quinta-feira, setembro 26

ALBERT CAMUS - CENTENÁRIO (1)

C’est pourquoi les vrais artistes ne méprisent rien ; ils s’obligent à comprendre au lieu de juger. Et, s’ils ont un parti à prendre en ce monde, ce ne peut être que celui d’une société où, selon le grand mot de Nietzsche, ne régnera plus le juge, mais le créateur, qu’il soit travailleur ou intellectuel.

Albert Camus, Discours de réception du Prix Nobel de littérature, prononcé à Oslo, le 10 décembre 1957

quarta-feira, setembro 25

O CORVO

1
Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de algúem que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais."

2
Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais
- Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
Mas sem nome aqui jamais!

3
Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo,
"É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isto, e nada mais".

4
E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
"Senhor", eu disse, "ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi..." E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.
Noite, noite e nada mais.

5
A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais
- Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.
Isso só e nada mais.

6
Para dentro estão volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
"Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais."
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.
"É o vento, e nada mais."

7
Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
Foi, pousou, e nada mais.

8
E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."
Disse o corvo, "Nunca mais".

9
Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos meus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
Com o nome "Nunca mais".

10
Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, "Amigo, sonhos - mortais
Todos - todos já se foram. Amanhão também te vais".
Disse o corvo, "Nunca mais".

11
A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
"Por certo", disse eu, "são estas vozes usuais,
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais
Era este "Nunca mais".

12
Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu'ria esta ave agoureira dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
Com aquele "Nunca mais".

13
Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sobras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sobras desiguais,
Reclinar-se-á nunca mais!

14
Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
"Maldito!", a mim disse, "deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".

15
"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ância e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!
Disse o corvo, "Nunca mais".

16
"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.
Dize a esta alma entristecida se no Édem de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".

17
"Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!", eu disse.
"Parte! Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".

18
E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,
Libertar-se-á... nunca mais!

Edgar Allan Poe, Tradução de Fernando Pessoa


segunda-feira, setembro 23

ANTÓNIO RAMOS ROSA

CORPO DE ALMA

Se foste corola ou barco,
mas quando?
minha irmã,
minha leve amante, minha árvore,
que o mundo levantava
na inocência absoluta
do instante.
Alta estavas no amplo e recolhida
como uma lâmpada,
alta estavas na varanda branca.
Se acaso ainda podes ser aroma
dos meus olhos,
corpo no corpo,
retiro e substância, linha alta
da delícia,
nada te pedirei na minha ânsia
de puro espaço,
de azul imediato,
de luz para o olvido e o deserto.

António Ramos Rosa
No dia da sua morte. Poeta maior
da língua portuguesa e da minha cidade
de Faro.

In “Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa”
de Eugénio de Andrade. “Campo das Letras".

sexta-feira, setembro 20

QUANDO ELAS DESPERTAM

Procura guardá-las, Poeta,

por poucas que sejam de guardar,

do teu amar as visões.

Coloca-as no meio ocultas nas tuas frases.

Procura detê-las, Poeta,

quando em tua cabeça elas despertam,

de noite ou na luz crua do meio-dia.





KONSTANDINOS KAVAFIS

Tradução de Jorge de Sena

POLÍTICA - 19

A propósito do que se tem passado com a comunicação social nas eleições autárquicas com votação marcada para o dia 29 de Setembro. A luta política exige intervenção e debate públicos, contraditório, opiniões diversas e divergentes, com o mínimo de peias burocráticas. Ninguém se assusta, em democracia, com uma boa discussão, um discurso inflamado, uma proclamação panfletária. As televisões afastaram-se, ou foram afastadas, de promover debates entre os candidatos. As eleições são um momento especial para dar a conhecer os programas das candidaturas que se propõem governar e cada uma o fará a seu jeito. Sejam eleições nacionais, entre nós legislativas ou europeias, ou locais (autárquicas), ou regionais, como no caso das que se disputam nas regiões autónomas dos Açores e Madeira, a voz dos candidatos tem que ser ouvida pelos cidadãos eleitores. Não vale a pena fingir que não se passa nada a este respeito no caso das presentes eleições em que os candidatos são numerosos e disputam o voto em círculos eleitorais designados por concelhos e freguesias. Estas são, porventura, as mais genuínas eleições no nosso sistema democrático. Mas têm merecido uma flagrante desvalorização por boa parte dos fazedores de opinião, meios de comunicação social e CNE que ao pretender aplicar uma lei obsoleta em favor da justiça coarcta e ofende o mais sagrado valor da liberdade. O meu protesto.

quarta-feira, setembro 18

A LIBERDADE -2

« Non, on ne construit pas la liberté sur les camps de concentration, ni sur les peuples asservis des colonies, ni sur la misère ouvrière ! Non, les colombes de la paix ne se perchent pas sur les potences, non, les forces de là liberté ne peuvent pas mêler les fils des victimes avec les bourreaux de Madrid et d’ailleurs. De cela, au moins, nous serons désormais bien sûrs comme nous serons sûrs que la liberté n’est pas un cadeau qu’on reçoit d’un État ou d’un chef, mais un bien que l’on conquiert tous les jours, par l’effort de chacun et l’union de tous. »
 
ALBERT CAMUS, in allocution prononcée à la Bourse du Travail de Saint-Etienne, 10 mai 1953.

segunda-feira, setembro 16

A LIBERDADE


“Revolta
Finalmente, escolho a liberdade. Pois que, mesmo se a justiça não for realizada, a liberdade preserva o poder de protesto contra a injustiça e salva a comunidade.
A justiça num mundo silencioso, a justiça dos mundos destrói a cumplicidade, nega a revolta e devolve o consentimento, mas desta vez sob a mais baixa das formas. É aqui que se vê o primado que o valor da liberdade pouco a pouco recebe. Mas o difícil é nunca perder de vista que ele deve exigir ao mesmo tempo a justiça, como foi dito.
Dito isto, há também uma justiça, ainda que muito diferente, fundando o único valor constante na história dos homens que só morreram bem, quando o fizeram pela liberdade.
A liberdade é poder defender o que não penso, mesmo num regime ou num mundo que aprovo. É poder dar razão ao adversário."
 
Albert Camus, in Cadernos

 
Cinco comentários acerca de uma palavra sobre a qual merece a pena refletir: a liberdade.
 
Um comentário atrevido ao trecho do grande Camus

A liberdade não é um valor absoluto e integral. Ela não se verifica pela sua existência ou pela sua ausência, mas revela-se na sua maior ou menor substância, e essa substância não está, essencialmente, no poder agir e afirmar o que se pensa, mas na densidade que envolve esse pensar e esse agir. Por isso é um absurdo chamarmos livres às sociedades em que vivemos, porque elas poderão ser mais ou menos livres que outras mas nunca livres em absoluto. Mas absurdo maior é chamarmos livre a uma sociedade em que o pensamento nunca como antes foi tão condicionado por tão poderosos instrumentos de alienação, despossuindo o homem da sua verdadeira essência, tornando-o um ser uniformizado e unidimensional. Moral, necessidades, estilos de vida são induzidos por esses poderosos intrumentos fabricadores do conformismo e do senso-comum numa escala nunca vista.


A esta ideia absoluta de liberdade vem atrelada a ideia de democracia, como organização social e política que a garante. Também ela, aqui, tomada como categoria definitiva e única - a democracia, e não como categoria relativa - esta democracia. Se a democracia perdeu hoje, indiscutivelmente, substância também a perdeu a liberdade, tendo sido ambas remetidas para os seus aspectos formais.
O pior desta democracia é esta ilusão de liberdade.
Isto acontece porque o chamado desenvolvimento favorece as desigualdades sociais e a centralização do conhecimento, do poder e da riqueza. O combate pela justiça é, por isso, o verdadeiro chão onde pode germinar a liberdade. Ao contrário do que dizem, a igualdade social é que pode libertar a individualidade, ao contrário da desigualdade opressora que produz a unidimensionalidade e uniformidade humana. Todos os actos de justiça alargam o espaço da liberdade, ainda que possam restringir o direito ilegítimo de alguns, que é grosseiro designar como cerceamento da liberdade.

Resumindo, inverteria, passe o atrevimento, a prioridade dos termos usados por Camus. Escolho a justiça porque sem ela a liberdade não passa de uma vã e perigosa formalidade, e só com a sua (da justiça) realização progressiva poderá a liberdade ganhar substância. Náo existem actos de justiça atentatórios do valor substancial da liberdade.
Abraço. Carlos Pratas
*
Sobre esta questão complexa todas as simplificações são perigosas. Quando se cataloga ou se acusa deve dizer-se porquê. Duas notas :

1 o comunismo sempre foi património do ideário libertário. Identificá-lo com o totalitarismo, sem mais, é uma facilidade que dá jeito mas não abona no rigor de quem o faz;

2 é uma originalidade conciliar o ideário libertário com o pensamento social-democracia e a defesa da democracia burguesa.
*

O comentário anterior é meu apesar de me ter esquecido de assinar. Escrevi-o como resposta imediata ao comentário do EG que me surpreendeu pelos termos em que foi feito. Acrescento um último esclarecimento:

Nunca defendi posições totalitárias e sempre combati aqueles que falando em nome do comunismo têm muito a ver com o totalitarismo e pouco com o comunismo.. Penso que é tarefa maior resgatar essa ideia original de uma sociedade de plena igualdade e liberdade. Podia inventar-se outra palavra mas essa representa um património de luta de emancipação dos oprimidos e explorados.
Quanto à Democracia, defendo uma outra mais ampla e participada e não esta (por isso não tenho votado) que se faz de um poder cada vez mais delegado e, por isso, abre espaço para florescerem soluções de cariz autoritário. Carlos Pratas
*
Esta citação dos “cadernos” de Camus é o assunto, e a síntese de “O homem revoltado” (1951). Uma das mais importantes reflexões do séc. XX. Todo o livro (O homem revoltado), a que Camus empresta o brilho literário que lhe é característico, se desenvolve para chegar à síntese aqui “postada”. Como se sabe, essa síntese, e o suporte que a fundamenta, ocasionou uma violenta controvérsia, e esteve na base do também violento rompimento entre Camus e Sarte. Rompimento que só viria a ser reparado após a morte de Camus, no vibrante elogio "post mortem" que Sarte lhe dedicou.
Um comentário a um “post” não se presta a grandes aprofundamentos. Mas esta questão é essencial, em certo sentido é a questão, e quero deixar o meu contributo.
A história da “revolta” desenvolvida por Camus no livro não cauciona aquela síntese, pese o esforço produzido nesse sentido. Esse esforço é carrilado na oposição entre o “revolucionário” e o “revoltado”. Através dessa ideia central, Camus tentou chegar à oposição entre justiça e liberdade; ou, o que vai dar ao mesmo, à sua hierarquização, numa escala de valores. Admitida essa oposição, ou essa hierarquização, ou, o que vai dar ao mesmo, à sua possibilidade, é fácil a interpelação de uma escolha: escolhe um dos termos. Camus faz a sua escolha.
Todo o problema reside na admissão dessa oposição. Admitida ela, a questão torna-se irresolúvel, porque, ao contrário da pretensão de Camus, a escolha de um dos termos não resolve o problema. Antes prolonga, indefinidamente, o equívoco.
A solução só pode residir na negação da oposição entre justiça e liberdade. Na assunção da tese de que a liberdade sem justiça é meramente formal, exterior aos mecanismos sociais, e, como muito bem assinalou CP, assassina dela própria: na essência, reduz-se à caricatura dela própria, à liberdade de uma minoria explorar a maioria, à redução do indivíduo a um “replicador” do senso comum, esse mesmo que é o sustentáculo ideológico daquela exploração. E repare-se: se não há justiça, é porque alguém oprime alguém; será admissível conceber que essa opressão possa realizar-se em liberdade? Parece óbvio que não. Nas sociedades “livres” contemporâneas, qual a medida da capacidade de protesto, que fundamenta a escolha de Camus, do assalariado ou do desempregado? E qual a medida da capacidade de recurso que o explorado na sua força de trabalho encontra na justiça “independente” e “cega”? Por outro lado, na assunção da tese de que justiça sem liberdade (aqui entendida como a liberdade, sem peias de qualquer espécie, de plena expansão das possibilidades individuais e colectivas) se transforma numa justiça dirigida, e, nessa qualidade, portadora inevitável de diferenciações sociais, de poderes arbitrários e de novas, que se revelam afinal velhas, formas de exploração.
(CONT)
*
A negação da oposição entre a liberdade e a justiça pode sintetizar-se deste modo: não há liberdade sem justiça, não há justiça que se cumpra sem liberdade. Escolher uma, admitindo o abandono da outra, como quem escolhe um bem maior, face a um bem menor, significa, no fim e ao cabo, negar ambas. Deste modo, essa escolha torna-se pérfida, e ilusória.
Todavia, sobra um aspecto fundamental, argutamente sinalizado pelo CP: porque é intrínseca à realidade social, a realização da justiça, no que tem de movimento individual e colectivo, favorece a realização da liberdade; pelo contrário, e porque é extrínseca àquela realidade, a expansão da liberdade formal, no que tem de estagnação e de alienação individuais e colectivas, obstaculiza a realização da justiça.
A plena reunião da liberdade e da justiça é a utopia da humanidade. O encontro fraterno do revolucionário com o revoltado. Dessa utopia estão muito mais próximos os movimentos libertários e colectivos que têm na raiz a exigência da justiça, do que a sociedade de liberdade formal, classista, decadente, podre e condenada, em que vivemos. A época actual não poderia ser, a este respeito, mais demonstrativa.
Não se trata de uma questão de balanço entre dois termos. Esse balanço não é controlável, e romperá sempre, tendo como resultado inevitável a negação de ambos os termos. Trata-se de uma questão de intransigência. Intransigência na defesa dos dois termos. É a única posição que poderá, de facto, sustentar quer um, quer outro.

Miguel Teotónio Pereira

sábado, setembro 14

Tudo vale a pena se a alma não é pequena ...

                                                                    Mar Português

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quere passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

sexta-feira, setembro 13

POLÍTICA - 18

Depois de ver a Quadratura do Círculo. É mil vezes valiosa a liberdade de expressão do pensamento, a imprensa livre, o exercício da escolha por este ou aquele canal de TV (mesmo que sejam só 4), por esta ou aquela rádio, por este ou aquele jornal (que leio, mas não compro!), por uma multidão de vozes que se expressam nas redes sociais (num aparente caos!); mil vezes valiosa é a discordância, as diferenças de opinião que se expõem à opinião dos outros; podermos concordar com todas as opiniões apenas só em parte de cada uma delas; ou discordar de todas em alguma das suas partes em debates entre interlocutores cultos e inteligentes; ou mesmo ouvir opiniões de cidadãos quando lhes dão a voz para se expressar e se expressam mal, ou menos bem, ou com dificuldade de se fazer explicar; para dizer que por entre o enunciado das dificuldades do país, da critica feroz aos erros dos políticos, de alguma eventual injustiça no seu julgamento público; entre nós há uma conquista que, salvo aleivosias pontuais, ninguém põe em causa: a liberdade de expressão do pensamento e a chamada liberdade de imprensa. Cuidemos delas, praticando-as!
        

terça-feira, setembro 10

SALVADOR ALLENDE

REQUIEM POR SALVADOR ALLENDE

Foi de súbito no outono juro solenemente que o foi
mas as árvores fora tinham de novo folhas recentes
primavera no chile primavera no mundo
Sinto-me vivo habito muito de pé numa casa
leio vagarosamente os jornais sei devagar que os leio
enfrento meu velho borges o muito meu destino sul-americano
Acabara um poema enchia o peito de ar junto da água
sentia-me importante conquistara palavras negação do tempo
o mar era mais meu sob a minha voz ali solta na praia
talvez voz metafísica decerto voz de um privilegiado
ombro a ombro com gente analfabeta uma gente sensível e leal
mas que não pode ler e vive muito menos por o não saber
embora saiba olhar o mar sem o saber interpretar
acabara um poema enchia o peito de ar junto da água
quando o irmão Miguel veio pequeninamente pela areia
e convulsivamente me falou da situação no chile
veio pela praia e punha nas palavras mãos de solidão
mãos conviventes com outras palavras mãos que palavra a palavra
erguem um poema no silêncio só circundante
Allende tinha uns óculos os óculos tinham-no
com eles via a vida com eles via os homens via homens
via problemas de homens e as coisas que via era coisas de homens
hoje apenas uns óculos sem nenhum olhar por detrás
Nos finais de setembro nos princípios de novembro
tu meu amigo que não posso nomear sem te denunciar
dar-me-ás talvez notícias tuas notícias meramente pessoais
já que projectos sociais projectos cívicos profissionais
ficariam decerto nas policiais desertas mãos dos generais
mãos que mataram mãos que assaltaram a casa de neruda
mãos limpas já do sangue despojadas já das alianças
que caridosamente deram que assim conseguiram
solucionar os prementes problemas do país
Ouvi falar também desse cargueiro playa larga
praia comprida mas praia deserta e não só da palavra
pois quanta praia tinha hoje só tem o sangue dos milhares das pessoas fuziladas
A onze de setembro nesta praia portuguesa só uns passos pela areia
algum poema terminado alienado algum termo conquistado
tão inefável como por exemplo o do tancazo
atribuído ao golpe orientado por pablo rodriguez
homem que vai modelando palavras ao ritmo martelado pelo ódio
na tentativa vã de destruir frases hoje históricas
do grande cavalheiro que decerto foi allende
e já antes de o dizer com a vida dizia que por exemplo
mais vale morrer de pé do que viver ajoelhado ou então
se as direitas me ajudam a ganhar ganharão as direitas
País amável calorosa entrada em santiago
e ver-me em frente desse homem sozinho relutante em recorrer às armas
e que depois de o ter visto e o ter ouvido
ao homem que for homem poderei chamar-lhe
seja qual for o nome salvador allende
Que nestas minhas minerais palavras de poeta
vibre um pouco o vigor da tua voz
bafejando de paz primeiro o bom povo do chile
depois o povo bom de todo o mundo
Que a ignomínia da história não demore em cobrir com o seu manto
os que têm a força mas não têm a razão
pois o nazi-fascismo não ganhou nem nunca ganhará
Mando-te uma ave preta rente à leve ondulação do mar
tu mandas-me do mar a ave branca do teu rosto
vento que vem do mar vento que vem do chile
Aqui neste dia de súbito cinzento
somente povoado pelo meu sofrimento
e pelo pensamento desse sofrimento
voo também vou também eu nesse lenço
que retiro do bolso aqui à beira-mar
e o meu lenço ao vento é uma ave avesíssima uma ave de paz
uma ave avezada a cada uma das derrotas existentes no mar
somente agora destruída trespassada pela bala que leva uma vida
ave que ao entoar seu canto profundíssimo afinal apenas diz
muito obrigada salvador allende
obrigada por essa tua vida de cabeça erguida
só agora tombada trespassada pela bala que leva uma vida
mas não pode levar de vencida a obra por allende começada
selada por essa promessa de lutar até ao fim até à hora de morrer
nesse importante posto onde te investiram a lei e o povo
Foi no ano de mil novecentos e setenta
ano em que eu fiquei a apodrecer no meu país
que uma coligação do tipo frente popular tomou
pela via legal conta do poder no Chile
legalidade sempre respeitada por ti allende
mas por fim desrespeitada pelos militares pelas direitas pela
cristã democracia partido bem pouco cristão e pouco democrático
falavas tu dizias a verdade
uma bala na boca nessa boca donde ainda pouco antes
saíam as palavras na verdade belas como balas
salvador allende guerrilheiro sem metralhadora e sem boina
de casaco e gravata para essas guerrilhas no parlamento
guerrilhas todas elas tão contrárias à guerra quão favoráveis à paz
essa palavra alada como ave ave não só de georges braque
mas de nós todos aves verticais aves a última estação
árvores desfolhadas num definitivo inverno
allende do cansaço dos problemas da preocupação constante em jogares limpo
com quem em vez de mãos utensílio de paz vinha com bombas em lugar das mãos
allende já há muito tempo sem uns olhos para olhares o mar
e sem poderes olhar as pedras preciosas de que fala
pablo neruda teu e meu poeta teu íntimo amigo
em las piedras del cielo esse livro puríssimo
e são pedras do céu mas mais do que do céu pedras da terra
Sol que te pões e nascerás no Chile
leva-me a um país que em criança conhecíamos apenas
dos sacos de serapilheira com o nome impresso de um nitrato
e não por dar o nome a uma pequena mas confusa praça de lisboa
nem por sair nas páginas diárias dos jornais
Do Chile chegou-me não há muito a amizade do hernán
que em Madrid conheci e não responde há muito às minhas cartas
e a de mais chilenos de olhos vagamente tristes sérios quase portugueses
e desse país mais comprido do globo veio-me também
o lápis-lazúli pedra não já de esperança pedra de amizade
Os camiões há muito já que não sulcavam as estradas do país
estradas bafejadas pela aragem enviada pelo mar por esse
oceano pacífico de um país ainda há pouco bem pacífico
O washington post falava já do golpe dias antes do golpe
ninguém delas mas elas encontravam-se ali mesmo
as autoridades militares as autoridades militares as autoridades americanas
vestiam mesmo as fardas do exército chileno
esses americanos gente do dinheiro e do veneno
de um veneno talvez chamado dinheiro
que terá pago em parte as modificações dos foguetes do tipo poseidon
montados já a bordo dos divinos submarinos nucleares americanos
assunto de política estrangeira americana
Hernán urrutia meu amigo austral
que em barajas vi olhar voltar
para mim a cabeça pela última vez
marcelo coddo professor em concepción
com quem que bem me lembro conversei sobre o poeta cardenal
e sobre a jovem poesia nicaraguense
e tantos outros que nem mesmo me terão deixado o nome
mas me deixaram alguma palavra a música da fala um certo sorriso
um certo olhar visível por detrás de uns óculos
talvez hoje quebrados por quem não considera
talvez suficiente o quebrar da vida na haste da vida
embora porventura tenha visto aquela sequência de fellini
e desconhece que afinal a vida reproduz a arte
Escrevo este poema no jornal com as notícias frescas
após ter evitado ver as caras de triunfo desses locutores luzidios da televisão
e mesmo ter ouvido a voz desse pedro moutinho
a voz das afluências ao nosso principal estádio o da cova da iria
e dos cortejos presidenciais e dessas tão espontâneas manifestações
voz afinal da cia e da itt e dos demais tentáculos
do imperialismo norte-americano
maneira americana de se estar no mundo
de estar no mundo arrebatando o pão dos homens do terceiro mundo
terceiro mundo ou melhor último mundo
que pagarão agora o preço da cabeça dos trabalhadores chilenos
que marcham mas decerto em vão na direcção
do centro de Santiago onde vingara
a rebelião dos marinheiros vindos de valparaiso
cabeça dos imensos deserdados deste mundo
Sabíamos decerto um pouco em que consistia
essa via chilena para o socialismo
e líamos talvez um livro acerca do programa da chamada unidade popular
e discursos de allende naquela cidade distante
embora houvesse muito mais notícias nos jornais
e a gente nos cafés falasse mais em futebol
livro por certo lido com a janela aberta sobre a noite de outono
sobre campos relvados de momento habitados pela escuridão
donde talvez se erguiam cantos pouco menos que religiosos
exaltadores de ideologias já e sem remédio ultrapassadas
Era uma vez um chileno chamado salvador allende que
fez um grande país de um país pequeno onde
talvez três anos nós houvéssemos depositado a esperança
quando fosse qual fosse a nossa nacionalidade
todos nós fomos um pouco chilenos
Mas que diabo importa em suma a qualquer de nós
que um homem se detenha quando a história caminha
em frente sempre altiva e serena
como mulher de muito tempo sabedora
Posso dizer por certo como há já muitos anos
acerca dos milicianos espanhóis dizia neruda
allende não morreste estás de pé no trigo

Ruy Belo
In “Todos os Poemas – III” – “Toda a Terra” – I Parte “Areias de Portugal”
Assírio & Alvim – 2ª edição (Outubro de 2004)

Fotografia de Hélder Gonçalves

domingo, setembro 8

POLÍTICA - 17

O céu dos mundos, sob o qual se acolhem os povos, está mais toldado hoje do que ontem. Os donos do mundo não reparam nos tons escuros que pintam o céu, o seu ofício é encontrar os caminhos do tesouro. Não confundo tudo e todos. Nem estou já em idade de linhas vermelhas, esconjurações e ódios, sejam quais forem, que não suporto. Há em todas as civilizações, religiões e ideologias, agrupamentos, congregações ou partidos, pessoas de bem que encontram no interior de si próprias a força que as impulsiona a lutar para que cada vez mais gente ascenda ao estatuto cidadão de corpo inteiro.
 
Da cena internacional, onde se jogam os grandes desígnios estratégicos, quase sempre em busca do domínio das matérias-primas, a riqueza material, e das rotas que permitam fazê-las circular levando-as onde elas atingem o máximo preço, sem esquecer que para haver vendedor tem que existir cliente (porventura nós próprios!), até à pequena paróquia onde se disputam interesses em busca da posse do valado ou da caixa das esmolas, do casebre ou do encómio do "poderoso", há gente honrada, que luta por causas nas quais acredita, integrada numa multidão de instituições e imunes aos cantos de sereia do dinheiro fácil ou do populismo seja qual for a sua escola.
 
Esses cidadãos de parte inteira, cujas impurezas e imperfeições assumem como naturais, capazes de as reconhecer, para melhor as corrigir e que, apesar de toda a degradação da vida pública ainda ocupam relevantes posições de influência e de decisão, nos negócios (públicos, privados e sociais), na vida pessoal, associativa ou política não podem deixar de se manter vigilantes e activos, sem confundir o mal com a caramunha, olhando mais longe e presando os valores essenciais das nossas sociedades democráticas: Liberdade e Justiça! Paz e Fraternidade! Cooperação e Solidariedade!
 
Quanto mais na nossa sociedade a escassez se impuser  e manifestar, nas suas mais diversas e cruéis formas, mais importante se torna manter viva, e vibrante, a capacidade para dar voz aqueles que pugnam, com realismo, pelos princípios e valores que estão na raiz da nossa civilização e que tiveram o seu berço na Grécia Antiga. Nada renegar da natureza da qual , como humanos, nos devemos orgulhar de fazer parte:  "Pour les chrétiens comme pour les marxistes, il faut maîtriser la nature. Les Grecs sont d´avis qu´il vaut mieux lui obéir. » (Camus, in L´Homme révolté).   


quinta-feira, setembro 5

"Lamber a vida como um rebuçado..."

15 de Set. (1937)

(...)

“Lamber a vida como um rebuçado, formá-la, estimulá-la, enfim, como se procura a palavra, a imagem, a frase definitiva, aquele ou aquela que conclui, que detém, com quem partiremos e que de futuro fará a cor do nosso olhar.”

(...)

“Quanto a mim, sinto-me numa curva da minha vida, não devido àquilo que adquiri, mas àquilo que perdi. Sinto-me com forças extremas e profundas. É graças a elas que devo viver como desejo. Se hoje me encontro tão longe de tudo, é que não tenho outro desejo senão amar e admirar. Vida com rosto de lágrimas e de sol, vida sem o sal e a pedra quente, vida como a amo e a entendo, parece-me que ao acariciá-la, todas as minhas forças de desespero e de amor se conjugarão.”

(...)

“É como se recomeçasse a partida; nem mais feliz nem mais infeliz. Mas com a consciência das minhas forças, o desprezo pelas minhas vaidades, e esta febre, lúcida, que me preocupa em face do meu destino.”

Albert Camus

“Caderno” n.º 1 (Maio de 1935/Setembro de 1937) – Tradução de Gina de Freitas. Edição “Livros do Brasil” (A partir da “Carnets”, 1962, Éditions Gallimard).

quarta-feira, setembro 4

NÃO HÁ VIDA SEM DIÁLOGO ...

Não há vida sem diálogo. Mas o diálogo foi, hoje, na maior parte do mundo, substituído pela polémica. O século XX é o século da polémica e do insulto. Eles ocupam, entre as nações e os indivíduos, e mesmo ao nível das disciplinas outrora desinteressadas, o lugar que tradicionalmente cabia ao diálogo reflectido. Dia e noite, milhares de vozes, empenhadas, cada uma por seu lado, num tumultuoso monólogo, lançam sobre os povos uma torrente de palavras mistificadoras, de ataques, de defesas, de exaltações. Mas qual é o mecanismo da polémica? Consiste em considerar o adversário como inimigo, por conseguinte a simplificá-lo e a recusar vê-lo. Aquele que insulto, já não sei de que cor são os seus olhos, ou se acaso sorri, e como o faz. Tornados quase cegos por obra e graça da polémica, já não vivemos entre os homens, mas num mundo de sombras.” (…)


Albert Camus – alocução feita na sala Pleyel em Novembro de 1948, in Actualidades - Contexto 

POLÍTICA - 16

Hoje, no dia do aniversário de meu pai, uma daquelas poucas datas que nunca esqueço, porque ele me lembra sempre valores sem preço aos quais tudo tenho feito para me manter fiel, rufam os tambores da guerra. Antes que ela rebente quero dizer, em primeiro lugar, perante mim próprio, que me não resigno em aceitá-la. Podem as chancelarias todas em uníssono clamar pela sua justeza, podem todos os meios de comunicação colocar em frente dos olhos do mundo imagens horríveis das maiores atrocidades, podem os líderes que, como Obama, sempre apoiei, proclamar as suas certezas da crueldade dos outros, tudo pode ser dito, e redito, mas não aceito a guerra. Não se trata de ser contra toda e qualquer guerra, pois não sou pacifista, mas esta guerra depois das lições de outras guerras lançadas com os mesmos argumentos que vieram a revelar-se falsos, argumento que não pode nem deve ser banalizado, só pode gerar mais e mais guerra. A Síria tornou-se uma tragédia de guerra civil, a mais terrível das guerras, tiranos contra aspirantes a tiranos, disputa estratégica de potências – a guerra fria acabou, dizem eles – defesa de bases militares, de venda de armas, de abertura ou manutenção, de rotas para a passagem da energia de que o ocidente carece. Sigo à risca a declaração do Secretário-geral da ONU, hoje proferida, e que cito de cor: o lançamento de um ataque militar pelos USA à Síria só poderá ser legal se for em legítima defesa ou com mandato do conselho de segurança da ONU. Será pois um ação de guerra ilegal à luz do direito internacional. Todas as consequências que dela resultarem, e serão porventura muito graves para a paz mundial, são da responsabilidade de quem decidir premir o gatilho. Se for Obama com pena minha deixará de pertencer à minha galeria pessoal dos raros políticos no ativo cujas palavras mantêm a capacidade de comover e mobilizar a alma dos democratas e dos defensores da liberdade e da paz.    

domingo, setembro 1

Haja respeito pela história e pelos povos...

Escrevo diretamente na tela branca como se fora uma folha antiga, um material sem mácula, no qual em todos os tempos se escreveu  desde quando escrever era para poucos e todos escreviam bem exceto os que  sempre devem ter sido criticados por escreverem menos bem. O regresso de qualquer lugar que se visita é sempre um regresso ao lugar da partida o fim transitório da viagem e muitas vezes apetece a quem é capaz de escrever dar testemunho. Ao longo do tempo muitos o fizeram e as suas obras nalguns casos, poucos, são parte do património da humanidade e estou a pensar no Padre António Vieira e nos cronistas que descreveram com detalhe tantos acontecimentos que a história guarda e que alguns estudam e poucos divulgam, lembrei-me a despropósito do José Hermano Saraiva, pois que me lembre com mais ou menos rigor não existe nenhum programa regular de divulgação da história de Portugal nas nossas TVs e a nossa história é rica como poucas não só por ser longa mas porque todas as histórias das nações são ricas e as nações não  persistem sem que os povos se reconheçam nela ( a sua história) que é o mais forte antídoto para que os povos se não deixem dominar e sejam capazes de conviver com as diferenças aceitando-as e assim cultivando os valores da cidadania e da liberdade. Vem a propósito de ter vivido uma semana ao lado de uma das árvores identificadas como das mais antigas de Portugal - uma Oliveira com mais de 2 200 anos - que os fenícios trouxeram da Mesopotâmia e deixaram ali no lugar que hoje é conhecido por Pedras del Rei para que os vindouros dela se pudessem aproveitar para seu proveito e me levou a pensar que somos muito novos e ignorantes para julgar e punir os povos que habitam aqueles terras longínquas que hoje dão pelo nome de Iraque, Síria, Irão ... de onde nos trouxeram esta riqueza que ainda hoje nos oferece o pão de cada dia. Haja saúde, paz e prosperidade!
  

sexta-feira, agosto 30

JORGE DE SENA


Lisboa - 1971

O chofer de taxi queixava-se da vida.
Ganha 400$00 por semana, o patrão conta
que ele se arranje do a mais com as gorjetas.
Os amigos morrem de cancro,
de tédio, de páginas literárias,
vi um rapaz sem as duas pernas que perdeu
na guerra (e o ortopedista ria-se de que ele
só queria por enquanto “calçar” uma das
que, artificiais, lhe preparou tão róseas).
As pessoas esperam com raiva surda e muita paciência
o autocarro, aumento de ordenado, a chegada
do Paracleto, bolsas da sopa do convento.
Mas o chofer de taxi contou-me que
discutira com um asno e lhe dissera:
“ … V. que nesse tempo ainda andava a fugir
de colhão para colhão do seu pai
para ver se escapava a ser filho da puta …”
E é isto: andam de colhão em colhão
a ver se escapam – e muitos não escapam.
E os outros não escapam aos que não escaparam.

Lisboa, 5/8/1971

quarta-feira, agosto 28

A OLIVEIRA MAIS ANTIGA DE PORTUGAL

Em Pedras del Rei (Tavira, Algarve, Portugal) a poucos metros do sítio onde escrevo, neste dia da semana de férias que me concedo, em família, no silêncio abundante que, por vezes fere, repousa em sua pose majestática a árvore mais antiga de Portugal (ou talvez, ao que dizem os repositórios mais recentes acerca da matéria, a segunda mais antiga) uma OLIVEIRA com mais de 2200 anos (leram bem - dois mil e duzentos anos). Muito antes da fundação na nacionalidade esta já era uma terra fértil de grandes encantos, pois porque não o será hoje, e sempre, no futuro ...



segunda-feira, agosto 26

Praia do Barril (Tavira)

Por momentos, quando se percorre a velha estrada que serpenteia por alfarrobeiras e oliveiras (algumas delas milenares) e que nos leva até Pedras del Rei, parece que somos devolvidos à ideia de Algarve como segredo mais bem guardado do nosso litoral. O contraste com o Algarve dos nossos dias é muito marcado. O aldeamento de Pedras del Rei – um dos primeiros da região – preserva um arejamento visual, com casas devidamente espaçadas, formando uma combinação agradável entre domínio público e privado. Por este Algarve, as construções mantêm uma integração perfeita na paisagem, e isso não ocorre à custa da vivência familiar, nem através da promoção de condomínios exclusivos. Não podemos deixar de imaginar o que teria sido o desenvolvimento sustentado e regrado do turismo se este exemplo tivesse sido replicado.

Para se alcançar a Praia do Barril é preciso tomar o pitoresco comboio que segue por cima do sapal durante um quilómetro, através de uma via única – que antes servia a armação de pesca do atum e tem agora como fim único transportar banhistas. No verão, o comboio é uma atração turística, mas está, sobretudo, ao serviço das famílias regulares, que ano após ano se voltam a encontrar nas pequenas carruagens do trem, para logo se dispersarem ao longo do extenso areal. O comboio é uma autêntica festa colorida, assente na combinação das vestes garridas dos veraneantes com o vermelho da automotora e o verde da ria. Esta mistura ganha um tom próprio quando a ela se juntam o cheiro incomparável do óleo diesel queimado e o som do motor do engenho.
Depois chega-se a uma praia que aparenta ser infinita: a poente o areal perde-se até à praia do Homem Nu; a nascente, até à Terra Estreita; e por fim até à Ilha de Tavira. As famílias habituais têm lugar cativo nos toldos junto do “jardim das âncoras”, uma perfeita “instalação artística” do que ficou da armação de pesca do atum que encerrou em meados dos anos sessenta, constituindo agora um cenário verdadeiramente curioso e emblemático desta praia. A longa extensão dos areais convida a grandes passeios na maré vazia até que as pegadas humanas se percam e abram espaço ao rasto das numerosas aves aquáticas que habitam o Parque Natural da Ria Formosa. (…)

In Tanto Mar, de Pedro Adão e Silva e João Catarino

[Último texto do último capítulo que se intitula: “Dez praias onde não pode deixar de mergulhar antes de morrer”. Não me dou ao trabalho de o transcrever, quase na íntegra, só por ser frequentador habitual do espaço descrito, mas também por ter sido esta a praia que primeiro frequentei ainda na barriga de minha mãe. Esta - assim como outras praias de Tavira a Vila Real de Santo António - era, uma vez por ano, onde a gente do campo visitava o mar na celebração do fim das colheitas. O languido mar azul dava aos pés descalços dos camponeses, por um dia, o sabor a sal, a outra face da frescura dos frutos – secos e verdes – que a terra quente gerava ano após ano.]

domingo, agosto 25

ALBANO MARTINS



Frutos

Quando a amada oferece
o seu corpo, ela sabe
que dos frutos apenas
se colhe o sabor.
É então
que os dedos
separam as películas,
que a lâmina desce e a água
e o fogo se misturam.
E é então que a vida
e a morte convivem
sob o mesmo tecto.

sábado, agosto 24

MANUEL BANDEIRA

Lua Nova

Meu novo quarto
Virado para o nascente:
Meu quarto, de novo a cavaleiro da entrada da barra.
Depois de dez anos de pátio
Volto a tomar conhecimento da aurora.
Volto a banhar meus olhos no mônstruo incruento das madrugadas.
Todas as manhãs o aeroporto em frente me dá lições de partir:
Hei de aprender com ele
A partir de uma vez
- Sem medo,
Sem remorso,
Sem saudade.
Não pensem que estou aguardando a lua cheia
- Esse sol da demência
Vaga e noctâmbula.
O que eu mais quero,
O de que preciso
É de lua nova.

Manuel Bandeira