sexta-feira, julho 19

"Alocução aos Socialistas"

"Na política, como sabeis, o comportamento rectilíneo, sem argúcia alguma, - sincero, aberto, desartificioso, claro, - usa ser censurado, como sendo ingénuo: e, nessa sua qualidade de comportamento ingénuo, como prejudicial, ou pateta. Paciência. Seja. (…) Os essencialmente habilidosos (não faço empenho em negá-lo) alcançam a sua hora de simulacro e de vista. Mas é uma hora e nada mais; mas é simulacro, e só vista. Logo a seguir a esse instante, comunica-se-lhes o fogo da sua iluminação de artifício, e fica tudo em fumaça, que pouco depois não é nada."

"Aos nossos socialistas, quanto a mim, compete-lhes resistirem ao tradicional costume de se empregarem espertezas e competições de pessoas para apressar o momento em que há-de chegar ao poder…"

"Antes de tudo, buscai prestigiar-vos ante a nação inteira pelo timbre moral da vossa alma cívica; porque (como acreditais, creio eu) não é indispensável conquistar o poder para se influir de facto na orientação do estado."

"Não tenhais a ânsia de vos alcandorar no poleiro com prejuízo das qualidades a que se tem chamado "ingénuas". As habilidades dissipam-se; os caracteres mantêm-se."

"Não existam ciúmes e invejas recíprocas entre os vários componentes da vossa grei socialista: nem tampouco os ciúmes, nem tampouco as invejas, para com os homens que compõem as outras facções da esquerda. Seja vosso lema a unidade. Por mim, quero trabalhar pela unidade, pelo entendimento recíproco, pela existência de convivência amável entre os homens políticos de orientações discordes. Incorrigivelmente "ingénuo", fraterno, cordial."


António Sérgio, In "Alocução aos Socialistas", No Banquete do Primeiro de Maio de 1947.

Veja aqui

terça-feira, julho 16

AS EVIDÊNCIAS - XXI

Este é o último soneto de "As Evidências” [1955]. Nos “Diários” de Jorge de Sena, livro publicado por Mécia, surgem referências explícitas ao estado de espírito do autor aquando da escrita dos últimos sonetos datadas de 17 de Abril de 1954.

“Dias de abatimento incrível, ao fim dos quais lutei com os sonetos dos deuses. Repentinamente, ontem surgiu o soneto do mal. E, hoje, suave e sem rima, completei, ou antes, escrevi todo, o soneto dos deuses (XIX). (…) Mas o que eu tenho sofrido vivendo, para depois me “purgar” no sofrimento de escrever abstracto, essencial, de uma vez para sempre!

Chegando a casa, li à Mécia o soneto. Depois, fui copiá-lo para o escritório. Foi escurecendo. E, de súbito, num transe medonho que não me permitiu acender a luz, saiu inteiro o que suponho ser o último soneto da série.”

Cendrada luz enegrecendo o dia,
tão pálida nos longes dos telhados!
Para escrever mal vejo, e todavia
a dor libérrima que a mão me guia
essa me vê, conforta meus cuidados.

Ao fim terrível que me espera extenso,
nenhum conforto poderei pedir.
Da liberdade o desdobrado lenço
meu rosto cobrirá. Nem sei se penso
ou pensarei quando de mim fugir.

Perdem-se as letras. Noite, meu amor,
ó minha vida, eu nunca disse nada.
Por nós, por ti, por mim, falou a dor.
E a dor é evidente – libertada.

16-4-1954

Jorge de Sena

segunda-feira, julho 15

POLITICA - 12

Nestes dias de crise política por toda a Europa democrática, do centro à periferia, do Norte protestante, ao sul Católico, evito citar nomes de países, todos com suas virtudes e defeitos, forças e fraquezas, belezas e horrores, um amplo território habitado por povos com culturas e tradições antigas, prefiro o diálogo à ruptura, a busca racional de entendimentos à cedência emocional que trás consigo a derrocada da conquista da paz numa Europa martirizada por duas guerras sangrentas no século XX.

Sei que escrevo palavras banais, num cantinho recôndito da blogosfera, sem outro poder senão o de uma voz entre milhões de vozes tentadas a ceder ao vozear populista que não poupa nada nem ninguém que se levante em defesa do bom senso dos acordos civilizados que não são mais do que o traçar da fronteira dos princípios e valores que a comunidade, representada pelos partidos, em democracia, aceita partilhar como razoáveis numa sociedade cidadã.

Que não se cansem os que aceitam dialogar, quiçá negociar, os democratas, persistindo no caminho que encetaram, rejeitando as chantagens daqueles que sob a capa da defesa da liberdade têm no cerne da sua ideologia a negação da liberdade. Que não temam, ao mesmo tempo, denunciar a injustiça de propostas que aprofundem a transferência brutal de riqueza da parte mais fraca das sociedades para aqueles que buscam capturar a política em favor da alta finança.

O que precisamos hoje, acima de tudo, é de política, a verdadeira, que restaure a confiança do povo nos eleitos em defesa dos seus ideais. Difícil? Tudo o que sempre fez avançar o mundo e as sociedades foi difícil! Aqui fica o meu testemunho em defesa do diálogo, provavelmente o mais difícil exercício em tempos de carência e crispação.

sexta-feira, julho 12

AS EVIDÊNCIAS - XX

Erguem-se as tríades: são mais que deuses,
e menos que verdade de os haver.

De Deus a dupla face em face à vida
é só por elas que a evitamos ser,

quando a não vemos senão dupla, triste
daquele humano gesto de que existe
a sempre imagem trina de O perder,
cindido o amor, no espelho reflectida.

E ao espelho se engrisalham os cabelos
e as rugas cavam-se das eras idas
sobre a vidraça como gotas de água.

Ouvem-se os ecos de outros ecos belos.
E Deus, reflexo silencioso, os deuses
guardam liberto de ser dupla mágoa.

28-4-1954 [curiosamente no dia do meu aniversário.]

terça-feira, julho 9

PLÁCIDO DOMINGO

EVIDÊNCIAS - XIX


Perdidas uma a uma as coisas todas,

os corpos e as estrelas, flores e rios
na construção do espírito sonhado,
humanamente vos haveis unido,

para de além de tudo ainda regerdes
apenas pó a ser cindido um dia,
que o que ficava, dissoluto o mundo,
a morte humana assim éreis num só,


ó deuses, formas de existir, presença,
tão sempre jovens e dourados mortos
de morte que é sol-posto ou madrugada,

ó deuses do universo! – a tarde cai,
e, em vagas vozes de crianças rindo,
cindido tudo, ó deuses, regressai.

16-4-1954

domingo, julho 7

ERA UMA VEZ UM PEQUENO INFERNO E UM PEQUENO PARAÍSO ...

"Era uma vez um pequeno inferno e um pequeno paraíso, e as pessoas andavam de um lado para outro, e encontravam-nos, a eles, ao inferno a ao paraíso, e tomavam-nos como seus, e eles eram seus de verdade. As pessoas eram pequenas, mas faziam muito ruído. E diziam: é o meu inferno, é o meu paraíso. E não devemos malquerer às mitologias assim, porque são das pessoas, e neste assunto de pessoas, amá-l...as é que é bom. E então a gente ama as mitologias delas. A parte isso o lugar era execrável. As pessoas chiavam como ratos, e pegavam nas coisas e largavam-nas, e pegavam umas nas outras e largavam-se. Diziam: boa tarde, boa noite. E agarravam-se, e iam para a cama umas com as outras, e acordavam. Às vezes acordavam no meio da noite e agarravam-se freneticamente. Tenho medo - diziam. E depois amavam-se depressa, e lavavam-se, e diziam: boa noite, boa noite. Isto era uma parte da vida delas, e era uma das regiões (comovedoras) da sua humanidade, e o que é humano é terrível e possui uma espécie de palpitante e ambígua beleza.”

Herberto Helder

quarta-feira, julho 3

EVIDÊNCIAS - XVIII


Deixai que a vida sobre nós repouse
qual como só de vós é consentida
enquanto em vós o que não sois não ouse

erguê-la ao nada a que regressa a vida.
Que única seja, e uma vez mais aquela
que nunca veio e nunca foi perdida.

Deixai-a ser a que se não revela

senão no ardor de não supor iguais
seus olhos de pensá-la outra mais bela.

Deixai-a ser a que não volta mais,
a ansiosa, inadiável, insegura,
a que se esquece dos sinais fatais,

a que é do tempo a ideia da formosura,
a que se encontra se se não procura.
26-3-1954

Jorge de Sena

terça-feira, julho 2

POLÍTICA - 11

Um pico de crise política emerge e dificilmente se antevê a saída dela. A tempestade perfeita de consequências difíceis de prever. Escasseiam as palavras para a descrever. A democracia sem partidos, ou de partido único, não é democracia, é tirania. Não há volta a dar. É preciso reinventar um modelo que, faz muito tempo, assentava no que se chamava “centrismo radical”. Os partidos que foram gerados pelos processos de libertação da tragédia da 2ª guerra e/ou das ditaduras, mais ou menos tardias, (algumas da europa meridional) estão gastos, geraram em todos os países (mesmo nos do norte da Europa) dinâmicas de reprodução ideológica, e de aparelho, que já não são expressão satisfatória das aspirações de largas camadas das populações. Sem afastar os partidos será necessário criar novas formas de expressão da vontade popular, novas conjugações que assimilem a democracia digital, a democracia representativa e a democracia direta (ou participativa, para usar um termo mais moderado). Tudo demora tempo e por vezes exige convulsões. Ao que assistimos hoje, não só no ocidente, como no oriente e nas américas, em todo o mundo, é a uma revolução que um dia será conhecida por uma designação ainda não encontrada com exatidão.   

segunda-feira, julho 1

"Terra e a Morte"

Terra vermelha terra negra
que vens do mar
dos campos queimados,
onde estão as palavras
antigas e as fadigas do sangue
e gerânios entre os rochedos –
não sabes quanto tens
de mar palavras e fadiga,
tu rica como a lembrança,
como os campos agrestes,
tu dura e dulcíssima
palavra, antiga pelo sangue
que afluiu aos olhos;
jovem, como um fruto
que é estação e eco –
o teu hálito repousa
ao céu de Agosto,
as azeitonas do teu olhar
adoçam o mar,
e tu vives e renasces
sem espanto, segura
como a terra, escura
como a terra, lagar
de estações e de sonhos
que à lua se descobre
antiquíssimo, como
as mãos da tua mãe,
a pedra gasta da lareira.

27 de Outubro de 1945

Cesare Pavese

[“Terra e a Morte” in “Virá a morte e terá os teus olhos.”

“Trabalhar Cansa” – Tradução de Carlos Leite, Cotovia]

domingo, junho 30

EVIDÊNCIAS - XVII

Neste soneto XVII, dos 21 que compõem “As Evidências”, aquando da minha leitura inicial, logo após a sua morte, sublinhei, a lápis, um verso que sempre me tem acompanhado: “É pequena a margem pura onde só há tristeza”.


Na noite funda em que das nuvens corre
interceptado o luar prateando a vida,
de tudo a forma é sombra desmedida
como do corpo a contrição qual morre.

Últimas fezes do estertor, na espuma
que aos lábios sobe envidraçando o olhar,
crispam-se os dedos, quanto devagar
memórias se desatam uma a uma.

De súbito explodido, ou na serena
e distendida muscular dureza,
o espírito se quebra nas miríades

que o foram sucessivas. É pequena
a margem pura onde só há tristeza.
Da podridão logo renascem tríades.


25-3-1954

Jorge de Sena

quinta-feira, junho 27

AS EVIDÊNCIAS - XVI






































Livres de ser o que os acasos tecem
na teia de eras que aumentando os muda,

não sendo vamos contrição desnuda,
e como nós as coisas acontecem.


E porque acontecidas logo cessem
de ser a liberdade ponteaguda
que de entre teias como gota exsuda,
mudam-se em nós as que a mudança esquecem.


E um sentimento, a máquina, um abraço,
um filho, a estátua, as dimensões do espaço
- pensado ou não, sentido ou não, talhado
ou não – fado serão do próprio fado,
qual como em fios luminosos vemos
o gecto igual com que outra fronte erguemos.

15-3-1954

Jorge de Sena

segunda-feira, junho 24

AS EVIDÊNCIAS - XV


Manhã de glória! – ó deuses, ó imagens,
palavras, gestos, silenciosa crença,
ó plácida ternura das paisagens,
brincar das crianças na convalescença,

lembrado vento das remotas viagens,
saber perpétuo das ciências novas,
sereno deslisar de astrais paragens,
mentiras, crimes, proclamadas provas

de tudo contra tudo: universal
visão que sois, só porque sois tão mal

a mão que toca e que a si própria sente;
nessa mentira veramente ouvida,
nessa verdade que, de o ser, já mente,
o mal que sois é o bem de haver só vida.

9-3-1954

Jorge de Sena

Anjani Thomas

sábado, junho 22

AS EVIDÊNCIAS - XIV

Nenhuma voz me atinge por destino
dela, e nenhuma me procura ansiosa.
Se o espaço cruzam num murmúrio fino
ou gritam seu destino, a mais formosa

é sempre aquela que eu encontro agora,
apenas porque a encontro e por mais nada.
E para ouvi-las não existo, embora
as ouça claramente, na humilhada,

ténue, profunda, vasta e dolorosa,
conquanto doce, humanidade alheia,
que em mim se alberga tímida e receosa.

Assim se escutam vozes. Delicada,
sopra no espírito a formosa ideia,
e encrespam-se as palavras na alvorada.

 
9-3-1954

Jorge de Sena
 

quarta-feira, junho 19

AS EVIDÊNCIAS - XIII

                                                                               XIII

Quando me encontro sempre sem poesia
do ritmo ouvindo o cadenciar perfeito
em que as palavras passam como um dia
que é fluído e pálido, gelado e estreito,

sempre uma voz, que eu antes não ouvia,
me preenche o espaço entre o destino e o leito
de fogo e de cristal em que me deito
na música sem dor nem alegria.

Alguém que eu fui ou não cheguei a ser,
que alguém não teve tempo de viver
na ondulação do transitório acaso,

é por acaso que em mim próprio escuto,
qual do vazio ocasional refuto
a vacuidade inane do seu vaso.

9-3-1954

Jorge de Sena

NAPOLEÃO BONAPARTE

                                                  As grandes frases de Napoleão.


“A felicidade é o maior desenvolvimento das minhas faculdades.”

Antes da ilha de Elba: “Um malandro vivo vale mais do que um imperador morto”.

“Um homem realmente grande colocar-se-á sempre acima dos acontecimentos que originou.”

“É necessário querer viver e saber morrer.”


Albert Camus, in Caderno n.º 4

segunda-feira, junho 17

POLÍTICA (10)

Correm-se as notícias de uma a outra ponta e o que vemos? Um diário de conflitos, de violência, de guerra! Cá e lá, por todo o lado, não é só o que mais convém à indústria das notícias mas um reflexo da realidade nua e crua. O que há pouco tempo atrás era um devaneio de lunáticos - a guerra – passou a ser um presságio de realistas. Talvez um pouco mais de espirito de paz no G8, no lugar da volúpia da guerra, em mangas de camisa, menos usura e mais compaixão, menos manobra e mais política, mais grandeza e menos subserviência. Apetece-me citar Camus em “Núpcias, O Verão”: "
(...) A primeira coisa é não desesperar. Não prestemos ouvidos demasiadamente àqueles que gritam, anunciando o fim do mundo. As civilizações não morrem assim tão facilmente; e mesmo que o mundo estivesse a ponto de vir abaixo, isso só ocorreria depois de ruírem outros. É bem verdade que vivemos numa época trágica. Contudo, muita gente, confunde o trágico com o desespero. “O trágico”, dizia Lawrence, “deveria ser uma espécie de grande pontapé dado na infelicidade”.

sábado, junho 15

AS EVIDÊNCIAS XII

XII

Uma outra vida espera em vosso peito.
Dentro do meu que em gestos se condensa
a carne fala e vibra, a carne pensa
por vós como por mim, que não aceito

mais que a linguagem de ter sido eleito
igual aos outros: tão igual, que sou
a identidade vária com que vou
sendo a diferença dolorosa – o jeito

de uma pura perda celebrar o amor,
sagrando-vos humanos e lembrados
na plena luz a que viveis os fados.

Beijemo-nos então. Língua na língua,
essa outra vida que trazeis, distingo-a,
e como liberdade aceito a dor.


Jorge de Sena

6-3-1954

sexta-feira, junho 14

Barbara Hannigan

RENÉ CHAR

                                       14 de Junho de 1907/19 de Fevereiro de 1988 


Este lugar é só um voto do espírito, um contra-sepulcro.

Na minha terra preferem-se as ternas provas da primavera e os pássaros mal-vestidos aos objectivos longínquos.

A verdade espera pela aurora à luz de uma vela. O vidro da janela não está limpo. Pouco importa ao atento.

Na minha terra não se fazem perguntas a um homem comovido.

Não há sombra maligna no barco soçobrado.

(…)

Só se pede de empréstimo o que se pode devolver aumentado.

Há folhas, muitas folhas, nas árvores da minha terra. Os ramos podem escolher não ter frutos.

Ninguém acredita na boa-fé do vencedor.

Na minha terra agradece-se.

“A Sesta Branca”, in Os Matinais (1947-49)  
         
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CHAR FAZ 33 ANOS EM 1940.

CHAR É DENUNCIADO COMO MILITANTE DE EXTREMA-ESQUERDA À PERFEITURA DE VAUCLUSE.

AS SUAS ANTERIORES ACTIVIDADES NO MEIO SURREALISTA SERVIRAM TAMBÉM DE PRETEXTO PARA A DENÚNCIA.

PASSA À CLANDESTINIDADE E COM O NOME DE CAPITÃO ALEXANDRE ORGANIZA A RESISTÊNCIA, DIRIGE A SAP, A SECÇÃO DE ATERRAGEM E PARAQUEDISMO, DESDE 1940 A 1944.

[RENÉ CHAR – ESTE FANÁTICO DAS NUVENS, Uma antologia organizada por Marie-Claude Char e Y. K. Centeno, tradução de Y.K. Centeno – Cotovia]


quinta-feira, junho 13

FERNANDO PESSOA - pelo aniversário de seu nascimento

Por ocasião da passagem do 125º aniversário do nascimento de Fernando Pessoa transcrevo, a partir do site de poesias coligidas de F E R N A N D O P E S S O A, a parte final da carta a Adolfo Casais Monteiro.

Autobiografia?
Carta a Adolfo Casais Monteiro
(…)

Mais uns apontamentos nesta matéria... Eu vejo diante de mim, no espaço incolor mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Construí-lhes as idades e as vidas.
 
Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lembro do dia e mês, mas tenho-os algures), no Porto, é médico e está presentemente no Brasil. Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão nem educação quase alguma. Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 (às 1,30 da tarde, diz-me o Ferreira Gomes; e é verdade, pois, feito o horóscopo para essa hora, está certo). Este, como sabe, é engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inactividade. Caeiro era de estatura média, e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mas seco. Álvaro de Campos é alto (1,75 in de altura, mais 2 cm do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se. Cara rapada todos – o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis de um vago moreno mate; Campos entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo. Caeiro, como disse, não teve mais educação que quase nenhuma – só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó. Ricardo Reis, educado num colégio de jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É, um latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria. Álvaro de Campos teve uma educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o Opiário. Ensinou-lhe latim um tio beirão que era padre.

Como escrevo em nome desses três?... Caeiro, por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular o que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma deliberação abstracta, que subitamente se concretiza numa ode. Campos, quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê. (O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas cousas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de ténue à minha, é igual a esta, e o português perfeitamente igual; ao passo que Caeiro escrevia mal o português, Campos razoavelmente mas com lapsos como dizer «eu próprio» em vez de «eu mesmo», etc., Reis melhor do que eu, mas com um purismo que considero exagerado. O difícil para mim é escrever a prosa de Reis – ainda inédita – ou de Campos. A simulação é mais fácil, até porque é mais espontânea, em verso.)

Nesta altura estará o Casais Monteiro pensando que má sorte o fez cair, por leitura, em meio de um manicómio. Em todo o caso, o pior de tudo isto é a incoerência com que o tenho escrito. Repito, porém: escrevo como se estivesse falando consigo, para que possa escrever imediatamente. Não sendo assim, passariam meses sem eu conseguir escrever.(*)

Falta responder à sua pergunta quanto ao ocultismo. Pergunta-me se creio no ocultismo. Feita assim, a pergunta não é bem clara; compreendo porém a intenção e a ela respondo. Creio na existência de mundos superiores ao nosso e de habitantes desses mundos, em experiências de diversos graus de espiritualidade, subtilizando-se até se chegar a um Ente Supremo, que presumivelmente criou este mundo. Pode ser que haja outros Entes, igualmente Supremos, que hajam criado outros universos, e que esses universos coexistam com o nosso, interpenetradamente ou não. Por estas razões, e ainda outras, a Ordem Externa do Ocultismo, ou seja, a Maçonaria, evita (excepto a Maçonaria anglo-saxónica) a expressão «Deus», dadas as suas implicações teológicas e populares, e prefere dizer «Grande Arquitecto do Universo», expressão que deixa em branco o problema de se Ele é Criador, ou simples Governador do mundo. Dadas estas escalas de seres, não creio na comunicação directa com Deus, mas, segundo a nossa afinação espiritual, poderemos ir comunicando com seres cada vez mais altos. Há três caminhos para o oculto: o caminho mágico (incluindo práticas como as do espiritismo, intelectualmente ao nível da bruxaria, que é magia também), caminho esse extremamente perigoso, em todos os sentidos; o caminho místico, que não tem propriamente perigos, mas é incerto e lento; e o que se chama o caminho alquímico, o mais difícil e o mais perfeito de todos, porque envolve uma transmutação da própria personalidade que a prepara, sem grandes riscos, antes com defesas que os outros caminhos não têm. Quanto a «iniciação» ou não, posso dizer-lhe só isto, que não sei se responde à sua pergunta: não pertenço a Ordem Iniciática nenhuma. A citação, epígrafe ao meu poema Eros e Psique, de um trecho (traduzido, pois o Ritual é em latim) do Ritual do Terceiro Grau da Ordem Templária de Portugal, indica simplesmente – o que é facto – que me foi permitido folhear os Rituais dos três primeiros graus dessa Ordem, extinta, ou em dormência desde cerca de 1888. Se não estivesse em dormência, eu não citaria o trecho do Ritual, pois se não devem citar (indicando a origem) trechos de Rituais que estão em trabalho.(**)

Creio assim, meu querido camarada, ter respondido, ainda com certas incoerências, às suas perguntas. Se há outras que deseja fazer, não hesite em fazê-las. Responderei conforme puder e o melhor que puder. O que poderá suceder, e isso me desculpará desde já, é não responder tão depressa.

Abraça-o o camarada que muito o estima e admira.

Fernando Pessoa
14/1/1935

quarta-feira, junho 12

CAMUS

Je comprends ici ce qu´on appelle gloire: le droit d´aimer sans mesure. Il n´y a qu´un seul amour dans ce monde. Étreindre un corps de femme, c´est aussi retenir contre soi cette joie étrange qui descend du ciel vers la mer.

Albert Camus, in Noces (1936/37)

terça-feira, junho 11

EVIDÊNCIAS - XI

Um 11º soneto.

Marinha pousa a névoa iluminada,
e dentro dela os pássaros cantando
são crepitar das ondas doce e brando
na fímbria oculta e só adivinhada.

Verdes ao longe os montes na dourada
encosta pelos tempos deslisando,
suspensos pairam no frescor de quando
eram da sombra a forma congelada.

Ao pé de mim respiras. No teu seio,
como nas grutas fundas e sombrias
os animais pintados adormecem,

sereno seca um amoroso veio.
Um após outro hão-de secar-se os dias
na teia ténue que das eras tecem.


Jorge de Sena

1-3-1954 [Confirma-se o desfasamento devendo a referência feita, no dia 4 de Março de 1954, ao 11º soneto ser destinada aquele que na Poesia 1 surgirá a seguir com o nº 12.]

segunda-feira, junho 10

A sociedade dos negociantes

A sociedade dos negociantes pode definir-se como uma sociedade na qual as coisas desaparecem em proveito dos signos. Quando uma classe dirigente avalia as suas riquezas, já não pelo hectare de terra nem pelo lingote de oiro mas pelo número de cifras que idealmente correspondem a um certo número de operações de câmbio, dedica-se ao mesmo tempo a pôr uma certa espécie de mistificação como centro da sua experiência e do seu universo. Uma sociedade fundada nos signos é, na sua essência, uma sociedade artificial em que a realidade carnal do homem se acha mistificada. Ninguém então se admirará de que essa sociedade tenha escolhido, para dela fazer a sua religião, uma moral de princípios formais, e de que grave as palavras liberdade e igualdade tanto nas suas prisões como nos seus templos financeiros. Entretanto, não é impunemente que se prostituem as palavras. O valor hoje mais caluniado é certamente o valor da liberdade. Bons espíritos (…) fazem doutrina de ela não ser senão um obstáculo ao verdadeiro progresso. Mas se disparates tão solenes puderam ser proferidos foi porque, durante cem anos, a sociedade negociante fez da liberdade um uso exclusivo e unilateral, considerou-a mais como um direito do que como um dever e não receou pôr, tão frequentemente quanto pôde, uma liberdade de princípio ao serviço de uma opressão de facto.   


Albert Camus, in Discursos da Suécia (Conferência de 14 de dezembro de 1957 - Universidade de Upsala). 

LUÍS DE CAMÕES






































Busque Amor novas artes, novo engenho,
para matar-me, e novas esquivanças;
que não pode tirar-me as esperanças,
que mal me tirará o que eu não tenho.

Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes nem mudanças,
andando em bravo mar, perdido o lenho.

Mas, conquanto não pode haver desgosto
onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê.

Que dias há que n´alma me tem posto
um não sei quê, que nasce não sei onde,
vem não sei como, e doi não sei porquê.
_________________________________________


Let Love devise new ways, new wiles
to kill me, and new forms of disdain;
he´ll take away no hope of mine,
since he can´t take what I don´t have.

Look at the hopes that hold me up!
See how precarious my defenses!
For I, not fearing reverses or changes,
am tossed by the sea, having lost my ship.

Though disappointment can´t exist
where there´s no hope, there Love has hidden
a bane that kills and remains unseen,

for he placed in my soul some time ago
I don´t know what, nor where it was born,
nor how it got there, nor why it aches.

Luís de Camões  Sonnets and others poems”, edição bilingue, tradução e introdução de Richard Zenith. 

sábado, junho 8

EVIDÊNCIAS - X

1 de Março

Esta manhã, um 10º soneto. Suponho que apenas faltam mais dois.
Fui ao aeroporto despedir-me do Couvreur, que ia na viagem que seria para mim. Como o avião vinha atrasado, aproveitei para procurar o Zé que há tanto tempo não via. E li-lhe os dez sonetos, de que ele gostou, achando que a “coisa” ainda vai a meio.(…)

X

Rígidos seios de redondas, brancas,
frágeis e frescas inserções macias,
cinturas, coxas rodeando as ancas
em que se esconde o corredor dos dias;

torsos de finas, penugentas, frias,
enxutas linhas que nos rins se prendem,
sexos, testículos, que inertes pendem,
de hirsutas liras, longas e vazias

da crepitante música tangida,
húmida e tersa, na sangrenta lida
que a inflada ponta penetrante trila;

dedos e nádegas, e pernas, dentes.
Assim, no jeito infiel de adolescentes,
a carne espera, incerta, mas tranquila.


Jorge de Sena

27-2-54 [O soneto a que se refere Sena no “Diário” deve ser, na verdade, o 11º publicado em “Poesia I”].

Vadim Kholodenko

Gershwin: Cuban Overtures

sexta-feira, junho 7

EVIDÊNCIAS - IX

Esta manhã, um 9º soneto, obsceníssimo, mas demasiado formal, por demasiado “descritivo”. No entanto, é de certo modo o que eu queria fazer no sentido da violência. O Casais, a quem no café (a nossa “tertúlia” é este “tête-à-tête”, em que ele se torna muito mais o delicado que não quer, prudentemente, ser) o mostrei e ao de ontem, sentiu isso mesmo, porque disse: “Não gosto que se fale cerebralmente dessas coisas” (tomando cerebral pelo impressionismo descritivo). Vai proferir uma conferência sobre o Pessoa no Inst. Britânico; e ao Estorninho disse que para as influências inglesas era eu e não ele. Gostou muito do outro soneto. E achou, como eu acho, notável o artigo que o Lemos me mandou, e que vou rever para enviar ao C. Barreto.

IX

Com a mão brincando sem virtude ou vício,
o sexo antes do sexo pressentido,
conhecem-se as crianças, que, dormindo,
irão morrendo em sexo e juventude.

Da vã cidade o pálido bulício
em sonhos se dilui. Sombras sorrindo
afastam-se, crianças conduzindo
à virgindade ansiosa, austera e rude.

Pelas esquinas, no limiar da terra,
lá onde os sóis os prados ainda rasam
e as ervas vibram num tremor obscuro,

nocturno o espaço os milhares de olhos cerra,
sombras serão as crianças que se atrasam,
e a Graça, alheada, é o gesto ainda futuro.


Jorge de Sena

26-2-1954

quinta-feira, junho 6

L’été libertaire d’Albert Camus

«La liberté n’est pas un cadeau qu’on reçoit d’un Etat ou d’un chef, mais un bien que l’on conquiert tous les jours, par l’effort de chacun et l’union de tous.»
(...)

On comprend mieux pourquoi la gauche n’a jamais aimé Camus : trop proche des insoumis. La droite, elle, a espéré le récupérer - mais l’antitotalitarisme de l’écrivain, qui l’a mené à Bakounine, le père de l’anarchie, a débouché, comme nous le rappelle activement l’exposition de Lourmarin, sur la non-violence, jamais sur des interventions armées, fussent-elles disculpées par le droit d’ingérence. «Tuer les hommes ne sert à rien que tuer encore.» .

terça-feira, junho 4

EVIDÊNCIAS - VIII

Um 8º soneto (que deverá ocupar o lugar do 7º), um dos mais belos senão o mais belo – e que me emocionou tanto, que julguei que ia escrever logo outro. Mas era só emoção dele.

VIII

Amo-te muito, meu amor, e tanto
que, ao ter-te, amo-te mais, e mais ainda
depois de ter-te, meu amor. Não finda
com o próprio amor o amor do teu encanto.

Que encanto é o teu? Se continua enquanto
sofro a traição dos que, viscosos, prendem,
por uma paz da guerra a que se vendem,
a pura liberdade do meu canto,

um cântico da terra e do seu povo,
nesta invenção da humanidade inteira
que a cada instante há que inventar de novo,

tão quase é coisa ou sucessão que passa …
Que encanto é o teu? Deitado à tua beira,
sei que se rasga, eterno, o véu da Graça.

Jorge de Sena

22-2-1954

segunda-feira, junho 3

Encontro (ou paixão) inviável

A rua onde nasci, a cidade branca, o ar do tempo, as vizinhas apetecíveis, a mãe, o pai, o irmão, a gente do povo, o coro dos cães, a feira, a escassez, os avós, a terra, os frutos, as flores, os figos, a dor, a dança, o céu azul, o mar largo, a salmoira, a cesta, a eira, o milho, o poço, a nora, os bois, a prima, a morte, a miséria, …

A existência parada, os livros de quadradinhos, o fascínio pelo Brasil, a mobília, a luz, a mesa de trabalho, o bibe, a pia, a missa, as beatas, a procissão, o café, o cansaço da caminhada, a bola, o jogo, o livro sagrado, …


22/5/2012

LIBERDADE

"Finalmente, escolho a liberdade. Pois que, mesmo se a justiça não for realizada, a liberdade preserva o poder de protesto contra a injustiça e salva a comunidade. A justiça num mundo silencioso, a justiça dos mundos destrói a cumplicidade, nega a revolta e devolve o consentimento, mas desta vez sob a mais baixa das formas. É aqui que se vê o primado que o valor da liberdade pouco a pouco recebe. Mas o difícil é nunca perder de vista que ele deve exigir ao mesmo tempo a justiça, como foi dito.
 (...)

A liberdade é poder defender o que não penso, mesmo num regime ou num mundo que aprovo. É poder dar razão ao adversário."

Albert Camus, in Cadernos


domingo, junho 2

EVIDÊNCIAS VII

(…) Trabalhei no serviço o dia inteiro e, à tarde, escrevi em três horas de expectativa tenteada, um 7º soneto, que me parece o penúltimo das “evidências”.

25

Dei os sete sonetos (até agora) ao Casais (que já ouvira os 3 primeiros) a ler. Achou de “primeiríssima ordem” os 5 primeiros – com a reserva do final violento do 3º, que o choca -, menos bom o 6º, e o 7º ainda que muito bom, pareceu-lhe desviado da linha dos outros.

VII
 
Atentos sobre a terra ao que sem nós
connosco é o movimento em que levados
vamos criando qual somos criados
na recessão dos mundos fugitivos,

é nossa a luz que vemos, nossa a voz
com que a dizemos de astros apagados,
é nossa a carne com que estamos vivos,
e é dela a só ternura que abraçados

connosco esquece a distinção das cousas.
Humano escutarás, único vais
na numerosa multidão esquecida.

Ímpio de ti, se juras e não ousas
que teus vivos desejos se ergam tais
como em ti próprio aguarda uma outra vida.


Jorge de Sena
22-2-1954

sábado, junho 1

Pink Floyd

1128

Retomando um velho post de uma série que resultou da leitura entusiasmada da obra de Mattoso acerca do nosso primeiro rei para ilustrar como a força nunca está ausente da política nos momentos decisivos. E ilustrando também como, no plano simbólico e material, Portugal é uma nação antiga que apesar de todas as vicissitudes, existe desde 1128.

Na Batalha de São Mamede [24 de Junho de 1128], Afonso Henriques apoderou-se da herança de D. Teresa pela força. Segundo os Anais, prendeu os seus adversários, isto é, o conde Fernão Peres de Trava e os seus colaboradores; a tradição popular diz que prendeu também sua mãe, mas sabemos, por documentos autênticos, que pouco depois estavam ambos livres na Galiza. (…) Tinha então 19 anos. Podia tomar decisões pessoais. Mas os senhores que o apoiaram eram muito mais velhos, e governavam há muito tempo importantes territórios; entre eles estava, sem dúvida, o seu aio; sem o seu auxílio, Afonso não teria poder algum. Onde estava a verdadeira autoridade? Nas suas mãos ou nas dos nobres que com ele combatiam?
(…)
O papel da nobreza na Batalha de S. Mamede foi representado de forma simbólica no relato “popular” que dela fez a
Crónica Galego-Portuguesa (…) D. Afonso Henriques, derrotado logo no primeiro embate com Fernão Peres de Trava, foge do campo de batalha. Mas surge Soeiro Mendes. Censura-o pela fuga, como se fosse um adolescente, fá-lo regressar ao combate, e ajuda-o a vencê-lo. O significado social deste episódio é evidente: o fundador da nacionalidade devia o seu poder aos nobres.
(…)
Depois de expulsar o conde de Trava e os seus homens, Afonso Henriques concedeu, decerto, algumas benesses aos seus colaboradores, mas estas, se existiram, deixaram poucos vestígios na documentação até hoje preservada. Com efeito, os primeiros diplomas por ele emitidos não favorecem a nobreza mas a Igreja. Destinam-se, em primeiro lugar, a pobres eremitas e a um mosteiro quase desconhecido nas terras de Neiva e Barcelos. Dir-se-ia que o Infante pretende, antes de mais, obter a protecção divina por meio dos privilégios concedidos aos monges mais austeros.
(…)
Assim os primeiros anos do governo afonsino decorrem sob a dupla tutela dos ricos-homens nortenhos que asseguraram a vitória de São Mamede, e do clero que obedecia ao arcebispo de Braga.”

In “D. Afonso Henriques” de José Mattoso, ”3. Os primeiros passos de um jovem príncipe”,”A relação com a nobreza”, “A relação com o clero”, pgs. 47/49 (14).

Fotografia de Hélder Gonçalves