixador na OCDE a PAR. Termino dizendo-vos que a personalidade do Eduardo, refletida neste livro, está intocada na sua integridade apesar dos atentados de que foi alvo, mostrando-nos o que sempre foi e será, um homem Livre e Honrado. Tenho dito.

domingo, outubro 22

GUTERRES

Por estes dias em que o ódio campeia, e a guerra ganha terreno sobre a paz, uma personalidade se agigante na arena internacional: Guterres. Ele foi o único dirigente global que ousou pôr os pés no terreno onde o desespero dos inocentes impera. Que viva!

quinta-feira, outubro 19

EÇA AO PANTEÃO

«Honny soit qui mal y pense» [1880/1902, Gravura, Album das Glorias - Caricatura de Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905)]. O caricaturado , Eça de Queirós, nasceu na Póvoa de Varzim em 25 de Novembro de 1845. Lembro-me, como se fosse hoje, da leitura de largos trechos das “Farpas” pelo Prof. Almodoval, sempre com a sua gabardina com um rasgão “pespontado”, nas aulas do Liceu. Era no tempo das turmas pequenas e dos professores fascinantes. Sempre podem haver professores fascinantes mas na escola elitista o seu peso era maior. Aquelas leituras das “Farpas” eram uma bênção caída do céu. O tom irónico da crítica social assumia, no tempo da ditadura, uma espessura e intencionalidade política ("não dita") que era corrosiva e apaixonante. Sentia-se a subtil passagem de uma mensagem como que a dizer-nos: “não se deixem amordaçar”, “abram os olhos”, “tomem a realidade pelos cornos” … uma pedagogia da assumpção de uma cidadania antes do tempo da democracia. Vi um dia o Prof. Almodoval, com um professor de “canto coral”, o Prof. Dores, num jogo de futebol no velho “Estádio Padinha”, em Olhão, e não mais me esqueci do sentimento de estranheza que me tomou acerca da sua presença ali. O que os teria levado ao futebol? Um gosto que eu não era capaz de colar aos seus gostos. Ignorância minha. Nunca conhecemos os homens pelas suas leituras mesmo quando pensamos que os conhecemos. Desse professor, como de outros que me marcaram profundamente, nunca cheguei, de verdade, a conhecer nada. Somente a antever a sua cultura humanista e o seu prazer, comedido, em passar para os alunos o gosto por aprender, o estímulo à curiosidade e, no fundo, o apelo à insubmissão.

quarta-feira, outubro 18

ALFARROBEIRAS

“18 de Outubro(1937). No mês de Setembro, as alfarrobeiras exalam um cheiro a amor sobre toda a Argélia, e é como se a terra inteira repousasse depois de se ter entregado ao sol, o ventre todo molhado por uma semente com perfume a amêndoa. No caminho de Sidi-Brahim, depois da chuva, o cheiro a amor emana das alfarrobeiras denso e sufocante, pesando com todo o seu peso de água. Depois o sol ao absorver a água toda, com as cores de novo deslumbrantes, o cheiro a amor torna-se fluido apenas sensível ao olfacto. E é como uma amante com quem andamos pela rua, após uma tarde inteira sufocante, e que nos contempla, ombro com ombro, por entre as luzes e a multidão.” Albert Camus, in “Caderno” n.º 2 (Setembro de 1937/Abril de 1939) – Tradução de Gina de Freitas. Edição “Livros do Brasil” (A partir da “Carnets”, 1962, Éditions Gallimard).

domingo, outubro 15

AMIZADE

“Os deveres da amizade ajudam a suportar os prazeres da sociedade”. Albert Camus, in Cadernos.

sábado, outubro 14

MÉDIO ORIENTE

“A violência contagiosa, ligada ao nascimento do Estado de Israel, vem desde então (1948) agravando as dificuldades do Oriente Médio. Vejo com admiração o trabalho feito ali para construir uma nação, para reconquistar o deserto e para receber inúmeros desafortunados, provenientes das comunidades judaicas do mundo inteiro. Mas as perspectivas são sombrias. A situação das centenas de milhares de árabes expulsos de suas casas, sobrevivendo precariamente na terra-de-ninguém, criada em torno das fronteiras de Israel, é cruel e perigosa. As fronteiras de Israel estremecem em meio a assassinatos e ataques armados, e os países árabes professam uma hostilidade irreconciliável em relação ao novo estado. Os líderes árabes de maior visão não conseguem enunciar conselhos de moderação sem serem silenciados aos gritos e ameaçados de assassinato. É um panorama tenebroso e ameaçador de violência e loucura ilimitadas. Uma coisa é certa. A honra e a sensatez exigem que o Estado de Israel seja preservado e que essa raça corajosa, dinâmica e complexa possa viver em paz com seus vizinhos. Eles podem levar àquela área uma contribuição inestimável em conhecimentos científicos, industriosidade e produtividade. Devem receber uma oportunidade de fazê-lo, pelo bem de todo o Oriente Médio.” - Winston Churchill – (Fevereiro de 1957) In “Memórias da Segunda Guerra Mundial” - Edição brasileira da "Editora Nova Fronteira"

quinta-feira, outubro 12

GUERRA UMA VEZ MAIS...LONGE

Os portugueses vêem a guerra como realidade distante. Assistimos às cenas de guerras no sofá. Não há portugueses vivos que tenham sofrido os efeitos da guerra à porta de suas casas. Não conhecemos ao vivo os horrores da guerra na nossa rua, bairro, escola, vila ou cidade. Não sofremos dos seus efeitos destruidores na nossa vida, de familiares e de amigos. Temos sido poupados à guerra dentro das nossas fronteiras e julgamos-nos imunes às suas terríveis consequências. Nem se conhecem manifestos que expressem posições colectivas de repúdio pela guerra que, aparentemente, não nos diz respeito. Assistimos resignados à devastação de comunidades, e à morte de inocentes, com palavras e sentimentos de tristeza mas com timidos gestos de solidariedade. Podemos dizer que sentimos, mas não expressamos, em sobressalto colectivo expressivo, a nossa indignação. Julgo não ser injusto se disser que reina entre os portugueses, perante uma real ameaça de generalização da guerra, um silêncio sepulcral. O mais que se comenta é o impacto económico como se estivessemos imunes a qualquer estilhaço da guerra ao vivo e ficamos-nos pacatamente pelo anúncio do cumprimentos dos nossos compromissos no seio da NATO. E aguardamos que nos caia no regaço alguma vantagem.

segunda-feira, outubro 9

É A ECONOMIA, ESTÚPIDO!

"Depois da aproximação, sondagens colocam PSD outra vez mais distante do PS Dois dias, duas sondagens, a mesma conclusão: os sociais-democratas estão em queda nas intenções de voto. Se nos últimos meses o PSD surgia taco a taco com o PS, agora a diferença voltou a aumentar." (In Público).

domingo, outubro 8

UMA GUERRA MUNDIAL?

Parece que vivemos num tempo de assassinos. Um tempo de fanatismo. De todas as cores e credos. A propósito dos acontecimentos, por estes dias, em Israel e na Palestina lembrei-me de uma frase que Albert Camus escreveu no seu Caderno, em plena 2ª Guerra Mundial: "1 de Setembro de 1943. Aquele que desespera dos acontecimentos é um cobarde, mas aquele que tem esperança na condição humana é um louco."

quinta-feira, outubro 5

REPÚBLICA

Às 8,30 da manhã passava pela Rua do Ouro, em triunfo, a artilharia, que era delirantemente ovacionada pelo povo. As ruas acham-se repletas de gente, que se abraça. O júbilo é indescritível! A essa hora, no Castelo de S. Jorge, que tinha a bandeira azul e branca, foi içada a bandeira republicana. O povo dirigiu-se para a Câmara Municipal, dando muitos vivas à REPÚBLICA, içando também a bandeira republicana. (…) Vê-se muita gente no castelo de S. Jorge acenando com lenços para o povo que anda na baixa. Os membros do directório foram às 8,40 para a Câmara Municipal, onde proclamaram a República com as aclamações entusiásticas do povo. O governo provisório consta será assim constituído: presidente, Teófilo Braga; interior, António José de Almeida; guerra, Coronel Barreto; marinha, Azevedo Gomes; obras públicas, António Luís Gomes, fazenda, Basílio Telles; justiça, Afonso Costa; estrangeiros, Bernardino Machado. Governador Civil, Eusébio Leão. Em quase todos os edifícios públicos estão tremulando bandeiras republicanas. A polícia faz causa comum com o povo, que percorre as ruas conduzindo bandeiras e dando vivas à República. [Transcrito de O Século, quarta feira, 5 de Outubro de 1910, publicação de última hora]. Raúl Brandão Memórias “O meu diário” – Volume II Perspectivas & Realidades

quarta-feira, setembro 27

Ressonância de 27 setembro de 2004

As tarefas de arrumação das estantes estão praticamente concluídas. Restam ainda alguns papéis e documentos. Mas nesta faceta a organização da minha pequena biblioteca está facilitada pois nunca segui o hábito de trazer para casa cópias dos dossiers dos meus vários exercícios profissionais. Aqui identifico mais alguns livros marcantes que me surgiram a uma nova luz neste trabalho de arrumação: “O Físico prodigioso” -novela – Jorge de Sena – Edições 70, 1979. (Uma das mais extraordinárias leituras da minha vida); “O Fenómeno da Guerra” – Gaston Bouthoul – Ideias e Formas – Estúdios Cor, Edição de 1966; (repleto de sublinhados e anotações pois me lembro de ter sido uma leitura apaixonante da minha juventude – carece de restauro); “Lenine, seguido de um texto de André Breton” – Trotsky – Edições “& etc”; (com uma nota manuscrita assinalando que deve ter sido comprado, em Faro, no verão de 1978); “O Judeu – Narrativa dramática em três actos” – Bernardo Santareno – Edições Ática, edição de 1966; (livro que sempre me acompanhou desde a época das minhas práticas teatrais contemporâneas desta primeira edição). Para os menos relacionados com o conhecimento do teatro português e com o teor desta obra, que versa o sacrifício às mãos da inquisição de António José da Silva – o Judeu, aqui reproduzo um excerto do final do 3º Acto: “Olhai que o Santo Tribunal da Inquisição mais não é que o corpo visível, a aparência mortal dum espírito de trevas, e que este espírito … vivo por certo persistirá, neste Nação, muito tempo ainda após a morte do Santo Ofício!” E, ainda, o último parágrafo da narrativa: “À medida que a obscuridade vai tomando o palco, ilumina-se o vitral de fundo: este deixar-nos-á ver as chamas duma fogueira, cada vez mais altas, até que por inteiro o enchem. Atingem o máximo, o canto inquisitorial e o ódio sanguinário do povo.” Dedico esta evocação ao meu amigo Eduardo Ferro Rodrigues que, por estes dias, cessou as funções de Secretário-geral do Partido Socialista.

segunda-feira, setembro 25

ARGENTINA

"O homem que pode ser o próximo Presidente da Argentina chama-se Javier Milei, já teve várias vidas profissionais, e acredita que o seu falecido cão “está sentado ao lado do Divino”. É neste cenário de grande disrupção política e alta inflação que os argentinos vão votar nas eleições gerais de 22 de outubro." (In Expresso).

domingo, setembro 24

FUTEBOL E AUTOCRACIAS

É muito impressionante o papel do futebol na lavagem da imagem pública dos regimes autocráticos. É o caso da Arábia Saudita que está a investir fortunas a perder de vista no futebol. "O irmão de um homem executado pelo regime da Arábia Saudita escreveu uma carta aberta a Steven Gerrard, treinador do Al-Ettifaq, e a Jordan Henderson, capitão da mesma equipa, pedindo-lhes que falem publicamente sobre as violações dos abusos dos direitos humanos no país. O Al-Ettifaq é detido pelo ministro dos desportos saudita, que faz parte do governo acusado de executar centenas de pessoas. No ano passado morreram 81 homens e um deles era o irmão de Yasser al-Khayat, executado por participar numa manifestação a favor da democracia. Este domingo disputa-se a Taça do Rei (o Al-Ettifaq mede formas com o Jeddah, nos 16 avos de final), em honra da família real, e Al-Khayat acredita que é o momento certo para os dois ingleses falarem." (In Record).

sábado, setembro 23

GUERRA

(...) As pessoas queixam-se de que tratamos os animais como objectos, mas, na realidade tratamo-los como prisioneiros de guerra. Sabes que, quando, pela primeira vez, se abriram ao público os jardins zoológicos, os zeladores tinham de proteger os animais dos ataques dos visitantes? Os visitantes achavam que os animais estavam ali para serem insultados e abusados, como prisioneiros depois da vitória. Houve, em tempos, uma guerra contra os animais a que chamámos caça embora de facto, guerra e caça sejam a mesma coisa (Aristóteles percebeu-o com toda a clareza). Essa guerra durou milhões de anos. Só há uns séculos atrás a ganhámos quando inventámos as armas. Só depois da vitória estar consolidada é que nos pudémos dar ao luxo de cultivar a compaixão. Mas a nossa compaixão é muito superficial. Por baixo dela existe uma atitude mais primitiva. O prisioneiro de guerra não pertence à nossa tribo. Podemos fazer dele o que quisermos. Podemos sacrificá-lo aos nossos deuses. Podemos degolá-lo, arrancar-lhe o coração, lançá-lo às chamas. Quando se trata de prisioneiros de guerra não há leis. (J.M. Coetzee, Elisabeth Costello, romance ed D. Quixote, p 106, in cap. 4 As Vidas Dos Animais, Os poetas e os animais.)

quarta-feira, setembro 20

UM RETRATO

O Presidente da República, numa visita de Estado, apurou duas boutades, ou, em bom português, duas calinadas. Uma a seguir à outra. A primeira era uma espécie de comentário sobre um decote e o clima apropriado ao decote, que nem pode ser classificada de sexista, apenas grosseira. Num chefe de Estado, seguramente. A segunda foi uma declaração identitária que nos apresenta a uma comunidade de emigrantes ou descendentes de emigrantes portugueses como um país de “fado, bacalhau e Cristiano Ronaldo”. Somos era o verbo definidor, somos isto. Fado, bacalhau e futebol. E, talvez para Marcelo Rebelo de Sousa, sejamos isto. Não somos isto. Já passámos disto há muito tempo e não me revejo na certificação identitária. Há 50 anos talvez fizesse sentido. Há um momento em que a obsessão da empatia como virtude dialogal gera uma familiaridade grotesca. Marcelo Rebelo de Sousa, sobre o qual raramente escrevo, no qual votei duas vezes e que considerava uma peça equilibrante do regime, foi sempre uma figura simpática. Mais do que empática. Na verdade, ele mesmo me disse um dia ser um animal de sangue frio. A simpatia decorria da familiaridade, que na televisão adquiria contornos de proximidade. Já Marcello Caetano, de que herdou o nome, tinha ensaiado o estilo nas “Conversas em Família”, que se opunham ao estilo reservado, distante e antipático, no sentido literal, de Salazar. A televisão dá às pessoas a ilusão de que conhecem o boneco televisivo e, pior ainda, de que o boneco os conhece a eles. E os representa ou, pelo menos, fala em nome deles. É uma ilusão perigosa que, no caso do “professor Marcelo”, transformou um barão do PSD, vindo da Linha de Cascais e com os maneirismos da Linha de Cascais, numa figura mais de salão do que de comício, num tio coletivo e num oráculo político. Reconhecido pela formidável capacidade de intrigar e enlear, com a televisão Marcelo elevou-se acima de si mesmo, e elevou a intriga política a preocupação patriótica. E nacional. Por grosso, era o que se chama em bom português uma simpatia, um amor de pessoa, nunca um tipo “porreiro” porque teve sempre a inteligência de não descer, mas de subir. Elevar, justamente. O tipo “porreiro” era de outra classe social, e Marcelo era um típico produto de classe. Era também um dos comentadores dotados de mais argúcia, disfarçando uma filiação partidária, e usando o comentário umas vezes para exercer pequenas vendettas e outras para manipular e recrutar correligionários. Esta orientação levou-o ao Palácio de Belém, depois de ter sido um presidente do PSD atacado e vencido e um político de um governo cujo primeiro-ministro não tinha confiança nele. As memórias de Francisco Pinto Balsemão não o poupam. Restava a última sinecura, a presidência. A oposição de Passos Coelho, que o classificou como um cata-vento, um homem despido de convicções, mais interessado em agradar, acabaria por ser-lhe útil. Passos Coelho sairia da política como o autor de malfeitorias mil e vaiado pelas esquerdas unidas sob o chapéu largo e bondoso de António Costa, o grande reformador e conciliador nato. Se Passos Coelho era mau, fazendo esquecer os desvarios de Sócrates e os abusos da confiança dos portugueses, e a propaganda da esquerda extrema ou liberal foi exímia e eficacíssima para desalojar o PSD e seus vestígios, Marcelo era a face humana dos sociais-democratas. O PSD não se refez da manobra, que atirou Passos para um patamar de ignomínia donde desalojou Sócrates. Passos era o diabo. Marcelo trabalhou este terreno minado de insatisfações e esperanças, algumas falsas, com a inteligência que conhecemos. Resolveu fazer uma campanha à parte dos partidos, baseada na tal proximidade. E tomou-lhe o gosto. O que não tinha tido como político, o amor das massas, teve como comentador e como candidato. A campanha foi um manual de populismo disfarçado de empático entendimento das forças e fraquezas do povo português habituado a presidentes litúrgicos e que nunca se desviaram da solenidade do cargo. Eanes, Soares, Cavaco e Sampaio nunca comprometeram a autoridade e a gravidade do cargo para adquirir simpatia avulsa. No caso de Soares, o comportamento era monárquico, mas a autoritas e a gravitas, para ele essenciais, estavam lá, a par dos afetos. Afetos, como diz Marcelo. E dos afetos foi a campanha. O primeiro mandato foi o que foi. Belém suportou os erros de Costa e foi o esteio. A esquerda unida ficou grata, e Marcelo baniu oposições ideológicas apesar de começar a dizer que a direita era ele, o único representante legítimo do que restava do PSD e do defunto CDS. O comportamento era de centro-esquerda mais do que de centro-direita, exceto quando as leis conflituavam com uma arreigada fé católica. A direita que Marcelo representava era a direita cristã da educação e não a da ideologia do partido. Tanto mais que o Presidente parecia ganhar uma nova apreciação por António Costa, que personificava o centrão e o bom senso, e alguém que tinha as esquerdas na mão. Aproximá-las do poder neutralizava-as e garantia alguma paz social. Marcelo viu isto primeiro do que toda a gente. De todos os Presidentes, foi o que menos se interessou por dois vetores do cargo, a política internacional e a cultura. Marcelo Rebelo de Sousa nunca foi um intelectual, foi um homem de agência política, direcionada. A sua perceção estava vocacionada para tecer redes de poder e para destruir redes de poder que o ameaçassem, e as representações da realidade política, desde o tempo dos comentários, continham ligeiras usurpações dessa realidade. O poder coercivo do discurso disfarçado de bonomia. O segundo mandato estava no bolso. O país, entretanto, mudara. Choques internacionais, que ele mal administrou, e falências nacionais, sobretudo as da maioria absoluta, foram absorvidas pelo Presidente como desafios à capacidade mobilizadora dos afetos. Quanto mais crescia o descontentamento mais Marcelo se tornava o mais populista dos políticos portugueses. Já não era a teologia da selfie e do abraço, eram frases soltas e comentários políticos ao minuto à ação do Governo, expedidos como se em Belém estivesse o comentador e não o Presidente. A maioria destes comentários era deslocada e uma usurpação do poder do Executivo. As reuniões do Conselho de Estado, instrumentalizadas como arma de arremesso contra o Governo, foram o último degrau do populismo. Os conselheiros, contaminados pelo procedimento e a leviandade, acabaram a comentar e intrigar o que lá se tinha passado, num dos instantes mais desoladores da democracia. O populismo marcelista degenerou em práticas pouco democráticas, e certamente inadequadas à função presidencial. Um casal desavindo é sempre um espetáculo deprimente. A função presidencial está comprometida. Atores políticos vários, no segredo das confidências, começam frases assim: eu até gosto do Marcelo, mas... Este “mas” é uma interrogação e a expressão de um cansaço. Quosque tandem abutere, Marcelo, patientia nostra? Qualquer observador sensato, não precisa ser Cícero, está farto das manifestações instantâneas de portuguesismo “fixe” que ganham atributos de cerimónias de Estado. A recusa de uma atitude séria sobre o mundo não serve o momento grave. A sociedade portuguesa, empobrecida e classificada pelos mecanismos do capitalismo e do mercado como não rentável, está a tornar-se um estudo antropológico sobre o ressentimento. E o desapontamento. Marcelo talvez ache que a sua marca de populismo conseguirá estancar marcas mais viciosas, impedindo-as de se tornarem dominantes. Está errado. O pensamento popularucho, somos fado, bacalhau e Ronaldo, coloniza o discurso português, transformando-o no beneficiário de todos os niilismos. Se só somos isto, somos nada. Somos repasto de turistas, fado e bacalhau, e das paixões tribais da bola. Não temos método nem propósito, não temos história, não temos ciência, não temos cultura, não temos nada exceto o juízo dos outros sobre o valor de entretenimento. Nem por ironia é aceitável. Uma sociedade sem reportório crítico, sem vitalidade intelectual, sem convicção, sem educação. Fado e bacalhau, a retórica pobre dos pobres de espírito. Ronaldo, o novo Camões. A estrutura deste vocabulário é perigosa, embalando a ignorância num contexto político e, dir-se-ia, estético, que faz dos portugueses seres que não governam o seu destino, são governados. A versão identitária da portugalidade no texto de Marcelo não passa de indulgência e transtorno cognitivo. O estereótipo é tudo menos uma experiência estética. Outros Presidentes, como Soares e Sampaio, leram muitos livros de História. Talvez fosse bom que Marcelo se retirasse dos afetos e, por uma vez, lesse até ao fim um livro em vez de o apresentar, recomendar e prefaciar. Recomendo-lhe dois, “O Livro do Desassossego”, de Bernardo Soares, e “Os Lusíadas”, de Luís de Camões. E releia, supondo que leu, “Os Maias”. Nele encontrará uma personagem chamada Dâmaso Salcede. Um estremeção de reconhecimento e identificação será inevitável. (Clara Ferreira Alves, in Expresso/ Fotografia de Hélder Gonçalves).

segunda-feira, setembro 18

GUERRA

“É sempre vão pretender quebrar um laço de solidariedade, apesar da estupidez e da crueldade dos outros. Não se pode dizer: “Ignoro-o”. Colabora-se ou combate-se. Nada é menos perdoável que a guerra e o apelo aos ódios nacionais. Mas uma vez surgida a guerra, é vão e cobarde querer afastar-se a pretexto de que se não é responsável. As torres de marfim acabaram. A benevolência é interdita. Por si própria e para os outros. Julgar um acontecimento é impossível e imoral se se está de fora. É no seio dessa absurda desgraça que se mantém o direito de a desprezar. A reacção de um indivíduo não tem qualquer importância. Pode servir para qualquer coisa mas nada a justifica. Pretender, por diletantismo, afastar-se e separar-se do seu ambiente, é dar prova da mais absurda das liberdades. Eis porque motivo era necessário que eu tentasse servir. E se não me quiserem, é igualmente necessário que eu aceite a posição do civil desprezado. Em ambos os casos estou no centro da guerra e tenho o direito de a julgar. De a julgar e de agir.” Albert Camus, in Caderno” n.º 3 (Abril de 1939/Fevereiro 1942). (Para que se compreenda a problemática deste fragmento que muito me influenciou. Em Setembro de 1939, Camus está pronto para partir para a Grécia quando eclode a 2ª guerra mundial. Camus não quer escapar à guerra e apresenta-se como voluntário mas não é aceite devido à sua tuberculose.)