In “Traços e Cores” através da “Linha de Cabotagem”
Lendo os anexos de “Camus et l’homme sans Dieu” reencontro as notas de viagem de Camus a Florença em Setembro de 1937. Reparo nas notas da Helena. Não resisto.
“As rosas retardatárias de Santa Maria Novella e as mulheres, neste domingo de manhã em Florença. Os seios libertos, os olhos e os lábios que vos fazem bater o coração, a boca seca e um calor nos rins.”*
Curiosamente com o mesmo título que Helena apõe nas suas notas de viagem, pode ler-se nos “Carnets I” de Camus um longo escrito de que transcrevo alguns excertos:
“Fiesole
Leva-se uma vida difícil de viver. Nem sempre se consegue adaptar os actos à visão que se tem das coisas. (…) Milhares de olhos contemplaram esta paisagem e para mim ela é como o primeiro sorriso do mundo.* Põe-me fora de mim, no sentido profundo da palavra.
(…)
Este mundo aniquila-me. Leva-me até ao fim. Nega-me sem cólera. E eu, aquiescente e vencido, encaminho-me para uma sabedoria onde já tudo está conquistado – se as lágrimas não me subissem aos olhos e se este enorme soluço de poesia que me enche o coração não me fizesse esquecer a verdade do mundo.”
“13 de Set. (1937)
O aroma do loureiro que se encontra em Fiesole à esquina de cada rua.
15 de Set.(1937)
No claustro de São Francisco em Fiesole, um pequeno pátio rodeado de arcadas, coberto de flores vermelhas * de sol e de abelhas amarelas e pretas. (…) Estou sentado no chão e penso naqueles franciscanos cujas celas vi há pouco, dos quais vejo agora as inspirações, e sinto que, se eles têm razão, é comigo que eles têm razão. Atrás do muro a que me apoio, sei que há a colina que desce para a cidade e essa dádiva de Florença inteira com os seus ciprestes. Mas esse esplendor do mundo é como a justificação destes homens. Ponho todo o meu orgulho em acreditar que ela é também a minha e a de todos os homens da minha raça – que sabem que uma extrema pobreza se aproxima sempre do luxo e da riqueza do mundo. Se eles se despojam, é para uma vida maior (e não para uma outra vida). É o único sentido que consigo extrair da palavra “miséria”. “Estar nu” contém sempre um sentido de liberdade física e essa harmonia da mão e das flores, esse acordo aproximado da terra e do homem liberto do humano., ah, converter-me-ia de boa vontade se ela não fosse já a minha religião.
(…)
Esta presença de mim próprio em mim próprio, esforço-me por a conduzir até ao fim, por a conservar diante de todos os rostos da minha vida – mesmo ao preço da solidão que agora sei tão difícil de suportar. Não ceder: aí está o essencial. Não consentir, não trair. Toda a minha violência me auxilia e no ponto a que ela me leva o meu amor vai ter comigo e, com ele, a furiosa paixão de viver que dá sentido aos meus dias.
(…)
Ir até ao fim, é saber guardar o seu segredo. Sofri por estar só, mas por guardar o meu segredo venci o sofrimento de estar só. E hoje não conheço maior glória que viver só e ignorado. Escrever, minha profunda alegria!
(…)
E os mesmos homens que, em San Francesco, vivem diante das flores vermelhas, têm nas suas celas o crânio do morto que lhes alimenta as meditações, Florença na janela e a morte em cima da mesa.
(…)
Se hoje me encontro tão longe de tudo, é que não tenho outro desejo senão amar e admirar. Vida com rosto de lágrimas e de sol, vida sem o sal e a pedra quente, vida como a amo e a entendo, parece-me que ao acariciá-la, todas as minhas forças de desespero e de amor se conjugarão. Hoje não é como uma paragem entre sim e não. Mas ele é sim e é não. Não e revolta perante tudo o que não é o sol e as lágrimas. Sim à minha vida de que sinto pela primeira vez a promessa próxima. Um ano intenso e desordenado que termina e a Itália; a incerteza do futuro, mas a liberdade absoluta em relação ao passado e a mim próprio. Está nisso a minha pobreza e a minha única riqueza. É como se recomeçasse a partida; nem mais feliz nem mais infeliz. Mas com a consciência das minhas forças, o desprezo pelas minhas vaidades, e esta febre, lúcida, que me preocupa em face do meu destino.”
[Estas são algumas das páginas mais significativas e pujantes saídas da pena de Camus e que definem o sentido do seu pensamento e da sua obra. Inspiradoras para quem quiser e puder compreender o seu significado, hoje, agora, aqui, num dia assim!]
Lendo os anexos de “Camus et l’homme sans Dieu” reencontro as notas de viagem de Camus a Florença em Setembro de 1937. Reparo nas notas da Helena. Não resisto.
“As rosas retardatárias de Santa Maria Novella e as mulheres, neste domingo de manhã em Florença. Os seios libertos, os olhos e os lábios que vos fazem bater o coração, a boca seca e um calor nos rins.”*
Curiosamente com o mesmo título que Helena apõe nas suas notas de viagem, pode ler-se nos “Carnets I” de Camus um longo escrito de que transcrevo alguns excertos:
“Fiesole
Leva-se uma vida difícil de viver. Nem sempre se consegue adaptar os actos à visão que se tem das coisas. (…) Milhares de olhos contemplaram esta paisagem e para mim ela é como o primeiro sorriso do mundo.* Põe-me fora de mim, no sentido profundo da palavra.
(…)
Este mundo aniquila-me. Leva-me até ao fim. Nega-me sem cólera. E eu, aquiescente e vencido, encaminho-me para uma sabedoria onde já tudo está conquistado – se as lágrimas não me subissem aos olhos e se este enorme soluço de poesia que me enche o coração não me fizesse esquecer a verdade do mundo.”
“13 de Set. (1937)
O aroma do loureiro que se encontra em Fiesole à esquina de cada rua.
15 de Set.(1937)
No claustro de São Francisco em Fiesole, um pequeno pátio rodeado de arcadas, coberto de flores vermelhas * de sol e de abelhas amarelas e pretas. (…) Estou sentado no chão e penso naqueles franciscanos cujas celas vi há pouco, dos quais vejo agora as inspirações, e sinto que, se eles têm razão, é comigo que eles têm razão. Atrás do muro a que me apoio, sei que há a colina que desce para a cidade e essa dádiva de Florença inteira com os seus ciprestes. Mas esse esplendor do mundo é como a justificação destes homens. Ponho todo o meu orgulho em acreditar que ela é também a minha e a de todos os homens da minha raça – que sabem que uma extrema pobreza se aproxima sempre do luxo e da riqueza do mundo. Se eles se despojam, é para uma vida maior (e não para uma outra vida). É o único sentido que consigo extrair da palavra “miséria”. “Estar nu” contém sempre um sentido de liberdade física e essa harmonia da mão e das flores, esse acordo aproximado da terra e do homem liberto do humano., ah, converter-me-ia de boa vontade se ela não fosse já a minha religião.
(…)
Esta presença de mim próprio em mim próprio, esforço-me por a conduzir até ao fim, por a conservar diante de todos os rostos da minha vida – mesmo ao preço da solidão que agora sei tão difícil de suportar. Não ceder: aí está o essencial. Não consentir, não trair. Toda a minha violência me auxilia e no ponto a que ela me leva o meu amor vai ter comigo e, com ele, a furiosa paixão de viver que dá sentido aos meus dias.
(…)
Ir até ao fim, é saber guardar o seu segredo. Sofri por estar só, mas por guardar o meu segredo venci o sofrimento de estar só. E hoje não conheço maior glória que viver só e ignorado. Escrever, minha profunda alegria!
(…)
E os mesmos homens que, em San Francesco, vivem diante das flores vermelhas, têm nas suas celas o crânio do morto que lhes alimenta as meditações, Florença na janela e a morte em cima da mesa.
(…)
Se hoje me encontro tão longe de tudo, é que não tenho outro desejo senão amar e admirar. Vida com rosto de lágrimas e de sol, vida sem o sal e a pedra quente, vida como a amo e a entendo, parece-me que ao acariciá-la, todas as minhas forças de desespero e de amor se conjugarão. Hoje não é como uma paragem entre sim e não. Mas ele é sim e é não. Não e revolta perante tudo o que não é o sol e as lágrimas. Sim à minha vida de que sinto pela primeira vez a promessa próxima. Um ano intenso e desordenado que termina e a Itália; a incerteza do futuro, mas a liberdade absoluta em relação ao passado e a mim próprio. Está nisso a minha pobreza e a minha única riqueza. É como se recomeçasse a partida; nem mais feliz nem mais infeliz. Mas com a consciência das minhas forças, o desprezo pelas minhas vaidades, e esta febre, lúcida, que me preocupa em face do meu destino.”
[Estas são algumas das páginas mais significativas e pujantes saídas da pena de Camus e que definem o sentido do seu pensamento e da sua obra. Inspiradoras para quem quiser e puder compreender o seu significado, hoje, agora, aqui, num dia assim!]
.
*”Noces, p. 81, 88/89 e 82 a 85 (ed. 1950)
.