domingo, agosto 21

TAVIRA


Fotografia de Hélder Gonçalves (Uma nova série de originais com os meus melhores agradecimentos)

Uma memória da minha infância, das mais antigas, passada em Tavira, a cidade mais perto do Monte da Sinagoga, a caminho de Santo Estêvão, onde nasceram os meus avós e minha mãe.

A cidade com o centro melhor preservado do Algarve e, talvez, do país.

Nas margens deste rio Gilão passei um dos maiores sustos de que me lembro na vida. Ia, a caminho da feira, de mão dada com a minha avó e, de súbito, olhei para cima e vi que caminhava de mão dada com uma desconhecida.

Tinha mudado de mão sem entender porquê. Senti-me perdido na multidão.

Fernando Pessoa - "Sítios Amigos"

Agradecendo a simpática referência de Sítios Amigos ao link para o muito eficaz
"site de poesias coligidas de F E R N A N D O P E S S O A"

sexta-feira, agosto 19

FEDERICO GARCÍA LORCA


Federico García Lorca (1898 - 1936)

Em 19 de Agosto de 1936 Federico García Lorca foi assassinado pelos fascistas de Franco.

“1936 Publica Primeras Canciones. Concluye La Casa de Bernarda Alba, que no se representa hasta 1945 en Buenos Aires. participa en un homenaje a Luis Cernuda. 13 de julio: sale de Madrid hacia Granada. 18 de julio. Alzamiento militar contra el Gobierno de la República. 16 de agosto: es detenido. 19 de agosto: Federico García Lorca es asesinado en Víznar (Granada). Deja inédita e inconclusa una numerosa obra.”

MADRIGAL A CIBDA DE SANTIAGO

Chove en Santiago
meu doce amor.
Camelia branca do ar
brila entebrecida ô sol.

Chove en Santiago
na noite escrura.
Herbas de prata e de sono
cobren a valeira lúa.

Olla a choiva pola rúa,
laio de pedra e cristal.
Olla o vento esvaído
soma e cinza do teu mar.

Soma e cinza do teu mar
Santiago, lonxe do sol.
Agoa da mañán anterga
trema no meu corazón.

O Centro Está Cheio de Vazio


Pollock
(A imagem parece que não tem nada a ver com o tema!)

A direita, em Portugal, não suporta ser oposição e a esquerda não é capaz de assumir, em pleno, o governo. Duas razões empíricas: o centro político que domina o poder, desde o 25 de Abril, está enleado em negócios cinzentos (ou negros) e em cruzamentos de fretes, na atribuição de lugares e prebendas, além daquilo que a minha imaginação não alcança; por outro lado a tradição política portuguesa, dos últimos 80 anos, está marcada pela ditadura, com um cortejo inenarrável de limitações às liberdades cidadãs.

O pensamento político em Portugal oscila entre a tentação populista, fascinante para as grandes massas, e a resignação elitista, comprazida na mobilização em torno de “causas” e “valores” (sejam de “esquerda ou de “direita”).

Quem for capaz de fazer obra (pequena, média ou grande) associando realismo, iniciativa e ambição é, pura e simplesmente, eliminado. O centro político, que distribui as benesses, não admite “faltas de respeito” às regras do jogo que tudo sacrifica à defesa dos negócios que aproveitam sempre aos mesmos. Por isso não admira que os políticos “possíveis”, pois o centro não admite senão políticos “possíveis”, vacilem e caiam rapidamente às mãos daqueles que os manipulam nos bastidores com, ou sem, a sua aquiescência.

Fica assim dada uma hipótese de explicação para a insignificância aparente de Marques Mendes, para a provável disputa presidencial entre Cavaco e Soares, para a derrota (previsível) de Carrilho, para o “exílio” de Ferro na OCDE, em Paris, para as dificuldades (precoces) do governo de Sócrates, para as opções evasivas de Freitas e para o estrebuchar desesperado de Alegre.

O centro está cheio de vazio, mas é quem manda. O resto vegeta, seca ou morre à sua volta.

quinta-feira, agosto 18

O Brasileiro Assassinado Afinal Morreu Sentado?


Do Blogico - Bloody twats - the ultimate incompetence

E parece que o tal brasileiro não correu mesmo da polícia, não estava de jaqueta etc, etc, etc. Isso muda tudo. Nesse caso, esqueçam o que eu escrevi, como dizia o poeta. Muito incompetente essa polícia inglesa. Incompetência máxima. Mais incompetente ainda por ter inventado uma mentira pra encobrir tudo. Que sejam punidos até o último fio de cabelo da última pessoa responsável pela cagada toda.

Do seu canto


“Ilha Deserta” – Ao largo de Faro - Fotografia de Bel

Do seu canto

um vento súbito de oeste na tarde
quente soprando sobre o mar suave
sublima a alma das gentes do sul,

os corpos reflectem o voo das aves
rasando a maré na busca de alimentos
enquanto aqui e ali o silêncio ecoa,

é agora possível a paz que invento
entre águas límpidas, cumplicidades
e sussurros, sombras quentes e aragens,

o mar rogado não me pegou ao colo
negando tocar-me com suas mãos
entoando um cântico cantado a solo,

quieto alongo os braços ouvindo
a valsa lenta do seu enérgico rugido
trazido no vento que sopra grave

e agradeço a dádiva do seu canto
a que me faltou alcançar a glória
de partir para sempre mar afora.

In “Ir Pela Sua Mão” - Editora Ausência, 2003

Uma Vez Mais a Sul


“Foto de António José Alegria, do amistad”

Nas férias as visitas são inevitáveis e as ausências sentidas. As visitas aos lugares originários refrescam as memórias e fazem-nos sentir o chão debaixo dos pés. Os presentes regozijam e sente-se a presença dos ausentes nos silêncios cúmplices. As crianças marcam o seu espaço e fazem-nos sonhar com o futuro de todas as esperanças.

O meu tio Ventura tem ido tomar banho à casa do “alto da sinagoga” pois, diz ele, aí se sente mais à vontade. O meu tio Ventura retomou, por estes dias, as funções de “ensaiador” do Rancho Folclórico de Santo Estêvão de Tavira. O meu tio Ventura respira jovialidade e energia por todos os poros. O meu tio Ventura tem 93 anos.

terça-feira, agosto 16

Fernando Pessoa em edição bilingue - português/espanhol


Um grande poeta português traduzido em espanhol, para galgata
(e não só),
neste “site de poesias coligidas de F E R N A N D O P E S S O A”


Deixa-me sonhar

Dorme enquanto eu velo...
Deixa-me sonhar...
Nada em mim é risonho.
Quero-te para sonho,
Não para te amar.

A tua carne calma
É fria em meu querer
Os meus desejos são cansaços.
Nem quero ter nos braços
Meu sonho do teu ser.

Dorme, dorme. dorme,
Vaga em teu sorrir...
Sonho-te tão atento
Que o sonho é encantamento
E eu sonho sem sentir.



Duerme mientras yo velo...
Déjame soñar...
Nada en mí es risueño.
Te quiero para sueño,
No para amarte.

Tu carne calma
Es fria en mi querer
Mis deseos son cansancios.
Ni quiero tener en los brazos
Mi sueño de tu ser.

Duerme, duerme. Duerme,
Vaga en tu sonreir...
Te sueño tan atento
Que el sueño es encantamiento
Y yo sueño sin sentir.

Fernando Pessoa

AINDA A SUL


Rua de Faro na Zona da Sé Velha

Na minha visita à casa de meus avós, onde nasceu minha mãe, desci, como sempre, o caminho do “monte da sinagoga” à estrada. Do alto a vista é um deslumbramento de mar azul todo em volta da coroa de terra. O mar espraia-se das cercanias de Ayamonte a Olhão. Meio Algarve debaixo do meu olhar em brasa.

A juventude ressurge em plenitude e deixa adivinhar as alegrias passadas na busca das folhas e no rabisco dos frutos secos caídos das árvores. Num plano inclinado, ladeando o caminho, debaixo da inclemência do sol abrasador, se misturam, em aparente desordem, amendoeiras, figueiras, alfarrobeiras e oliveiras que, este ano, à falta de água, abortaram a sua produção.

Salvo as alfarrobeiras, carregadas de seus frutos escuros e secos, todas as outras se apresentam exangues, mortas de sede. As árvores da minha juventude ainda estão lá quase todas. Desta vez não pude apanhar os figos da figueira do poço, a da predilecção de minha mãe, pois não os havia.

Mas agarrei um monte de alfarrobas que, à chegada a Faro, depositei na mão delicada de meu filho. Para quê? Para ti! Para que sintas a sua textura rugosa e a riqueza que outrora permitiu a sobrevivência de teus avós.

O meu primo Gervásio as apanhará mantendo inquebrável a tradição de uma cultura milenar.

DIGNIDADE


“É horrível ver a facilidade com que se desmorona a dignidade de certos seres. Vendo bem, isso é normal visto que a dignidade em questão apenas é mantida por eles através de incessantes esforços contra a sua própria natureza.”

Albert Camus

“Caderno” n.º 3 (Abril de 1939/Fevereiro 1942) – Tradução de Gina de Freitas. Edição “Livros do Brasil” (A partir da “Carnets”, 1962, Éditions Gallimard).

domingo, agosto 14

ROSA DEL MUNDO

Rosa. Rosa del mundo.
Quemada.
Sucia de tanta palabra.

Primer rocío sobre el rostro
Que fue pétalo
a pétalo pañuelo de sollozos.

Obscena rosa. Repartida.
Amada.
Boca herida, soplo de nadie.

Casi nada.

Eugenio de Andrade

(Para Galgata como iniciação ao conhecimento da poesia portuguesa através de um grande poeta)

sábado, agosto 13

A SUL

A minha juventude foi apaixonadamente vivida em Faro. Mesmo depois de abandonar a cidade para prosseguir os estudos em Lisboa, onde me fixei para sempre, nunca deixei de passar, pelo menos, parte das férias na cidade natal.

A minha sensibilidade foi moldada pelo ambiente branco e quente do sul, a minha formação intelectual e cultural foi marcada por acontecimentos que pude viver nas terras do sul. Mais próximas do que se possa pensar da Andaluzia espanhola e do norte de África, do que do resto do continente português.

Sempre que visito a minha cidade natal percorro os lugares da minha infância, a casa onde nasci, as ruas que configuraram o meu olhar sobre o mundo e os outros, revejo os rostos das mulheres e dos homens que me impressionaram e deram o melhor que se leva da vida: os afectos.

Na minha cidade percorro a rua principal onde vivi anos a fio. Aqui o calor é mais sufocante do que a norte não porque faça, a maior parte das vezes, mais calor mas porque é um calor seco e carregado de tonalidades mediterrâneas.

Vejo hoje que o “Clube Farense” ostenta à porta um pendão assinalando a sede da “Capital Nacional da Cultura- 2005”. Não encontro, no entanto, qualquer sinal de actividades culturais. Mas que as há, há! Trata-se de um projecto meio clandestino que nasceu morto de energia vital e que jamais retornará à vida. Assim seja!

Logo a poucos metros sento-me na esplanada da Gardy e o Renato engraxa-me os sapatos como sempre. Não tem novidades de amigos mortos nos últimos tempos. Sempre me estende, em palavras escassas, a lista dos acontecimentos que ele julga serem marcantes para mim e nunca falta o obituário. Evita falar da morte do meu irmão, eu agradeço. A última que evoca é a do “Micro”.

Numa coluna de pedra, em frente, deparo-me com quatro inscrições ostentando o símbolo do MES. O círculo vermelho com a estrela de cinco pontas e a sigla do extinto movimento apresenta-se em bom estado de conservação. A observação nada teria de especial a não ser o facto de as pinturas perdurarem desde 1975. Nem a mão do homem nem a erosão do tempo as apagou.

E a minha memória percorre os rostos daqueles que acreditaram no sonho de uma sociedade nova que, afinal, não era mais do que uma utopia perigosa. Mas os seus despojos permanecem presentes aos olhos de todos como um sinal secreto que só muito poucos são capazes de decifrar.

Se é verdade como afirma, hoje no “Publico”, Helena Matos que “o facto de se ter combatido Salazar e Marcelo Caetano (ela evita a palavra ditadura) não transforma ninguém num democrata”, o “pequeno detalhe” de ter participado nesse combate ajudou muito à conquista da democracia que permite, hoje, que Helena Matos possa dizer livremente o que lhe apetece dizer. É a diferença entre a liberdade e a tirania.

Um “pequeno detalhe” para alguns uma enorme conquista para mim.

sexta-feira, agosto 12

BUKHARINE

Li devagar um livro de memórias, somente razoável, que é um depoimento dramático acerca de um crime hediondo. A viúva de Bukharine, em “Bukharine, Minha Paixão”, descreve, de forma pungente, a perseguição e assassinato de um dos mais importantes dirigentes da revolução russa de 1917: N.I. , ou seja, Nicolai Ivanovitch Bukharine.

Os crimes de Estaline surgem, neste livro, em toda a sua crueldade, um autêntico monumento à hipocrisia política e à incrível capacidade do homem ser infiel às suas próprias convicções e certezas.

Recomenda-se a sua leitura aos políticos, magistrados, polícias, jornalistas, lideres de opinião, em suma, a todos aqueles que, com os meios de “convencimento” da nossa época, podem ser tentados a praticar todos os inimagináveis crimes que, por vezes, pensamos pertencerem à história.

No último parágrafo do livro a autora escreve:

“Meio século me separa dos acontecimentos dramáticos que evoquei. Termino estas linhas, quando Nikolai Ivanovitch, finalmente, foi reintegrado, a título póstumo, no Partido. A justiça acabou por triunfar. Mas nada se apagou da minha memória, as palavras de Bukharine, voltadas para o futuro, ainda estão vivas no meu coração: “Ficai a saber, camaradas, que na bandeira que arvorais, na marcha triunfal para o comunismo, há também uma gota do meu sangue!”.

“Bukharine, Minha Paixão”, de Anna Larina Bukharina, Edição Terramar, tradução, a partir da edição francesa, de Ludgero Pinto Basto.

Um Dia

um dia não são dias
e uma noite em branco
é um dia sem descanso
no meio da sequência
dos dias

se a noite foi em branco
no meio da sequência dos dias
e dela nasceram dias novos
na sequência dos dias então um dia
não são dias

eu por mim quero viver um dia a mais
acrescentado a todos os dias
gozando a noite imortal
que suceder ao último
dos dias

In “Ir Pela Sua Mão” – 2003 – Editora Ausência

(Um poema meu porque sim ...)

"O reino das bestas começou."

7 de Setembro (1939)

Perguntávamos uns aos outros onde era a guerra – o que havia nela de ignóbil. E apercebemo-nos que sabemos onde ela é, que a temos entre nós – que ela é, para a maior parte das pessoas, esta tortura, esta obrigação de escolher que os faz partir com o remorso de não terem sido suficientemente corajosos para se absterem ou que os faz absterem-se com o remorso de não partilhar da morte dos outros.

Ela está aqui, verdadeiramente aqui, e nós procurávamo-la no céu azul e na indiferença do mundo. Ela está nesta solidão pavorosa do combatente e do não-combatente, no desespero humilhado que é comum a todos e nesta abjecção crescente que sentimos subir aos rostos à medida que os dias passam. O reino das bestas começou.

Albert Camus

“Caderno” n.º 3 (Abril de 1939/Fevereiro 1942) – Tradução de Gina de Freitas. Edição “Livros do Brasil” (A partir da “Carnets”, 1962, Éditions Gallimard).

Os cães ladram

Lá fora os cães ladram incessantemente. Desde sempre convivi com os cães que ladram. Os tons mudam consoante a sua condição: cão faminto, cão cativo, cão carente, cão abandonado ... mas os cães ladram e sentimos o incómodo ou o conforto da vida normal. Quando o cães uivam sentimos algo diferente: talvez o desejo que antecede a criação ou a angústia que antecede a morte.

quinta-feira, agosto 11

JUSTIÇA

Por altura da morte de Eugénio de Andrade impressionou-me uma frase em que afirmava a sua profunda preocupação com a justiça. Dei comigo a pensar de como os agentes da justiça se preocuparão com a matéria prima do seu mister. E de como serão avaliados pelos seus juízos que envolvem a liberdade, a honra, o património e a vida de milhares de cidadãos!

UNIDAD

Uma homenagem à poesia chilena através do poema Unidad, de Pablo Neruda, na sua versão original e na excelente tradução, em português, de José Bento.

Hay algo denso, unido, sentado en el fondo,
repitiendo su número, su señal idéntica.
Cómo se nota que las piedras han tocado el tiempo,
en su fina materia hay olor a edad,
y el agua que trae el mar, de sal y sueño.

Me rodea una misma cosa, un solo movimiento:
el peso del mineral, la luz de la miel,
se pegan al sonido de la palabra noche:
la tinta del trigo, del marfil, del llanto,
envejecidas, desteñidas, uniformes,
se unen en torno a mí como paredes.

Trabajo sordamente, girando sobre mí mismo,
como el cuervo sobre la muerte, el cuervo de luto.
Pienso, aislado en lo extremo de las estaciones,
central, rodeado de geografía silenciosa:
una temperatura parcial cae del cielo,
un extremo imperio de confusas unidades
se reúne rodeándome.

Pablo Neruda

UNIDADE

Há algo denso, unido, sentado no fundo,
a repetir seu número, seu sinal idêntico.
Como se nota que as pedras tocaram o tempo,
em sua fina matéria há um olor a idade,
e à água que traz o mar, de sal e sonho.

Rodeia-me uma mesma coisa, um movimento único:
o peso do mineral, da luz, do mel,
colam-se ao som da palavra noite:
a tinta do trigo, do marfim, do pranto,
as coisas de couro, de madeira, de lã,
envelhecidas, debotadas, uniformes,
unem-se em meu redor como paredes.

Trabalho surdamente, a girar sobre mim mesmo,
como o corvo sobre a morte, o corvo de luto.
Penso isolado na extensão das estações,
central, cercado por uma geografia silenciosa:
uma temperatura parcial cai do céu,
um extremo império de confusas unidades
reúne-se a cercar-me.

In “Rosa do Mundo 2001 Poemas Para Futuro"
Assírio & Alvim, tradução de José Bento

quarta-feira, agosto 10

Poe e a Felicidade

Poe e as quatro condições para a felicidade:

1) A vida ao ar livre
2) O amor a um ser
3) O desinteresse por qualquer ambição
4) A criação”

Albert Camus

“Caderno” n.º 3 (Abril de 1939/Fevereiro 1942) – Tradução de Gina de Freitas. Edição “Livros do Brasil” (A partir da “Carnets”, 1962, Éditions Gallimard).

Natureza

Ontem de manhã choveu na praia mas o pôr do sol foi mais radioso do que nunca. Do alto da arriba, sobranceira ao mar, o céu escureceu lentamente tomando todas as cores que queiramos imaginar. No entanto uma multidão de expectativas ficaram, durante aqueles momentos, por cumprir no coração dos homens. Imagino a natureza sem o homem e o homem sem a natureza.

Para ser grande, sê inteiro

Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive

Fernando Pessoa (Ricardo Reis)

terça-feira, agosto 9

CIPRESTES

Primeiro fragmento do “Caderno n º 3”, a pensar no Dias com Árvores

“Enquanto que habitualmente os ciprestes são manchas escuras nos céus da Provença e de Itália, aqui no cemitério de El Kettar, aquele cipreste escorria claridade, abundava de dourados do sol. Dir-se-ia que, vindo do seu coração negro, um suco dourado borbulhava até às extremidades dos seus ramos curtos e deslizava em longos rastos fulvos sobre o verde da folhagem.”

Albert Camus

“Caderno” n.º 3 (Abril de 1939/Fevereiro 1942) – Tradução de Gina de Freitas. Edição “Livros do Brasil” (A partir da “Carnets”, 1962, Éditions Gallimard).

A5

Na “auto-estrada” de Cascais (A5) paga-se portagem. Era suposto receber, como contrapartida, um serviço. Mas não há auto-estrada. A Brisa não oferece nada em contrapartida do pagamento. Um roubo. Um crime público.

ROBIN COOK

A ler: Ana Gomes, no Causa Nossa, acerca de Robin Cook.

“Robin Cook fez diferença neste mundo. Ele teve a lucidez de articular e procurar pôr em prática uma política externa com coerência e fundamentação ética. Nem sempre conseguiu resultados. Mas tentou. E sempre que não concordou, no mais essencial, não transigiu. No mundo em geral e nos partidos socialistas, de ontem como de hoje, integridade pessoal e política fazem diferença.”

segunda-feira, agosto 8

Férias

A propósito de um comentário simpático de María Paz Greene F. do Caleidoscópio, deixado no post “A Rosa de Hiroshima”, deixo uma réplica que tinha "meio escrita" desde antes o início das férias.

A escrita, em castelhano, no Caleidoscópio, é expressiva e plena de qualidade narrativa. María disserta, por vezes, de forma entusiástica, acerca das suas experiências e gosto, em particular, das suas descrições de viagens. Sinto prazer em descobrir esta energia vital que sempre emana da iniciativa dos jovens talentosos.

No meu caso as férias justificam a escassez das imagens. Os escassos meios tecnológicos, disponíveis em férias, deveriam aproximar o blog ao conceito que associo à sua origem: um diário, tanto quanto possível, preenchido com textos minimalistas.

Mas como é difícil todo e qualquer exercício da contenção!

A Rosa de Hiroshima


Pensem nas crianças
Mudas telepáticas,
Pensem nas meninas
Cegas inexatas,
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas,
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas.

Mas, oh, não se esqueçam
Da rosa, da rosa!

Da rosa de Hiroshima,
A rosa hereditária,
A rosa radioativa
Estúpida e inválida,
A rosa com cirrose,
A anti-rosa atômica.
Sem cor, sem perfume,
Sem rosa, sem nada.

Vinicius de Moraes

"Era o que era preciso."

“O deputado de Constantine que é eleito pela terceira vez. No dia da eleição morre ao meio dia. À noite vão aclamá-lo. A mulher aparece à sacada e diz que ele está ligeiramente fatigado. Pouco depois, o cadáver é eleito deputado. Era o que era preciso.”

Albert Camus

“Caderno” n.º 2 (Setembro de 1937/Abril de 1939) – Tradução de Gina de Freitas. Edição “Livros do Brasil” (A partir da “Carnets”, 1962, Éditions Gallimard).

domingo, agosto 7

As Preocupações da Direita

Começa a perceber-se um pouco melhor a razão da insistência no ataque aos projectos de investimento público que o governo anunciou, após longos anos de estudos, alguns com 30 anos, ou mais.

Aqueles que fazem oposição ao governo, à direita e à esquerda, levantam a questão da publicitação dos estudos técnicos que fundamentam as decisões políticas de avançar com os projectos. Uma mera manobra de diversão !

A direita, em particular, está, na verdade, preocupada com as mudanças profundas na comunicação social: –a TVI foi comprada pelo grupo do “El País” e o sector de comunicação social da Lusomundo foi comprado por Joaquim Oliveira. Isto pode significar, antes das presidenciais, uma viragem estrutural no 4º poder previsivelmente, desfavorável à direita

Esta viragem na comunicação social privada preocupa muita gente na direita já que inclui o Canal de TV com maior audiência em Portugal (TVI), jornais diários de referência (DN e JN), uma rádio emblemática (TSF) e, ainda por cima, Mário Soares, candidato presidencial, como brinde.

Para a direita dos interesses “isto parece ... andar tudo ligado”, mas enfim ...melhores tempos virão!

Para a direita ideológica “isto parece uma manobra com visão de futuro...” representando o estreitamento do campo para a propaganda das suas ideias.

Para a direita política “isto” representa uma derrota no seu próprio campo (trata-se da comunicação social privada e não da pública) e o enfraquecimento da capacidade para impor o “Salvador da Pátria” – Cavaco Silva.

Será que, desta vez, o PS não anda a dormir em serviço?

A força de um grito

Na praça da aldeia junto ao terraço da casa de esquina, noite dentro, rebenta uma discussão. A gritaria e as ameaças entre os homens aumentam de tom, chovem impropérios e agressões físicas. Finalmente uma mulher, histérica, desata a gritar e o homem que era o pomo da discórdia afasta-se. A calma aparente, de súbito, regressa. A força de um grito de mulher.

ORAN

“Oran. Baía de Mers-el-Bébir e por cima o pequeno jardim de gerâneos vermelhos e de ”freesias”. O tempo não está muito bom: há nuvens e sol. País em uníssono. Basta um grande pedaço de céu e a calma volta aos corações demasiado tensos.”

Albert Camus

“Caderno” n.º 2 (Setembro de 1937/Abril de 1939) – Tradução de Gina de Freitas. Edição “Livros do Brasil” (A partir da “Carnets”, 1962, Éditions Gallimard).

sábado, agosto 6

Agosto

Dias intensos de Agosto. Nalguns dias a praia pela manhã arrefece, fica-se sem banho, observa-se o mar grosso. A sua voz impõe-se a tudo e a todos. Então os veraneantes acham que não está bom tempo. Esta costa tem humores e, muitas vezes, o mar embravece. Nos últimos dias o calor intenso satisfez, finalmente, os veraneantes. Eles acham que faz bom tempo. O “bom” e o “mau” tempo são a justificação para o sucesso ou o fracasso de todos os planos. A marcha inexorável do tempo reconduzirá os veraneantes à realidade.

Eu sou assim ...

Encostado ao balcão da cervejaria de praia, para a mulher que o acompanhava, arrastando a voz, apesar de ser meio dia: ”Eu vou lá e resolvo isso ... eu sou assim! ...eu vou lá e resolvo isso ... eu sou assim! Repetidamente...”

"uma franco-maçonaria do cigarro."

Uma retribuição à gentileza do Pentimento com uma alusão directa aquele vício de Camus que a fotografia bem ilustra.

"O prazer que se encontra nas relações entre homens. Aquele, subtil, que consiste em dar ou pedir lume- uma cumplicidade, uma franco-maçonaria do cigarro."

Albert Camus

“Caderno” n.º 2 (Setembro de 1937/Abril de 1939) – Tradução de Gina de Freitas. Edição “Livros do Brasil” (A partir da “Carnets”, 1962, Éditions Gallimard).

quinta-feira, agosto 4

FRAGMENTO

Meu Amor! Meu Amante! Meu Amigo!
Colhe a hora que passa, hora divina,
Bebe-a dentro de mim, bebe-a comigo!

E à volta, Amor... tornemos, nas alfombras
Dos caminhos selvagens e escuros,
Num astro só as nossas duas sombras...

Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,

E me prendesses toda nos teus braços...
E é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti...

Tenho por ti uma paixão
Tão forte tão acrisolada,
Que até adoro a saudade
Quando por ti é causada

Florbela Espanca

"Está visto que não chega"

Pacheco Pereira parece estar muito preocupado. Hoje, numa posta com o título “PARECE SILLY SEASON MAS NÃO DEVIA PARECER”, escreve no ABRUPTO:

“Quem esteja atento ao que se está a passar, verifica que se estão a somar sinais claros de ingovernabilidade, e de declive político acentuado”

Todas as dúvidas da oposição ao governo socialista se justificam ainda para mais quando o governo assume – com coragem - as medidas reformistas que qualquer observador atento verifica, com perplexidade, deveriam, pelo menos em parte, ter sido assumidas pelos governos anteriores de centro-direita dos quais JPP era partidário (do primeiro pois, em boa verdade, era opositor do segundo, embora militante do principal partido que politicamente o suportava).

O que me preocupa, a mim, nesta posta de JPP é a última frase deste parágrafo: “Mas o ambiente é de irresponsabilidade e deixa andar, não é de alarme. Ninguém se alarma em Agosto. Muitos portugueses são empurrados para distracções mais fúteis, mas isto está a ficar complicado. Tanto mais complicado quanto a legitimidade e excepcionais condições políticas, alcançadas onde está a força, nos votos, existem como já não havia desde 1991. Ou seja, não é nas urnas que se pode procurar meios e respostas. Está visto que não chega.”

Então se não é nas urnas que se podem buscar, em democracia, “meios e respostas”, onde é que se podem buscar?

Aqui está uma frase que vinda de alguém que, como JPP, certamente, não aceita receber lições de democracia de ninguém, carece de clarificação.

TERRA TEMPERAMENTAL

Apresentando TERRA TEMPERAMENTAL, com um poema de Fernando Pessoa

O que há em mim é sobretudo cansaço
— Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.

A sutileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em alguém,
Essas coisas todas —
Essas e o que falta nelas eternamente —;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada —
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...

E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço,
Íssimno, íssimo, íssimo,
Cansaço...

Dirigentes Sindicais

Os dirigentes sindicais brincam com o fogo ao combater no terreno da defesa, pura e dura, dos chamados direitos adquiridos, chegando mesmo a colocar em causa o fim de um conjunto de privilégios dos titulares de cargos políticos.

Os dirigentes sindicais, de alto a baixo, deveriam aproveitar o verão para olhar para a sua própria casa. Avaliar o peso da burocracia sindical e, em particular, os privilégios de que usufruem muitos sindicalistas.

Verificar até que ponto os cadernos reivindicativos dos sindicatos estão de acordo com o interesse dos trabalhadores que representam. E, ainda mais importante, avaliar de que forma as manifestações que se preparam para desencadear, os colocam do lado do futuro ou do lado do passado. Interrogar-se acerca se vale a pena combater em favor das "conquistas" dos chamados corpos especiais, que se constituíram na administração pública, em boa parte, por iniciativa dos governos de Cavaco Silva.

Reflectir acerca do interesse geral dos trabalhadores. Dirão que não é nada, o interesse geral! Que a missão dos sindicatos é a defesa dos interesses concretos dos trabalhadores que representam. Mas se assim é para que existem Centrais Sindicais que congregam todos, ou quase todos, os sindicatos representativos de cada classe profissional?

Não estará esgotado, carecendo de uma profunda reforma, o modelo de acção e organização do sindicalismo português herdado da revolução de Abril de 1974?

quarta-feira, agosto 3

LINHA DE CABOTAGEM

Apresentando Linha de Cabotagem pelo seu 2º Aniversário. Será não será? Não interessa, pois há muito gostaria de ter feito este destaque.

Os "Amigos"

"Soares já foi Presidente duas vezes. Não querer deixar espaço a outros, sobretudo a um amigo de tão longa data e tão duras lutas como Manuel Alegre, não abona a seu favor"

Helena Roseta, PÚBLICO, 03-05-2005


Lê-se e pasma-se. Helena Roseta pode ter toda a razão do mundo que acho, sinceramente, que não tem, mas deveria guardar para o agasalho das confidências de amigos estes desabafos. Todos sabem que, em política, é mais certo ganhar o euro-milhões do que assegurar a fidelidade dos amigos. E só os grandes espíritos, raros na política, conseguem ascender à condição de ser fiéis à divisa :“antes ser traído, a trair”.

Amor/Egoísmo

“Nós não experimentamos sentimentos que nos transformam, mas sentimentos que nos sugerem a ideia de transformação. Assim também o amor não nos liberta do egoísmo, mas faz-nos senti-lo e dá-nos a ideia de uma pátria longínqua onde esse egoísmo já não teria lugar.”

Albert Camus

“Caderno” n.º 2 (Setembro de 1937/Abril de 1939) – Tradução de Gina de Freitas. Edição “Livros do Brasil” (A partir da “Carnets”, 1962, Éditions Gallimard).

terça-feira, agosto 2

PURA COINCIDÊNCIA

Apresentando Pura Coincidência, a propósito de duas efemérides: aniversários de nascimento de José Afonso e de António Maria Lisboa

Canção de Embalar

Dorme meu menino a estrela d'alva
Já a procurei e não a vi
Se ela não vier de madrugada
Outra que eu souber será p'ra ti

Outra que eu souber na noite escura
Sobre o teu sorriso de encantar
Ouvirás cantando nas alturas
Trovas e cantigas de embalar

Trovas e cantigas muito belas
Afina a garganta meu cantor
Quando a luz se apaga nas janelas
Perde a estrela d'alva o seu fulgor

Perde a estrela d'alva pequenina
Se outra não vier para a render
Dorme qu'inda a noite é uma menina
Deixa-a vir também adormecer

José Afonso

A ÁRVORE

Para mim “a árvore” é a alfarrobeira. Havia muitas no campo da minha infância e à sua vista e, mais importante, à sua sombra, imaginei o mundo à minha maneira. Brinquei com as suas folhas tão características e a minha sensibilidade foi, certamente, moldada pelo seu cheiro. Todas diferente nas suas formas sempre femininas. É isso, as alfarrobeiras são, para mim, como corpos de mulheres que não se esquecem e se imaginam. Daí o seu fascínio.

CGD/"Público" - Manipulação Indecente

É a manchete do "Público" que “esquece” a nomeação de Carlos Santos Ferreira para Presidente da CGD (Caixa Geral de Depósitos) e dá destaque à nomeação de Armando Vara como administrador. De vez em quando parece que os defensores da livre imprensa voltam aos tempos de redactores da ”Voz do Povo”. Fazem-me, de novo, lembrar o estalinismo em cujo caldo de cultura foram formados. (Na versão on-line a manipulação é mais subtil mas, de facto, não menos grosseira).

1937- - "ANO TERRÍVEL"

Ano Terrível: designação dada ao ano de 1937. Correspondeu à fase mais sinistra do Grande Terror estaliniano: execução de Riutine, segundo Grande Processo de Moscovo (Piatakov, Radek, Serebryakov, Muralov e Sokolnikov – exceptuando Radek, todos foram executados), suicídio de Serguei Ordjonikidze, prisão de Bukharine (que será executado no ano seguinte), execução (sem julgamento) do economista e teórico do comunismo Preobrajensky, assim como a execução do Marechal Tukhatchevsky (e de outros sete notáveis chefes militares, todos eles generais).

Por outro lado prosseguiu a “vingança” de Estaline contra Trotsky: o assassínio de Serguei Sedov (filho mais novo) e da execução de Aleksandra Sokolvskaia ( a sua primeira esposa) também ocorreram, neste mesmo ano. No entanto não se pode ignorar o facto de o ano de 1938 não ter sido melhor: execução de Bukharine, Rykov e Krestinsky; e assassínio de Lev Sedov, filho mais velho de Trotsky, em Fevereiro.”

In “Bukharine, Minha Paixão” de Anna Larina Bukharina, tradução do notável comunista Ludgero Pinto Basto, recentemente falecido - “Glossário” - página 419 - (organizado e escrito por Alberto Freire), Edições Terramar

segunda-feira, agosto 1

"homens sem ideal e sem grandeza."

Hoje reflectindo com um amigo falávamos de como terá sido possível que uma grande parte da intelectualidade de esquerda tenha apoiado a União Soviética a partir dos finais dos anos 20 e, em particular, ao longo dos anos 30.

Não sabiam nada dos crimes de Estaline? Já aqui assinalei que Camus abandonou o Partido comunista em 1937, no qual tinha ingressado em 34. Talvez Camus tenha entendido o que muitos intelectuais do seu tempo não quiseram ou não puderam entender.

É a essa luz que pode ser lida, entre muitas outras alusões, este fragmento dos seus “Cadernos”, escrito em Dezembro de 1937:

“A política e o destino dos homens são organizados por homens sem ideal e sem grandeza. Aqueles que têm uma grandeza neles próprios não se ocupam de política. Assim em todas as coisas. Mas trata-se agora de criar em si próprio um novo homem. Seria preciso que os homens de acção fossem também homens de ideal e poetas industriais. Trata-se de viver os próprios sonhos – de os pôr em movimento. É necessário não nos perdermos e não renunciarmos.”

Albert Camus

“Caderno” n.º 2 (Setembro de 1937/Abril de 1939) – Tradução de Gina de Freitas. Edição “Livros do Brasil” (A partir da “Carnets”, 1962, Éditions Gallimard).

(Acrescento que o ano de 1937 é designado como o “ ano terrível” por corresponder à fase mais sinistra do Grande Terror estalinista do qual descreverei, a seguir, alguns pormenores.)

domingo, julho 31

O olhar sobre a paisagem

As encostas e os vales, depois dos dias de chuva, ficaram verdejantes. Olho-os do cimo da estrada que serpenteia a caminho de Colares. As hortas sobrevivem e deixam uma esperança de futuro. Já o verão vai a meio e o calor é temperado por esta aragem fresca que sempre sopra do Atlântico, aqui perto. Leio os primeiro fragmentos dos “Cadernos”, descrevendo a paisagem da Argélia de Camus e encontro aí, quase na perfeição, o meu Algarve. O mediterrâneo que não banha a minha terra mas a influencia de forma tão marcada. Como naquele texto, que intitulei “Alfarrobeiras”, onde me reencontro, em pleno, com o ambiente da minha juventude. Os cheiros são o mesmos, as mesmas árvores, o mesmo pó, a mesma secura da terra, a mesma tez nos rostos das gentes. Aqui, nas cercanias de Lisboa, tudo muda menos a luz do sol e o meu olhar, fascinado, pela paisagem.

(O Dias com Árvore deu conta das Alfarrobeiras, obrigado.)

As alfarrobeiras

“18 de Outubro(1937) .

No mês de Setembro, as alfarrobeiras exalam um cheiro a amor sobre toda a Argélia, e é como se a terra inteira repousasse depois de se ter entregado ao sol, o ventre todo molhado por uma semente com perfume a amêndoa.

No caminho de Sidi-Brahim, depois da chuva, o cheiro a amor emana das alfarrobeiras denso e sufocante, pesando com todo o seu peso de água. Depois o sol ao absorver a água toda, com as cores de novo deslumbrantes, o cheiro a amor torna-se fluido apenas sensível ao olfacto. E é como uma amante com quem andamos pela rua, após uma tarde inteira sufocante, e que nos contempla, ombro com ombro, por entre as luzes e a multidão.”

Albert Camus

“Caderno” n.º 2 (Setembro de 1937/Abril de 1939) – Tradução de Gina de Freitas. Edição “Livros do Brasil” (A partir da “Carnets”, 1962, Éditions Gallimard).

Um homem não se rende

“Por isso não me rendo. Por mais que me intimem e me intimidem continuarei a resistir. Não propriamente por razões militares ou morais. Digamos que por razões estéticas. Um homem não se rende. Talvez seja por isso que estou aqui, não sei ao certo onde nem desde quando, talvez desde sempre, no meio de um quadrado, cercado e sozinho, mas não vencido.”

Manuel Alegre

in “Expresso” de 30 de Julho - excerto de “O quadrado”, indicado como um texto de um novo livro de contos a editar proximamente, – para quem quiser entender!

sábado, julho 30

Os vapores do éter

"Guterres deixou 'o país de tanga', Barroso mentiu ao eleitorado e desabou, Santana foi um intermédio penoso e Sócrates mentiu como Barroso e vai a caminho de um mau fim".

Vasco Pulido Valente, PÚBLICO, 30-7-2005

Prever o fim de um governo, em democracia, não é um exercício muito estimulante. Reafirmar, reproduzindo a “voz do povo”, que todos os políticos mentem, não é uma descoberta muito arrebatadora. O que seria verdadeiramente fantástico é que o comentarista, do alto da montanha a que sobe, sob o efeito dos vapores do éter que o inebria, qual Deus na terra, nos dissesse o dia e a hora exacta de todas as abdicações. Em suma, nos indicasse o caminho e, de preferência, escrevesse à borla.

O Tejo é mais belo

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.

O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.
O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.

Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.

O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.

Fernando Pessoa (Alberto Caeiro)

ARGUMENTOS DA TRETA

A LER NO “EPPUR SI MUOVE” - crónicas do mundo

Argumentos da treta - As críticas a Soares

“Deixamos o campo da geriatria amadora e da reacção contra Abril para passarmos a discutir princípios e expectativas de desempenho mais palpáveis. Quem não quer voltar a ver Mário Soares na presidência que critique o que há para criticar: que é muito de esquerda, que não é suficientemente de esquerda, que tem uma visão errada do direito internacional, etc. Criticá-lo porque tem mais de oitenta anos, lutou contra a ditadura e esteve ligado ao pós-25 de Abril, isso não.”

Não posso estar mais de acordo

sexta-feira, julho 29

LUXO


“Foto de António José Alegria, do amistad”

"23 de Setembro.

Solidão, luxo dos ricos.”

Albert Camus

“Caderno” n.º 2 (Setembro de 1937/Abril de 1939) – Tradução de Gina de Freitas. Edição “Livros do Brasil” (A partir da “Carnets”, 1962, Éditions Gallimard).

E DEUS CRIOU A MULHER


Monica Bellucci

Apresentando E DEUS CRIOU A MULHER

quinta-feira, julho 28

MARIZA

Mariza na entrevista que acabou de passar na RTP referiu dois poemas de sua predilecção, ambos de Florbela Espanca .

Desejos vãos

Eu queria ser o Mar de altivo porte
Que ri e canta, a vastidão imensa!
Eu queria ser a Pedra que não pensa,
A pedra do caminho, rude e forte!

Eu queria ser o Sol, a luz intensa,
O bem do que é humilde e não tem sorte!
Eu queria ser a Árvore tosca e tensa
Que ri do mundo vão e até da morte!

Mas o Mar também chora de tristeza...
As árvores também, como quem reza,
Abrem, aos Céus, os braços, como um crente!

E o Sol, altivo e forte, ao fim de um dia,
Tem lágrimas de sangue na agonia!
E as Pedras... essas... pisa-as toda a gente!...


Caravelas

Cheguei a meio da vida já cansada
De tanto caminhar! Já me perdi!
Dum estranho país que nunca vi
Sou neste mundo imenso a exilada.

Tanto tenho aprendido e não sei nada.
E as torres de marfim que construí
Em trágica loucura as destruí
Por minhas próprias mãos de malfadada!

Se eu sempre fui assim este Mar Morto:
Mar sem marés, sem vagas e sem porto
Onde velas de sonhos se rasgaram!

Caravelas doiradas a bailar...
Ai quem me dera as que eu deitei ao Mar!
As que eu lancei à vida, e não voltaram!...

Florbela Espanca

LIBERDADE

(Interpretado na voz de João Villaret)

Ai que prazer
não cumprir um dever.
Ter um livro para ler
e não o fazer!
Ler é maçada,
estudar é nada.
O sol doira sem literatura.
O rio corre bem ou mal,
sem edição original.
E a brisa, essa, de tão naturalmente matinal
como tem tempo, não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto melhor é quando há bruma.
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

E mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças,
Nem consta que tivesse biblioteca...

Fernando Pessoa

quarta-feira, julho 27

"Lamber a vida como um rebuçado..."

15 de Set. (1937)

(...)

“Lamber a vida como um rebuçado, formá-la, estimulá-la, enfim, como se procura a palavra, a imagem, a frase definitiva, aquele ou aquela que conclui, que detém, com quem partiremos e que de futuro fará a cor do nosso olhar.”

(...)

“Quanto a mim, sinto-me numa curva da minha vida, não devido àquilo que adquiri, mas àquilo que perdi. Sinto-me com forças extremas e profundas. É graças a elas que devo viver como desejo. Se hoje me encontro tão longe de tudo, é que não tenho outro desejo senão amar e admirar. Vida com rosto de lágrimas e de sol, vida sem o sal e a pedra quente, vida como a amo e a entendo, parece-me que ao acariciá-la, todas as minhas forças de desespero e de amor se conjugarão.”

(...)

“É como se recomeçasse a partida; nem mais feliz nem mais infeliz. Mas com a consciência das minhas forças, o desprezo pelas minhas vaidades, e esta febre, lúcida, que me preocupa em face do meu destino.”

Albert Camus

“Caderno” n.º 1 (Maio de 1935/Setembro de 1937) – Tradução de Gina de Freitas. Edição “Livros do Brasil” (A partir da “Carnets”, 1962, Éditions Gallimard).

Barroso - "terror político"

O “Financial Times" a propósito da liderança de Durão Barroso! Onde é que eu já vi isto?

Não: não digas nada!

Não: não digas nada!
Supor o que dirá
A tua boca velada
É ouvi-lo já

É ouvi-lo melhor
Do que o dirias.
O que és não vem à flor
Das frases e dos dias.

És melhor do que tu.
Não digas nada: sê!
Graça do corpo nu
Que invisível se vê.

Fernando Pessoa
(5/6-2-1931)

O Mar Mediterrâneo

As minhas leituras de verão conduzem-me à observação de coincidências inquietantes.

Das “Notas Biográficas”, de Albert Camus:

“1934 – Adesão ao Partido Comunista;
(...)
1937 – Ruptura definitiva com o Partido Comunista.”


Na mesma época em que Camus abandona o Partido Comunista escreve nos “Cadernos” o elogio do Mediterrâneo (Agosto de 1937) e Anna Larina, mulher Bukharine, (executado em 1938), descreve em “Bukharine, minha paixão”, o sacrifício (em 1938) infligido a uma presa política na União Soviética, de Estaline, por esta fazer o elogio do Mediterrâneo:

“Assim, aos 8 anos de reclusão de Sara Lazarevna Iakir juntaram-se ainda dez anos porque, no campo de concentração, ela tinha contado que a beleza do Mar Mediterrâneo não ficava a dever nada à do Mar Negro e que, em Itália, se faziam belas blusas bordadas. Por estas afirmações “sediciosas” a mulher de Iakir foi acusada de fazer o elogio do estado capitalista (eu não exagero). A instrução do processo efectuou-se logo ali, no Campo de Tomsk, igualmente ali foi dada a sentença condenando-a segundo o artigo KRA (agitação contra-revolucionária). Assim, graças aos “sábios” do Siblag, os dezoito anos de reclusão aplicados à mulher de I. E. Iakir ficaram por um preço razoável ao Estado”.

terça-feira, julho 26

Os versos que te fiz

Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que a minha boca tem pra te dizer!
São talhados em mármore de Paros
Cinzelados por mim pra te oferecer.

Têm dolência de veludos caros,
São como sedas pálidas a arder...
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos pra te endoidecer!

Mas, meu Amor, eu não tos digo ainda...
Que a boca da mulher é sempre linda
Se dentro guarda um verso que não diz

Amo-te tanto! E nunca te beijei...
E nesse beijo, Amor, que eu te não dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz!

Florbela Espanca

A esquerda e Cavaco - A direita e Soares

Desta vez estou de acordo com José António Saraiva no Expresso on line: “O aparecimento, de chofre, de Mário Soares na corrida presidencial, foi um a boa notícia para a esquerda.”

De acordo ainda com Pacheco Pereira no abrupto: a idade de Soares é o mais estúpido dos argumentos que se podem invocar contra ele.

Mas PP dá uma enorme a ajuda a Soares quando o coloca do lado da instabilidade política. Por uma razão simples: a maior desvantagem da candidatura de Soares seria a ideia de que, como presidente, se tornaria um indefectível apoiante do governo socialista e de que acabaria por se confundir com ele. Colocar Soares no lugar da oposição ou, ao menos, da critica ao governo socialista é a maior ajuda que alguém pode dar à candidatura de Soares.

segunda-feira, julho 25

Sabor a Sal


Fotografia de Margarida Delgado, in Sabor a Sal
Dois anos na blogosfera. Parabéns.


Setembro.

Se dizeis: “eu não compreendo o cristianismo, quero viver sem consolação”, então sois um espírito limitado e parcial. Mas se, vivendo sem consolação, dizeis: “compreendo a posição cristã e admiro-a”, sois um diletante sem profundidade. Começo a deixar de ser sensível à opinião.”

Albert Camus

“Caderno” n.º 1 (Maio d 1935/Setembro de 1937) – Tradução de Gina de Freitas. Edição “Livros do Brasil” (A partir da “Carnets”, 1962, Éditions Gallimard).

ANTES QUE ME DEITE


(Paula Rego)

Apresentando ANTES QUE ME DEITE

AMIGA, no te mueras.


AMIGA, no te mueras.
Óyeme estas palabras que me salen ardiendo,
y que nadie diría si yo no las dijera.

Amiga, no te mueras.

Yo soy el que te espera en la estrellada noche.
El que bajo el sangriento sol poniente te espera.

Miro caer los frutos en la tierra sombría.
Miro bailar las gotas del rocío en las hierbas.

En la noche al espeso perfume de las rosas,
cuando danza la ronda de las sombras inmensas.

Bajo el cielo del Sur, el que te espera cuando
el aire de la tarde como una boca besa.

Amiga, no te mueras.

Yo soy el que cortó las guirnaldas rebeldes
para el lecho selvático fragante a sol y a selva.
El que trajo en los brazos jacintos amarillos.
Y rosas desgarradas. Y amapolas sangrientas.

El que cruzó los brazos por esperarte, ahora.
El que quebró sus arcos. El que dobló sus flechas.

Yo soy el que en los labios guarda sabor de uvas.
Racimos refregados. Mordeduras bermejas.

El que te llama desde las llanuras brotadas.
Yo soy el que en la hora del amor te desea.

El aire de la tarde cimbra las ramas altas.
Ebrio, mi corazón. bajo Dios, tambalea.

El río desatado rompe a llorar y a veces
se adelgaza su voz y se hace pura y trémula.

Retumba, atardecida, la queja azul del agua.
Amiga, no te mueras!

Yo soy el que te espera en la estrella da noche,
sobre las playas áureas, sobre las rubias eras.

El que cortó jacintos para tu lecho, y rosas.
Tendido entre las hierbas yo soy el que te espera!

Pablo Neruda

domingo, julho 24

Presidenciais - Soares/Alegre/Cavaco

Notas breves acerca de um dia muito agitado no que respeita a candidaturas presidenciais
1- Ainda não há candidatos firmes mas tão somente movimentos, em força, para o posicionamento de candidatos;
2- O campo da esquerda que, para esta questão, é o campo socialista, está aparentemente dividido; está para ver se Alegre desiste de se apresentar e, no caso de desistir, quando e como desiste;
3- Parece ser evidente, face às posições públicas de Sócrates, Coelho e Ferro Rodrigues e do próprio Soares, que a sua intenção é de avançar como candidato presidencial e esta é uma verdadeira novidade;
4- As primeiras reacções da direita à provável candidatura de Soares demonstram muito nervosismo, receios evidentes da fragilidade de Cavaco num confronto político directo com Soares;
5- Marcelo Rebelo de Sousa, na RTP, agitado como poucas vezes se tem visto, assumiu uma posição de desvalorização de Soares evocando os seus 80 anos e a sua natureza de político puro. Marcelo quiz fazer passar a mensagem de um Soares candidato fora do nosso tempo (antiquado) contra Cavaco candidato do nosso tempo (moderno); Soares só teria passado, Cavaco só teria futuro; todos os argumentos foram demasiado redutores do real peso pessoal, político e cultural de Soares numa contenda eleitoral contra Cavaco; como Marcelo conhece os personagens de quem fala e sabe que eles também se conhecem reciprocamente o seu discurso tem o efeito de ricochete destinado a assustar Cavaco;
6- Pacheco Pereira no Abrupto trilha outro caminho: tenta colocar Soares no lugar da instabilidade em matéria política e no lugar da extrema esquerda em matérias de política externa e de desenvolvimento sócio-económico, contra Cavaco, factor de estabilidade politica e de apoio ao desenvolvimento; para Pacheco, com a vitória de Soares o governo socialista ganha um inimigo e com a derrota de Cavaco perde um amigo seguro; diria que se é verdade que os amigos em política podem ser os piores adversários, os inimigos são sempre péssimos aliados.
7- Resta saber o que decidirão os putativos candidatos, os partidos que são supostos apoiá-los e, por fim, o povo quando chegar a hora do voto.

ÚLTIMO SONETO

Que rosas fugitivas foste ali!
Requeriam-te os tapetes – e vieste ...
- Se me dói hoje o bem que me fizeste,
É justo, porque muito te devi.

Em que seda de afagos me envolvi
Quando entraste, nas tardes que apareceste!
Com fui de percal quando me deste
Tua boca a beijar, que remordi ...

Pensei que fosse o meu o teu cansaço –
Que seria entre nós um longo abraço.
O tédio que, tão esbelta, te curvava...

E fugiste ... Que importa? Se deixaste
A lembrança violeta que animaste,
Onde a minha saudade a Cor se trava? ...

Mário de Sá-Carneiro (1890-1916)

Afinal, Mário Soares?

Gostaria de poder afirmar, sem ridículo, que a minha imaginação não tem limites. Mas precisaria cuidar de não a aplicar em nada de concreto. Afinal parece que a candidatura de Manuel Alegre era uma miragem. Aquela solução que, em tempos, tinha imaginado e defendido – como uma saudável provocação - a de Mário Soares ser candidato presidencial está prestes a tornar-se uma realidade. A imaginação, na política portuguesa, parece não conhecer os seus próprios limites. A acompanhar os próximos episódios.

"É preciso viver e criar."

“Setembro (1937)

(...) É preciso viver e criar. Viver e chorar – como diante desta casa de telhas arredondadas e portadas azuis sobre uma enorme encosta coberta de ciprestes.”
...
Montherland: Eu sou aquele a quem acontece qualquer coisa.”
...
“Em Marselha, felicidade e tristeza – Completamente no fundo de mim próprio. Cidade viva que eu amo. Mas, ao mesmo tempo, este gosto amargo da solidão.”

Albert Camus

“Caderno” n.º 1 (Maio d 1935/Setembro de 1937) – Tradução de Gina de Freitas. Edição “Livros do Brasil” (A partir da “Carnets”, 1962, Éditions Gallimard).

sábado, julho 23

Manuel Alegre - Candidato Presidencial

A candidatura de Manuel Alegre à Presidência da República é mais do que certa. Para que possa ser um clarão de esperança para os portugueses terá de ser capaz de olhar para o lado de lá. Compreender que a vida é muito difícil para muita gente. E que a vida é tanto mais difícil quanto menos se ouvem os protestos. Todos o sabem: os verdadeiros sofredores das nossas sociedades não têm voz. Sofrem em silêncio. A candidatura presidencial de Manuel Alegre tem de ser, em primeira linha, a voz da maioria dos sem voz.

"A descida para o Mediterrâneo."

“Agosto de 37
...
E ele entrou na água e nela lavou as imagens negras e contorcidas que o mundo lhe deixara na pele. De súbito renascia para ele o aroma da própria pele no jogo dos seus músculos. Talvez jamais tivesse sentido com tanta intensidade o seu acordo com o mundo, a sua marcha tão de acordo com a do sol. Àquela hora a que a noite transbordava de estrelas, os seus gestos desenhavam-se sobre o grande rosto mudo do céu. Se mexe um braço, desenha o espaço que separa aquele astro brilhante daquele que parece desaparecer por momentos, arrasta no seu impulso feixes de estrelas, filas de nuvens. Assim a água do céu agitada pelo seu braço e, à volta dele, a cidade como um manto de conchas resplandecentes.”

Albert Camus

“Caderno” n.º 1 (Maio d 1935/Setembro de 1937) – Tradução de Gina de Freitas. Edição “Livros do Brasil” (A partir da “Carnets”, 1962, Éditions Gallimard).

sexta-feira, julho 22

À volta da noite

Uma noite destas estava um calor abrasador. Fui arejar, dar uma volta ao quarteirão. Na rua um grupo de personagens, com ar respeitável, discutia. A mulher aos gritos: “mas quem é ele para querer ser tratado com mais cuidado?”. Mostrava-se irritada com qualquer constrangimento ao exercício do seu poder! O poder transtorna a maioria das pessoas.

Mário Cesariny de Vasconcelos


Fotografia (e retribuição) Pentimento

OUTRA COISA

Apresentar-te aos deuses e deixar-te
entre sombra de pedra e golpe de asa.
Exaltar-te perder-te desconfiar-te
seguir-te de helicóptero até casa

dizer-te que te amo amo amo
que por ti passo raias e fronteiras
que não me chamo Mário que me chamo
uma coisa que tens nas algibeiras

lançar a bomba onde vens no retrato
de dez anos de anjinho nacional
e nove de colégio terceiro acto

pôr-te na posição sexual
tirar-te todo o bem e todo o mal
esquecer-me de ti como do gato

(Inédito, Londres, 1965)

Mário Cesariny de Vasconcelos

In “Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica”
Selecção, prefácio e notas de Natália Correia,

"Antígona-Frenesi”

quinta-feira, julho 21

lembrar/esquecer


In sabor a sal

Aquilo que mais se quer esquecer
é aquilo que mais se lembra.
Porque querer esquecer é lembrar.
O que se não lembra é apenas
o que se esquece mas não se quer esquecer.

Vergilio Ferreira

Justificação


Fotografia de Camus jovem

Lutero: “É mil vezes mais importante acreditar firmemente na absolvição do que ser digno dela. Essa fé torna-nos dignos e constitui a verdadeira satisfação.”

(Sermão proferido em Leipzig, em 1519, sobre a Justificação).

Albert Camus

“Caderno” n.º 1 (Maio de 1935/Setembro de 1937) – Tradução de Gina de Freitas. Edição “Livros do Brasil” (A partir da “Carnets”, 1962, Éditions Gallimard).

Cruzeiro Seixas

Ao ler uma entrevista de Cruzeiro Seixas à pergunta : “A quem desejaria dar um grande abraço?”, respondeu: ”A muitos que morreram e me fazem tanta falta como o António Maria Lisboa, o Mário-Henrique Leiria, o Jose Pierre e os meus pais.”

Curiosa coincidência a nomeação de dois poetas aos quais , recentemente, fiz referência. Mas nunca tinha referido o próprio Cruzeiro Seixas.

Até quando
sementes
estaremos entregues
a este passar sobre a terra
exausta de nos esperar?

Até quando havemos de sonhar
ser flor e fruto
e não a dor infinita da morte
do teu olhar?

(Áfricas 957)

Cruzeiro Seixas, Poema Inédito (e entrevista) In “Poetas Visitados”, de Maria Augusta Silva – Edições Caixotim

A Demissão do Ministro das Finanças

O nosso atraso é ancestral. A educação é um seu revelador implacável. Mas, cuidado, que não são razões administrativas que o explicam. A administração é um reflexo de uma maneira de estar em sociedade, de uma mentalidade em que a condicionante central sempre foi, e ainda é, a miséria. Miséria moral e material. Ademais os ministros das finanças, em democracia, num país da UE, não podem reproduzir – nem sequer actualizado – o discurso de Salazar na sua tomada de posse, como ministro das finanças, em 27 de Abril de 1928. O problema é sempre o mesmo: falta a fazenda, onde sobra a cobiça. Sobra a intriga, onde falta a competência. Por isso, os ministros das finanças, sendo honestos, com eleições à vista, demitem-se.

quarta-feira, julho 20

O Interesse Público

Há dirigentes políticos que gostam de estragar a vida dos outros cuidando muito bem da sua. Os que gostam de cuidar da vida dos outros, sem cuidar da sua, são um perigo para o interesse público. Restam os tribunais para que se faça justiça.

Como um lábio húmido.

“13 de Fevereiro de 36

Eu peço às pessoas mais o que elas me podem dar. Vaidade de pretender o contrário. Mas que horror e que desesperança. E eu próprio talvez ..."
...

"Procurar os contactos. Todos os contactos Se pretendo escrever a respeito dos homens, como afastar-me da paisagem? E se o céu ou a luz me atrai, esquecerei eu os olhos ou a voz daqueles que amo? Dão-me, de cada vez, os elementos de uma amizade, os fragmentos de uma emoção, nunca a emoção, nunca a amizade.”

(...)

“Março

Dia atravessado por nuvens e pelo sol. Um frio salpicado de amarelo. Eu devia fazer um caderno do tempo de cada dia. Aquele belo sol transparente de ontem. A baía trémula de luz – como um lábio húmido. E trabalhei todo o dia.”

Albert Camus
“Caderno” n.º 1 (Maio de 1935/Setembro de 1937) – Tradução de Gina de Freitas. Edição “Livros do Brasil” (A partir da “Carnets”, 1962, Éditions Gallimard).

Arrastão?

São cada vez mais as notícias “muito importantes” que não me interessam nada. Na hora da notícia do “arrastão” de Carcavelos confirmei a bondade do meu desinteresse. Ninguém vai investigar nada acerca da origem da falsa notícia?

terça-feira, julho 19

CAMUS (Novos Sublinhados)

Camus produziu uma obra muito centrada nos temas da justiça e da liberdade. O homem torturado entre a revolta e a resignação ao seu destino: viver, simplesmente, a vida que se lhe oferece viver. O homem fraterno confrontado com o absurdo do mundo que o rodeia. Surgem nas suas reflexões inúmeras referências à verdade, à religião, à revolta e ao terror. As suas reflexões acerca destes, e outros temas, filosóficos com incidência literária, estão muito bem plasmadas num “diário” a que chamou “Cadernos”. É um blog autentico “avant la lettre”. Vou aproveitar as férias para fazer algo que me dá um especial prazer: reler e fazer novos sublinhados nestes “Cadernos”. Uma série pequena para não aborrecer. Para que se entenda o contexto, em 1935, Camus tem 22 anos e os Cadernos foram escritos entre Maio de 1935 e Março de 1951, ou seja, no período da sua juventude, ante, durante e pós- 2ª guerra mundial. Mas, na minha apreciação, o seu pensamento é muito actual. A partir de amanhã. Dedico-o à Manuela E.S., porque sim!

O ESPADA É UM CHATO

O Espada deve ser um dos gajos mais chatos da Europa Ocidental. Livre e democrática. Ainda bem que publica aquela crónica no "Expresso". De vez em quando estou de acordo com ele quando defende a superioridade da liberdade sobre a tirania. É que eu, que também fui esquerdista, li o Camus aí pelos meus 20 anos. Lembro-me dele (o Espada) dos tempos da UDP. E da sua descolagem do esquerdismo para a direita alta. Lembro-me que o Dr. Mário Soares ficou deslumbrado com as novas ideias do rapaz. Hoje o Soares é um “esquerdista” para a direita e o Espada um “direitista” para a esquerda. Este deve sentir pena, com todo o respeito, do velhote. A grande diferença está em que Soares é divertido, mesmo quando dele se discorda, e o Espada é um chato, mesmo quando com ele se concorda.

segunda-feira, julho 18

FÉRIAS


Entrada de férias. A escrita transferida para aqui será, muito provavelmente, menos extensa. Ganha a própria ideia inicial. As imagens serão escassas. O suporte tecnológico mais rudimentar. A corrente que faz mover o artefacto, no entanto, não para. Mesmo perante a escassez de justiça se alcançam pequenas vitórias. O sol, deste lado do hemisfério, ilumina as torres das igrejas e aquece os corpos. Como são tristes as sombras quando se aspira a alcançar a luz. Como somos todos diferentes mesmo quando não parecemos. É o nosso olhar sobre os outros que nos faz diferentes.

CESÁRIO VERDE


Cesário Verde - Morreu a 19 de Julho de 1886

Lúbrica

Mandaste-me dizer,
no teu bilhete ardente,
que hás-de por mim morrer,
morrer muito contente.

Lançaste no papel
as mais lascivas frases;
a carta era um painel
de cenas de rapazes!

Ó cálida mulher,
teus dedos delicados
traçaram do prazer
os quadros depravados!

Contudo, um teu olhar
é muito mais fogoso,
que a febre epistolar
do teu bilhete ansioso:

Do teu rostinho oval
os olhos tão nefandos
traduzem menos mal
os vícios execrandos.

Teus olhos sensuais
libidinosa Marta,
teus olhos dizem mais
que a tua própria carta.

As grandes comoções
tu, neles, sempre espelhas;
são lúbricas paixões
as vívidas centelhas...

Teus olhos imorais,
mulher, que me dissecas,
teus olhos dizem mais,
que muitas bibliotecas!

sábado, julho 16

DRÁSTICAS


“Foto de António José Alegria, do amistad”

Nos nossos dias fala-se muito em tomar medidas drásticas. No sentido de radicais e não de enérgicas. É a economia, a moral, a segurança, a soberania, a religião, a vida que as suscita, no fundo, tudo quanto indisponha o homem contra o seu tempo.

"Medida drástica" é uma frase própria de gente fraca que na boca dos políticos quase sempre desemboca em tragédia.

As decisões que mudam a vida dos povos nunca são drásticas. Pela simples razão que, em democracia, só são possíveis com o apoio da opinião pública e esta, nas nossas sociedades, quase nunca estabelece um consenso no sentido da radicalidade.

Note-se que digo apoio da opinião pública às decisões, consentimento - não constrangimento -pois neste caso, imperando a tirania, as medidas drásticas são uma espécie de banalização do mal.

As decisões drásticas, no sentido de radicais, estão do outro lado da firmeza e esta é património da democracia.

OLHO


Fotografia de Catedral para um poema de Alexandre O´Neill

Quando escrevi isto não tinha lido o que Pacheco Pereira escreveu no Público, disponível no Abrupto, nem o comentário postado na Cibertúlia.

O regresso


Um dia a senhora O. precisou de ser operada. Já não andava. O médico operador condoeu-se da sua situação. Era natural da terra da senhora O. e tinha condições para decidir uma intervenção cirúrgica imediata. O. foi transportada, pelo filho, do Algarve para um hospital de Lisboa. A operação correu bem e O. ficou na cama do hospital a recuperar.

Um dia fui visitá-la, uma camponesa pobre, com porte aristocrático. Amiga e servidora da minha família do campo já desaparecida. A quem ofereço a água do meu furo em troca dos seus cuidados pela casa. A quem ofereço a “apanha” de todos os frutos secos, com excepção das alfarrobas, em troca das memórias do passado.

Disse-me, nesse dia da visita, que não tinha como sair do hospital. Iam dar-lhe alta mas não podia regressar a casa de autocarro, não tinha dinheiro para um taxi, o filho não podia largar o trabalho e não lhe davam o acesso a uma ambulância. Não via como sair do hospital.

Na época eu tinha motorista. Entreguei-lhe o meu carro pessoal e numa folga ele foi levá-la a casa. A isto chama-se “estado social”. Ponto final.

Dusk in the Summer Days


Dusk in the Summer Days [oil on canvas 36 x 48 in]

George Xiong was born in 1948, China. 1970 he graduated from The Central Academy of Design With B.A. degree. 1989, he graduated from The City University of New York, with M.A. degree. Now he lives and works in New York.

(Série Artistas Chineses)

In Tao Water Art Gallery

sexta-feira, julho 15

Caleidoscópio


Apresentando Caleidoscopio

Ceguera

A final de cuentas qué importa.
Prometer el cielo y equivocarse... qué importa.
Prometer eternidades en cuerpos
que se hieren.

(Estoy ciega).
Y no veo más que el negro
de este pozo,
y no sueño con más que con mi propio soñar,
y no escribo más que para cortar este círculo
y salvarme
de la locura.

(2000)

Claridade dada pelo tempo


Fotografia In “O Coiso”, com a seguinte legenda, onde é identificado Mário-Henrique Leiria e um excerto com a “ficha técnica” de “O Coiso”

1975 – Almoço dos colaboradores de “O Coiso”, algures no Bairro Alto. À esquerda, em 1º plano, o Carlos Barradas, seguido do Mário-Henrique, o Zé Tó, a Mizé, a Mila e eu. À direita, o Rui Lemus, quatro tipos cujo nome me escapa, mas que trabalhavam no República e, lá ao fundo, de bigode, o Belo Marques
.

Em Novembro de 1976, ainda lançámos mais dois números de “O Coiso”, graças ao apoio de uns quantos esquerdistas amigos do Mário-Henrique. Foram dois números completamente malucos.

Transcrevo a ficha técnica:

“O Coiso – órgão oficial das agências funerárias; Director – Carlos Vidigal (quem seria este?); Propriedade: João das Regras; Colaboradores voluntários: bombeiros; Observadores: Júlio Quirino, Carlos Barradas, Cooperativa Buques e Smites (éramos nós), Painted Stones and Company, CIA, NATO, KGB e Pacto de Varsóvia, Afonso Henriques, Pantera Cor-de-Barreto, EFTA e CEE, dois ursos e um cubo, uma raiz quadrada e um integral de Lebesgue, António Crómio, Joaquim Beterraba, Antunes Candelário, Jorge Bisnaga, Vovô Gasosa (o Mário, claro), Álvaro Paz, e um grupo de doentes do Hospital de S. José, serviço 7, cama 2 e um conjunto finito, mensurável de botijas; De Coração: Sir Aiva (este era o Jorge, o namorado da irmã da Mila!… toda a família ajudava…) e Josefa de Óbidos; Desporto: Montenegro; Colaboradores involuntários: os tipos do costume”.


Claridade dada pelo tempo

I

Deixa-me sentar numa nuvem
a mais alta
e dar pontapés na Lua
que era como eu devia ter vivido
a vida toda
dar pontapés
até sentir um tal cansaço nas pernas
que elas pudessem voar
mas não é possível
que tenho tonturas e quando
olho para baixo
vejo sempre planícies muito brancas
intermináveis
povoadas por uma enorme quantidade
de sombras
dá-me um cão ou uma bola
ou qualquer coisa que eu possa olhar
dá-me os teus braços exaustivamente
longos
dá-me o sono que me pediste uma vez
e que transformaste apenas para
teu prazer
nos nossos encontros e nos nossos
dias perdidos e achados logo em
seguida
depois de terem passado
por uma ponte feita por nós dois
em qualquer sítio me serve
encontrar o teu cabelo
em qualquer lugar me bastam
os teus olhos
porque
sentado numa nuvem
na lua
ou em qualquer precipício
eu sei
que as minhas pernas
feitas pássaros
voam para ti
e as tonturas que a planície me dá
são feitas por nós
de propósito
para irritar aqueles que não sabem
subir e descer as montanhas geladas
são feitas por nós
para nunca nos esquecermos
da beleza dum corpo
cintilando fulgurantemente
para nunca nos esquecermos
do abraço que nos foi dado
por um braço desconhecido
nós sabemos
tu e eu
que depois de tudo
apenas existem os nossos corpos
rutilantes
até se perderem no
limite do olhar
dá-me um cigarro
mesmo que seja só um
já me basta
desde que seja dado por ti
mas não me leves
não me tires
as tonturas que eu teria
que eu terei
sempre que penso cá de cima
duma altura vertiginosa
onde a própria águia
nada mais é que um minúsculo
objecto perdido
onde a nuvem
mais alta de todas
se agasalha como um cão de caça
leva-me a recordação
apenas a recordação
da vida martelada
que em mim tem ficado
como herança dada há mil e
duzentos anos

deixa que eu fique
muito afastado
silencioso
e único
no alto daquela nuvem
que escolhi
ainda antes de existir

II

Deixa que eu quebre tudo que tenho e que terei
tudo o que é de todos e que só a mim pertence
deixa-me quebrar o cavalo que me deste
na noite do nosso primeiro encontro
deixa-me partir a bola o cão o espaço
deixa-me quebrar a minha casa e a minha cama
a minha única cama
não quero que me contem a aventura
nem que me dêem almofadas
não quero que me ofereçam sombras
só por mim construídas e logo abandonadas
nem sequer esquinas de ruas
não quero a vida
sei claramente que a não quero
a não ser que ela esteja partida quebrada
quebrada por mim e por ti
e a minha infância
essa dou-ta
inteira muito longa e cruel
deixa que dela me fique apenas
essa crueldade
e que nela só eu siga
ignorando o que me deste
e que
martelo ou pedra
eu continue partindo quebrando
esfacelando dilacerando
o teu corpo que já não está ao meu alcance
deixa-me ser anatomicamente autêntico
sem erro
sangrando
perdido para sempre

III

Viver com a crueldade
da criança que
tira os olhos ao pássaro
.
um desconhecido
movendo-se constantemente
no deserto
em que cada pegada deixa
bem marcada na areia
a imagem
dessa outra existência
em que a morte e a memória
ainda nada significam

mais alto

muito mais alto talvez
que a claridade
do voo das aves que
partem para o desconhecido

o próprio corpo nada mais é
do que a sombra
bem simples por sinal
em que,
por erro nosso ou dos outros,
já não existe
a persistência do que
foi perdido

e as mãos
as mãos que sentimos
bem presas seguras aptas
essas
todos sabemos
que podem ainda cada vez mais
esmagar com cuidado
com extremo cuidado
dilacerar suavemente

nos olhos
está o amor

IV

Simples como é
a claridade é a coisa
mais difícil de encontrar
talvez porque a distância que nos
separa longa muito longa
e nítida
seja a torre de chumbo do nosso
próprio isolamento
talvez porque sentir
o aparecimento da madrugada
seja a origem do desespero
sombra trópico lâmina
entre nós dois

ouve o que te digo
não esqueças os meus lábios
mesmo quando desfeitos
e a claridade
essa não a procures não nunca
deixa-a ir comigo
até ao esgotamento do meu sangue
até ao limite
do meu corpo em carne viva

V

Eu sei
que há um lugar por descobrir
um lugar tenebroso e cantante
como uma ponte de velhos manequins


o teu corpo
dois seios despedaçados
e o vento só o vento
soprado através
dos teus cabelos

(In Surreal Abjeccion(ismo)

MÁRIO-HENRIQUE LEIRIA

O Surrealismo na Poesia Portuguesa
organização, prefácio e notas
Natália Correia
2ª edição
frenesi
2002

quinta-feira, julho 14

O Perfil dos Bombistas de Londres


Labirinto Fotografia de Alimento del Alma

Notícias postas a circular traçam o perfil de três bombistas de Londres. São jovens ingleses, de origem paquistanesa, alguns (ou todos) já nascidos em Inglaterra. Pacatos cidadãos com famílias normais, estudos e participação na vida social.

Parece terem tomado a decisão de morrer fazendo morrer com eles outros pacatos cidadãos ingleses. É um fenómeno a que vulgarmente se chama terrorismo. O terrorismo não tem nada de novo e foi ganhando novas fórmulas ao longo dos tempos.

A intensificação dos actos terroristas antecede, habitualmente, períodos de exaltação nacionalista associados à emergência da aceitação popular de ideologias de vocação totalitária e ao esmorecimento do prestígio da democracia.

Os ventos de guerra são soprados pelo terrorismo. Dizem mesmo alguns especialistas que já estamos em guerra. Sustentam-se nesta ideia as propostas de limitação das liberdades, ou seja, a passagem de uma fase de vigilância selectiva de suspeitos para a vigilância de toda a sociedade.

A intransigência das democracias perante as ameaças de tirania é legitima. Tem um pequeno problema: como declarar o estado de guerra sem uma declaração de guerra. Assim as democracias tenderão a muscular as suas intervenções contra alvos exteriores. Mas os inimigos das democracias estão dentro do espaço físico das próprias democracias e, porventura, no seio das suas próprias instituições.

É o que prova o perfil dos terroristas de Londres, se for verdadeiro, ou seja, caso não seja uma montagem para impressionar as opiniões públicas ocidentais preparando-as para medidas proteccionistas.

Talvez fosse muito útil ao ocidente fazer um exame de consciência acerca do peso dos negócios ilícitos e criminosos na criação da sua própria riqueza e no armamento (ideológico e militar) dos seus inimigos.

Afinal que é feito de Bin Laden?

quarta-feira, julho 13

A Life as a Flower


A Life as a Flower 04-1 [oil on canvas 16 x 18 in]

Luo Fa Hui (b.1962-) is a metaphoric painter. In traditional Chinese art, the flower always symbolized sex. Luo painted his flowers as did the American painter O’Keefe, but in a Chinese way. Chinese sex culture is depressingly gentle, dark and implicit. Luo’s roses are dark, wet, gentle and soft, have a gentle beauty, but still reek with decay. In his later work, his roses are glittering and translucent, as charming and delicate as one could ever expect.

Luo’s roses are a woman’s sensuality as rendered by a man. Perhaps many Chinese men have the gentleness and delicacy of a woman and, within their culture, are normal and natural.

(Série Artistas Chineses)

In Tao Water Art Gallery

ESCOLA DA PONTE


Fotografia de Margarida Delgado in Sabor a Sal

APRESENTANDO A ESCOLA DA PONTE - Para aqueles que se interessam pelas questões da educação – não só em Portugal – e, em especial, para cumprir uma promessa que fiz à Sylvia Gomes, Niteroi, Rio de Janeiro.

Eis a rúbrica "Caixinha dos Segredos" retirada do site daquela Escola:

Como o objectivo dos objectivos é fazer das crianças pessoas felizes, foi instituída uma "caixinha dos segredos". É aí que a pesquisa das almas inquietas (indisciplinadas?) começa. Na caixa de papelão, os alunos deixam recados, cartas, pedidos de ajuda. A "caixinha dos segredos" ensina os professores a reaprender. É que nem sempre o que parece ser "indisciplina" o é. Os "recados-segredos" provam-no:

"Todas as manhãs, o Arnaldo já chega cansado de duas horas de trabalho. Antes de rumar à escola, o Rui foi ao lavrador buscar o leite, levou os irmãos mais pequenos ao infantário, fez os recados da Dona Alice, arrumou a casa toda. O Carlos falta quase todas as tardes. O pai manda-o distribuir por toda a vila as folhas que dão notícia dos falecimentos da véspera, ou tem que carregar as alfaias dos funerais".