segunda-feira, janeiro 26

Cadernos de Camus - 4


Os meus sublinhados da leitura de juventude dos Cadernos salta, por razões que não sou capaz de explicar, para o Caderno nº5. A edição portuguesa dos "Livros do Brasil" (Colecção Miniatura), apresenta uma configuração diferente da francesa, das Edition Gallimard, como é explicado no volume intitulado Cadernos III: "Por motivos de ordem técnica, Carnets II foi dividido, na edição portuguesa, em dois volumes: Cadernos II (já publicado nesta colecção sob o número 162) e Cadernos III, que é o presente volume".

Os extractos do Caderno 5 que se seguem constam, pois, dos Cadernos III dizendo respeito ao período Setembro de 1945/Abril de 1948.
Estes extractos são, por vezes, mais longos do que nas anteriores incursões por este registo de leitura o que se deve ao facto de terem sido leituras posteriores a Abril de 68, provavelmente de 69/70, no período da crise académica na qual participei activamente.

"O ar de pobres diabos que têm as pessoas nas salas de espera dos médicos".

"Conversações com Koestler. O fim não justifica os meios senão quando a ordem de grandeza recíproca for razoável. Posso mandar Saint-Exupéry em missão mortal para salvar um regimento. Mas não posso deportar milhões de pessoas e suprimir toda a liberdade por um resultado quantitativo equivalente e estipular previamente o sacrifício de três ou quatro gerações.
- O génio: Não existe.
- A grande miséria do criador começa quando se lhe reconhece talento (Já não tenho coragem de publicar os meus livros)."

"1947
Como todos os fracos, as suas decisões eram brutais e de uma firmeza insensata".


"Que vale o homem? Que é o homem? Depois de tudo o que vi, enquanto eu viver, hei-de ficar sempre com uma desconfiança e uma inquietação fundamental a seu respeito."


"Terrorismo.
A grande pureza do terrorista estilo Kalyaev, é que para ele o homicídio coincide com o suicídio (cf. Savinkov: Recordações de um terrorista). Uma vida paga-se com outra vida. O raciocínio é falso, mas respeitável. (Uma vida ceifada não vale uma vida dada.) Hoje o homicídio por procuração. Ninguém paga.
1905 Kaliayiev: o sacrifício do corpo. 1930: o sacrifício do espirito."

"Que é impossível, a respeito de quem quer que seja, dizer que é absolutamente culpado e, por conseguinte, impossível pronunciar um castigo total."


"25 de Junho de 1947
Tristeza do êxito. A adversidade é necessária. Se tudo me fosse mais difícil, como dantes, teria mais direito a dizer o que digo. O que vale é que posso ajudar muitas pessoas - entretanto."

(No ano de 1947 Camus abandona a redacção do jornal Combat e publica o romance "A Peste" que o torna célebre o que, sem dúvida, explica esta reflexão acerca do êxito. Nos meus sublinhados verifico a curiosidade de ter colocado entre aspas a frase "A adversidade é necessária". Um sublinhado do sublinhado).

Extractos, in "Cadernos" (1964-Editions Gallimard), tradução de António Ramos Rosa, Colecção Miniatura das Edições "Livros do Brasil", Caderno nº5 ( Setembro de 1945/ Abril de 1948).










D. Januário


Tenho reflectido e acompanhado, de perto, a questão da imigração como resultado de meu envolvimento pessoal e profissional na questão do envelhecimento demográfico. Hoje o bispo D. Januário Torgal Ferreira, numa entrevista ao Público , mostra o seu desconforto com as decisões recentes do Governo acerca desta matéria.
O próprio tom do discurso mostra, mais do que desconforto, discordância face ao que considera uma política restritiva, na contemplação do acolhimento de imigrantes em Portugal, contida na regulamentação da legislação recentemente aprovada.
Tenho da acção da Igreja no terreno da acção social, em particular, nas áreas da saúde e do apoio aos imigrantes, uma ideia muito positiva. Julgo que este sentimento é geral e resulta de um efectivo trabalho da Igreja no terreno ao lado das pessoas que carecem verdadeiramente de ser apoiadas.
D. Januário crítica os que se intitulam de cristãos (nos partidos do governo) afirmando que "esperava que aparecessem igualmente com a capacidade de utopia e de exigência que faz parte dos critérios do Evangelho".
Face à questão de um discurso político que identifica "os imigrantes com o espectro do desemprego dos portugueses", D. Januário diz o essencial: "Essa lógica restritiva é de pessoas que não conhecem o terreno...". A Igreja, não tenham dúvidas, conhece-o melhor do que ninguém. É certamente mais difícil trabalhar no terreno do que fomentar o populismo...

domingo, janeiro 25

Cadernos de Camus - 3



Em sequência dos meus sublinhados da primeira leitura de juventude dos Cadernos aqui deixo os excertos que mereceram a minha admiração no Caderno nº 2 (22 de Setembro de 1937/Abril de 1939).

Assinalo que Camus ingressou no Partido Comunista Argelino em 1934, no mesmo ano do seu casamento com Simone Hié. Entre 1934 e 1937 conclui a licenciatura em Filosofia, separa-se de Simone Hié e, em 1937, é expulso (ou abandona voluntariamente) o Partido Comunista. Este breve apontamento biográfico serve para chamar a atenção para o facto de, por vezes, num futuro aprofundamento deste projecto, ser necessário acompanhar a "acção" com a biografia pois não foi por acaso que Camus adoptou a designação de "Cadernos" e não de "Diário". Camus tinha uma verdadeira aversão a retratar a sua vida pessoal não existindo nos Cadernos quase nenhumas referências directas às suas vivências pessoais. Mas elas estão lá em abundantes referências indirectas e aos seus projectos de trabalho.
Eis os meus sublinhados neste Caderno nº2 que, por sinal, são escassos.

"Huxley."No fim de contas, vale mais ser um burguês igual aos outros que um mau boémio ou um falso aristocrata, ou que um intelectual de segunda ordem…""
(Deveria eu ter acabado de ler "O Admirável Mundo Novo" e uma enorme emoção resultou dessa leitura.)

"Aquele que ama neste mundo e aquela que o ama com a certeza de se lhe juntar na eternidade. Os seus amores não estão no mesmo plano."

"O parzinho no comboio. Ambos feios. Ela agarra-se a ele, ri, excitada, seduzindo-o. Ele, de olhar sombrio, sente-se embaraçado por ser amado diante de toda a gente por uma mulher da qual não se orgulha."

"A Argélia, país a um tempo medido e desmedido. Medido nas suas linhas, desmedido na sua luz."


"Aquela manhã cheia de sol. As ruas quentes e cheias de mulheres. Vendem-se flores a todas as esquinas das ruas. E esses rostos de raparigas que sorriem."
(Esta frase, com outras que constam neste Caderno, e que não sublinhei, manteve-se muito viva na minha memória pois despertou, e desperta, as mais fortes ressonâncias afectivas da minha infância, no campo, e na pequena cidade de Faro, na distante província que era o Algarve rural dos anos 50.)

Extractos, in "Cadernos" (1962-Editions Gallimard), tradução de Gina de Freitas, Colecção Miniatura das Edições "Livros do Brasil", Caderno nº2 ( Setembro de 1937/ Abril de 1939).

José Viale Moutinho


Recebi dois livros e um opúsculo do JVM com dedicatórias. Agradeço a atenção e retribuo com esta entrada que leva nas entrelinhas um abraço. As publicações são um opúsculo respeitante ao "Centenário da Publicação do In Illo Tempore de Trindade Coelho" (Câmara Municipal de Coimbra), uma antologia intitulada "Os Melhores Contos Portugueses do Século XIX", editada pela Landy Editora , por sinal, um belo livro para o mercado do Brasil que as (os) amigas (os) brasileiras (os) gostarão de ler, podendo procurá-lo a partir desta referência e finalmente um livro de belíssimos poemas, editado pela Afrontamento, "Outono: entre as máscaras", que já li, e do qual reproduzo este.

quinze

preparo-me para o regresso, revejo notas, roupas, afino o]
olhar cansado, conto as moedas, apago o sol, bebo um]
copo de água morna, o comprimido do coração]
afoga-se-me na garganta, arrumo a cabeça, digo adeus]

ao romance: as vozes do trabalho, são sempre vozes,]
fazem-me vibrar as têmporas, esfrego as mãos secas,]
começo a levantar-me, a apagar os silêncios, a boca]
atraiçoa-me, o travo amargo é uma lâmina de carne,]

nos bolsos procuro, em vão, um lenço branco limpo, para]
dizer adeus só um lenço assim, ou uma lágrima, mas do]
corpo apenas se afasta a mão fechada, a mão que faz o]
cimento e afaga as chamas, a mão do finado, de cera,]

fecho a janela, tanto tempo esteve aberta, corro a cortina,]
apaga-se a encosta, desaparecem o penedo branco, as aves,]
as árvores, os pratos sujos do almoço, o sol, as vacas, essa]
sórdida incomodidade da contemplação: é o outono, afinal.]




Experimentar


Ontem (sábado) foi um dia dedicado ás experiências destinadas a fazer avançar um pouco mais a qualidade do absorto. Foram dados alguns passos - em parte invisíveis - com as ajudas preciosas do turing e do Helder Gonçalves testando a introdução de imagens com algumas fotografias de sua autoria. O resultado não foi absolutamente brilhante mas resolvemos não esconder as dificuldades. Obrigado.

sábado, janeiro 24

Entardecer Urbano

Entardecer Urbano


Helder Gonçalves



Cadernos de Camus 2



Não há qualquer dúvida acerca da edição portuguesa da "Livros do Brasil" ao contrário do que um participante dos Cadernos de Camus parece fazer crer. Por outro lado a "Breve Nota Prefacial", de António Quadros, inserta nos "Cadernos II", com todo o respeito, não acrescenta nada de essencial ao trabalho de Camus, nem ao actual projecto "Cadernos de Camus" que tem como objecto essencial, ao que me parece, o próprio Camus e a sua "aventura" de criador de um blog "avant la lettre". Anoto que cada volume da edição portuguesa é traduzido por uma personalidade diferente: Gina de Freitas, António Quadros e…António Ramos Rosa.

O meu segundo contributo, na fase experimental do blog, é a transcrição do conjunto das frases sublinhadas, no próprio livro, aquando da minha primeira leitura. As restantes foram transcritas na anterior participação. Desta forma "invento" um critério para esta série de excertos do 1º caderno (Maio de 1935 a 15 de Setembro de 1937).

"Abril.
Primeiros dias de calor. Sufocante. Todos os animais estão deitados. Quando o dia começa a declinar, a natureza estranha da atmosfera por cima da cidade. Os ruídos que nela se elevam e se perdem como balões. Imobilidade das árvores e dos homens. Pelas esplanadas, mouros de conversa à espera que venha a noite. Café torrado, cujo aroma também se eleva. Hora suave e desesperada. Nada para abraçar. Nada onde ajoelhar, louco de reconhecimento.

(Nesta página escrevi à mão em frente a Abril: "3-1968-Faro-Cais". O ambiente da Argélia natal de Camus tem algo a ver com o ambiente de Faro, a minha cidade natal. Devia ser o período das Férias de Páscoa. Curiosamente nas vésperas do "Maio de 68")

"Os sentidos e o mundo - Os desejos confundem-se. E neste corpo que aperto contra o meu, aperto também essa alegria estranha que vem do céu em direcção ao mar"

"Perna partida do carregador. A um canto, um homem novo que ri silenciosamente."

"Maio.
Estes fins de tarde em Argel em que as mulheres são tão belas."

"Intelectual? Sim. E nunca renegar. Intelectual=aquele que se desdobra. Isto agrada-me. Sinto-me contente por ser ambos. "Se isto se adapta?" Questão prática. É preciso meter mãos à obra. "Eu desprezo a inteligência" significa na realidade: "não posso suportar as minhas dúvidas". Prefiro manter os olhos abertos."

"Fevereiro.
A civilização não reside num grau mais ou menos elevado de requinte. Mas numa consciência comum a todo um povo. E essa consciência nunca é requintada. Ela é mesmo completamente sincera. Fazer da civilização a obra de uma elite, é identificá-la à altura, que é uma coisa diferente. Há uma cultura mediterrânea. Pelo contrário, não confundir civilização e povo."
(Fevereiro de 1936)

"Narrativa - o homem que não se quer justificar. A ideia que se faz dele é a preferida. Ele morre, único a guardar consciência da sua verdade. Futilidade dessa consolação."
(Uma nota de pé de página assinala: "Tema de L´Etranger.")

"Maio.
Erro de uma psicologia de pormenor. Os homens que se procuram, que se analisam. Para nos conhecermos bem, temos que nos afirmar. A psicologia é acção - não reflexão sobre si próprio. Definimo-nos ao longo da vida. Conhecermo-nos perfeitamente, é morrer."

"Os casais: o homem tenta brilhar diante de terceiros. A mulher imediatamente: "Mas tu também…", e tenta diminui-lo, torná-lo solidário da sua mediocridade."

"Mulheres na rua. A besta arrebatada do desejo que trazemos enroscada na cavidade dos rins e que se agita com uma suavidade estranha."

Extractos, in "Cadernos" (1962-Editions Gallimard), tradução de Gina de Freitas, Colecção Miniatura das Edições "Livros do Brasil", Caderno nº1 (Maio de 1935/Setembro de 1937).





sexta-feira, janeiro 23

Cadernos de Camus


Enviei a primeira contribuição para o José Pacheco Pereira que tomou a iniciativa de criar os Cadernos de Camus , blog provisório destinado a dar corpo a este aliciante projecto. Aqui reproduzo o texto enviado.
Releio o Caderno nº 1 (Maio de 1935/Setembro de 1937) e anoto os meus sublinhados vigorosos, aquando da primeira leitura, na segunda metade dos anos 60. Achei que nesta primeira abordagem não os devia ignorar. Eis o meu primeiro sublinhado:
"Jovem eu pedia às pessoas mais do que elas me podiam dar: uma amizade contínua, uma emoção permanente.
Hoje sei pedir-lhes menos do que podem dar: uma companhia sem palavras. E as suas emoções, a sua amizade, os seus gestos nobres mantêm a meus olhos o seu autêntico valor de milagre: um absoluto resultado da graça."
Tenho dificuldade em interpretar as razões que me levaram, com 20 anos, a fazer esta escolha mas seria capaz, hoje, de sublinhar de novo com acrescidas razões.
Com respeito às escolhas de JPP é curioso que os meus sublinhados de juventude se situam imediatamente antes e depois das citações escolhidas por JPP. Sublinhei a frase imediatamente anterior à citação de JPP com o título "A civilização contra a cultura", ou seja,
"As filosofias valem aquilo que valem os filósofos. Maior é o homem, mais a filosofia é verdadeira."
E ainda mais extraordinário a coincidência de ter sublinhado as citações imediatamente anterior e posterior daquela outra que JPP escolheu com o título: "Poder consolador do inferno", quais sejam:
"Combate trágico do mundo sofredor. Futilidade do problema da imortalidade. Aquilo que nos interessa, é de facto o nosso destino. Mas não "depois", "antes"."
E esta outra:
"Regra lógica. O singular tem valor de universal.
-ilógica: o trágico é contraditório.
-prática: um homem inteligente em certo plano pode ser um imbecil noutros."
As minhas escolhas de juventude podiam ser as minhas escolhas actuais. As minhas escolhas actuais vão mais além mas encaminham-se, quase sempre, para uma faceta da reflexão em que Camus olha a natureza e os outros com assumido desprendimento pelas coisas materiais sempre deixando transparecer um problema nunca resolvido na sua vida: a sua relação com o sucesso. Como transparece no texto final deste Caderno nº 1 quando escreve:
"…Não é necessário entregarmo-nos para parecer mas apenas para dar. Há muito mais força num homem que não parece senão quando é preciso. Ir até ao fim, é saber guardar o seu segredo. Sofri por estar só, mas por ter guardado o meu segredo venci o sofrimento de estar só. E hoje não conheço maior glória que viver só e ignorado. Escrever, minha profunda alegria!..."
Extractos, in "Cadernos" (1962-Editions Gallimard), tradução de Gina de Freitas, Colecção Miniatura das Edições "Livros do Brasil", incluindo: Caderno nº1 (Maio de 1935/Setembro de 1937), Caderno nº2 (Setembro de 1937 a Abril de 1939) e Caderno nº3 (Abril de 1939 a Fevereiro de 1942).


O peregrino do optimismo


A imagem é interessante. Ela surgiu algures a propósito da visita do PR a alguns concelhos do distrito de Aveiro. Li também que o PR tinha "saído animadíssimo de Sever do Vouga" e que estava farto do pessimismo. Ainda bem. Conheço o peregrino, admiro-o, sei que é capaz de enfrentar as dificuldades e de honrar os compromissos. Peregrinar tem o sentido de viajar por terras distantes, "por países longínquos". De facto uma viagem ao Portugal profundo (que pode muito bem ser no litoral) assume, de certo modo, o sentido de peregrinação. Tempos atrás fiz uma viagem em que percorri todos os concelhos raianos de Vila Real de Santo António a Caminha. Foi uma experiência extraordinária pois perante nós se apresenta um país onde se vê a TV espanhola, as rádios idem, as redes de telemóveis, idem, o comércio, idem…o que nos permite, sem contemplações, compreender as razões do nosso relativo atraso. O pequeno Portugal de antanho torna-se imenso, quando as gentes envelhecem, minguam as actividades agrícolas, as escolas ficam vazias, os Correios vão para as Junta, etc., etc.… Por estas e por outras o peregrino do optimismo corre o risco de se transformar no peregrino do pessimismo ao contrário. É que a estratégia do pessimismo não é inocente. Ela, nos nossos dias, como sempre na história, trás no bojo a aspiração ao poder dos salvadores da pátria. Os déspotas. Não lhes ponho sinal ideológico. Os déspotas para atingirem os seus fins costumam inventar uma ideologia. Claro que demora o seu tempo, se lhes derem tempo. Nos nossos regimes de democracia representativa o despotismo apresenta-se em todo o seu esplendor através das denúncias anónimas, das fugas de informação, com origens diversas, da corrupção consentida, da promiscuidade entre o poder político e os media, que desemboca nos julgamentos populares com as televisões no lugar das câmaras de gáz, … Em democracia é preciso saber suportar os incómodos da diferença, prezar a opinião oposta, apreciar a honorabilidade dos cidadãos, as suas ideias e realizações, mesmo discordantes, assim como as opções dos governos que nos antecederam. É penoso construir um caminho virtuoso de progresso, em democracia, por cima da humilhação e do assassinato de carácter, ético ou, no limite, físico dos adversários. Mas é a política tradicional! Não é? O peregrino do optimismo corre, assim, o risco de se transformar, contra os desejos dos seus amigos e da maioria esmagadora do povo português, num figurante desta estranha situação portuguesa: uma espécie de regresso a casa depois do funeral de um familiar de que não se gostava muito mas que, afinal, nos fazia muita falta…

Blog - Cadernos de Camus


Surgiu o prometido tiro de partida para este estimulante projecto de que se não sabe, ao certo, o destino. Esse é um dos seus encantos. Os diversos interessados que venham a ser participantes terão os seus objectivos a atingir. A maioria será, certamente, constituída por "franco atiradores" como eu. Alguns outros (poucos) serão especialistas na obra de Camus, porque não há muitos. A "matéria-prima" (os cadernos propriamente ditos) é de primeira qualidade e ajustada ao jogo. Os jogadores/participantes não os conheço à partida. Mas isso não tem grande importância. São participantes disponíveis, como eu, é quanto basta. Resta formar a equipa coordenadora que é com o JPP que, através do abrupto, foi o mentor da ideia. Pela minha parte utilizarei a velha edição portuguesa, um bocado amarelecida, mas em bom estado, recentemente restaurada e encadernada, com capa dura, através da ajuda preciosa da Manuela EP que acompanha estas manobras lá do Porto. Vou procurar dar um contributo que gostaria que contivesse uma componente de criatividade e originalidade através do trabalho de uma equipa a dois. Já fiz o convite. Hoje só queria reafirmar a minha disponibilidade. Nos próximos dias dou mais notícias acerca do tema.
.

quinta-feira, janeiro 22

Tradução 3


A carta de Roger Sulis publicada por JPP no abrupto esclarece, a partir de um artigo de Jorge de Sena, a questão da tradução que este realizou da obra poética de Cavafy (a partir do inglês). Acrescenta Sulis algumas considerações entre as quais uma referência ao longo poema de Sena "EM CRETA, COM O MINOTAURO" (1965) para comprovar, pelas palavras do próprio, a sua ignorância do grego.
Eis o "capítulo" integral do referido poema aliás extraordinariamente violento:

III
É aí que eu quero reencontrar-me de ter deixado]
a vida pelo mundo em pedaços repartida, como dizia]
aquele pobre diabo que o Minotauro não leu, porque,]
como toda a gente, não sabe português.]
Também eu não sei grego, segundo as mais seguras informações.]
Conversaremos em volapuque, já]
que nenhum de nós o sabe. O Minotauro]
não falava grego, não era grego, viveu antes da Grécia,]
de toda esta merda douta que nos cobre há séculos,]
cagado pelos nossos escravos, ou por nós quando somos]
os escravos de outros. Ao café,]
diremos um ao outro as nossas mágoas.]
….






quarta-feira, janeiro 21

Tradução 2


A poesia dos poetas brasileiros não precisa de tradução? Nalguns casos sim, noutros não. A mesma língua pode não ser entendida por todos os falantes dessa língua. Quando um português fala para uma plateia de brasileiros, não eruditos, fica sempre a sensação de que os ouvintes não estão entendendo nada. Quase se poderia exigir tradução. O contrário não é tão evidente. São os mistérios da língua. Vejam como Adélia Prado (Divinópolis, Minas Gerais, 1935) poeta brasileira da minha predilecção, em Ensinamento, sem necessidade de tradução, valoriza o amor "essa palavra de luxo".

Ensinamento


Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
"Coitado, até essa hora no serviço pesado".
Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.

Ideias para o futuro 3


No dia da abertura da BTL (Bolsa de Turismo de Lisboa) é interessante recordar que Portugal, apesar da sua pequena dimensão territorial e demográfica, ocupou em 2002, o 17º lugar mundial (10º lugar europeu) acolhendo 11,6 milhões de turistas estrangeiros, sendo França, Espanha e Itália, por esta ordem, os países líderes mundiais.
As receitas geradas pelo turismo, em Portugal, no ano 2002, atingiram os 6.260 milhões de euros, tendo crescido 2,2 %, face a 2001, a que correspondeu, um decréscimo de 4,1 % no número de turistas estrangeiros que visitaram o país.
Todos sabem que Portugal não pode apostar indefinidamente no turismo de massas, mas na qualidade e na inovação, criando programas e projectos turísticos de excelência, que permitam disputar os mercados emergentes e os segmentos com maior poder de compra dos mercados tradicionais.
O reconhecimento desta realidade não obsta, no entanto, a que surjam tentativas de impor projectos "turísticos" que ameaçam os parques naturais como, por exemplo, o da costa vicentina, ou regiões, ainda relativamente "pouco desenvolvidas", como o sotavento algarvio.
Para assumir, com eficácia, o desafio do crescimento contínuo e sustentável da actividade turística Portugal deve adoptar políticas transparentes nas áreas do ambiente, ordenamento do território e transportes, assim como um novo enquadramento institucional, retirando o turismo da tutela do Ministério da Economia, através da criação de um Ministério autónomo ou integrando-o no Ministério do Equipamento que tutele, entre outras áreas, os transportes e o ordenamento do território (modelo francês).
Só esse caminho permitirá que os poderes, público, privado e associativo, nas próximas décadas, coordenem esforços e articulem políticas, assumindo o turismo como uma actividade estratégica, decisiva no processo de desenvolvimento económico do país, no contexto do aprofundamento dos processos de integração europeia e de globalização.






terça-feira, janeiro 20

Tradução


Ainda as traduções que são como os amores na observação ágil de JPP no abrupto que, no fundo, nos diz que a primeira tradução da obra que nos chega ao conhecimento é, para nós, a mais marcante. É capaz de ser assim mesmo. Diria que o problema é não sermos capazes de entender todas as línguas. É uma lástima esta incapacidade, esta saudável incapacidade, que me faz lembrar uma frase de Camus (mais uma vez) que dizia que "a imortalidade é uma ideia sem futuro". Não vale a pena querer abranger todo o conhecimento, ser capaz de tudo comparar, acerca de todos os acontecimentos emitir opinião fundamentada … mas talvez valha a pena tentar.
Para que o tema da tradução não fique sem ilustração aqui está o poema "Autobiographia Literaria" de Frank O´ Hara, publicado pela Editora "Assírio & Alvim", traduzido por José Alberto Oliveira:

Quando eu era criança
brincava sozinho
num canto do pátio
da escola.

Eu odiava bonecas e
odiava jogos, os animais
eram inamistosos e os pássaros
levantavam voo e fugiam.

Se alguém me procurava
escondia-me atrás de uma
árvore e gritava "Eu sou
um órfão".

E agora aqui estou, o
centro de toda a beleza!
escrevendo estes poemas!
quem diria!

segunda-feira, janeiro 19

POEMA DE EUGÉNIO DE ANDRADE


No dia do seu 81º aniversário



A JORGE DE SENA,
NO CHÃO DA CALIFÓRNIA

É por orgulho que já não sobes
as escadas? Terás adivinhado
que não gostei desse ajuste de contas
que foi a tua agonia?
É só por isso que não vieste
este verão bater-me à porta?
Não sabes já
que entre mim e ti
há só a noite e nunca haverá morte?

Não te faltou orgulho, eu sei;
orgulho de ergueres dia a dia
com mãos trementes
a vida à tua altura
-mas a outra face quem a suspeitou?
Quem amou em ti
o rapazito frágil, inseguro,
a irmã gentil que não tivemos?

Escreveste como o sangue canta:
de-ses-pe-ra-da-men-te.
e mostraste como não é fácil
neste país exíguo ser-se breve.
Talvez o tempo te faltasse
para pesar com mão feliz o ar
onde sobrou
um juvenil ardor até ao fim.

No que nos deixaste há de tudo,
desde o copo de água fresca
ao uivo de lobos acossados.
Há quem prefira ler-te os versos,
outros a prosa, alguns ainda
preferem o que sobre a liberdade
de ser homem
foste deixando por aí
em prosa ou verso, e tangível
brilha
onde antes parecia morta.

Às vezes orgulhavas-te
de ter, em vez de uma, duas pátrias;
pobre de ti: não tiveste nenhuma;
ou tiveste apenas essa
que te roía o coração
fiel às palavras da tribo.

Andaste por muito lado a ver se o mundo
era maior que tu - concluíste que não.
Tiveste mulher e filhos portuguesmente
repartidos pela terra,
e alguns amigos,
entre os quais me conto.
E se conta o vento.

Agosto, 1978









VÍCTOR CONSTÂNCIO - entrevista


A questão do envelhecimento da população tem sido abordada, no nosso país, de forma pontual, sem consequências práticas relevantes. Nem o discurso político nem os programas dos governos a consideram em todas as suas consequências. Vítor Constâncio, na entrevista hoje divulgada no Público, conseguiu ser bastante explícito: para combater o declínio da Europa é necessária a "disponibilidade dos países europeus para aceitarem mais imigrantes, implica que os europeus tenham de trabalhar mais anos do que hoje e supõe também um aumento da natalidade. As três coisas vão ser necessárias, se quisermos que a Europa não entre em declínio e tenha dificuldades crescentes para resolver os seus problemas sociais." Estas são questões estruturantes que exigem abordagens sérias e respostas determinadas de todas as forças sociais e políticas. Trata-se de uma questão nacional que deveria merecer um estudo integrado, multidisciplar e transversal que, a partir de um diagnóstico rigoroso, apontasse medidas a médio e longo prazo.

Cavafy-2


A minha referência a Constantino Cavafy suscitada pelo abrupto resultou do interesse pela obra do poeta que conheço, como leitor, na tradução de Jorge de Sena. Pelo que me têm dito alguns mais profundos conhecedores de Cavafy a melhor tradução será a de Marguerite Yourcenar e Constantion Dimaras na obra "Apresentação Crítica de Constantin Cavafy, seguida da tradução integral dos seus poemas" (Edições Gallimard, 1958). A minha apreciação acerca da qualidade das traduções em apreço não resulta, no entanto, de uma comparação mas da minha sensibilidade como leitor interessado. A obra de Cavafy merece, em qualquer caso, ser divulgada e se der origem a polémica tanto melhor. O mesmo se pode aplicar a Jorge de Sena ao qual pretendo continuar a dedicar bastante atenção e espaço. Uma das questões mais chocantes da nossa história, aliás, é o desprezo pelos grandes criadores - os fazedores de obra em todos os domínios - entre os quais se inclui Sena que, não esqueçamos, se exilou e, após a sua morte, ficou sepultado nos Estados Unidos.

domingo, janeiro 18

Turismo (mais uma vez)


Alguns inquéritos recentes revelam que os portugueses, em 2004, colocam a realização de viagens de lazer como primeira prioridade entre as suas expectativas de consumo. Surpreendente, ou talvez não, este indicador dá razão aqueles que, como nós, defendem a importância estratégica do turismo, e do lazer em geral, no desenvolvimento do país. Atente-se, entretanto, que esta é uma actividade recente, quer enquanto fenómeno social, quer cultural ou económico.
Foi em França, no ano de 1936, sob os auspícios do Governo da Frente Popular, logo seguida, no mesmo ano, pela Bélgica, que as "férias pagas" foram consagradas, sendo mesmo criado o Ministério dos Lazeres, resgatando para as políticas próprias dos regimes democráticos, o modelo de uma maior intervenção do Estado no domínio do que hoje entendemos ser o Lazer Social.
Após a segunda guerra mundial, este movimento foi precursor da democratização do Turismo, permitindo a milhares de trabalhadores e suas famílias descobrirem outros territórios, verificando-se uma autêntica transumância no mês de férias, materializando o que hoje conhecemos por "turismo de massas".
No entanto o apetrechamento do país para corresponder a este desafio coloca muitas questões que estão na ordem do dia sendo a mais relevante a do "desenvolvimento sustentável". O PR está preocupado com o tema e vai abordá-lo na Presidência Aberta, nos finais deste mês. Vamos tentar acompanhar essas preocupações, as questões que serão colocadas e as respostas do Governo e dos diversos parceiros, privados e públicos, com interesses nesta área de actividade.

sábado, janeiro 17

Cavafy


O abrupto publica um poema de Cavafy (poeta grego, nascido em Alexandria, no Egipto, a 17 de Abril de 1863; morreu em Atenas, em 1933). O que não entendi foi a necessidade de JPP justificar a publicação do original em grego. Aqui se publicam o mesmo poema na tradução (melhor no meu ponto de vista) de Jorge de Sena, a nota que o acompanha e o poema que se lhe segue:

O mar pela manhã


Deixem-me estar aqui. Que também eu contemple,
um pouco, a natureza - o mar, nesta manhã,
o céu azul sem nuvens, de um e de outro a luz
onde se alonga amarelada praia.

Deixem-me estar aqui. Que eu pense que isto vejo
(não é que o vi um instante, quando aqui parei?)
Tudo isto só - e não, também aqui, visões,
memórias, e os espectros do prazer antigo.

(1915)

Eis a nota de Jorge de Sena escreveu, a propósito deste poema, inserta na edição "90 e mais quatro poemas", Edições ASA:

"Este poema de 1915, que Cafavy fez preceder imediatamente o seu primeiro poema explicitamente erótico, é, por isso e pelo que diz, extremamente interessante, para lá da beleza excepcional que é a sua. O mar e as praias de Alexandria reaparecerão, indirectamente, noutro dos poemas pessoais, no fim da vida, o nº 153. Mas o importante é a declaração, que a obra confirma, de quanto a Natureza, em si, não interessa a Cavafy (logo as suas visões se interpõem); e também o modo como o poeta se refere às aventuras do seu passado, tratando-as de "espectros", pois que é precisamente da realidade que vai dar a esses espectros, que a sua poesia pessoal erótica se vai imediatamente construir."

Já agora o poema erótico a que se refere a nota:

À porta do café


Algo que ouvi junto de mim desviou-
-me a atenção para a porta do café.
E vi o corpo esplêndido que parecia
como se o próprio Eros o fizera com perícia extrema -
modelando-lhe com prazer a simetria dos membros,
erguendo ao alto a estátua do seu torso,
modelando o rosto dele com afecto,
e do toque deixando dos seus próprios dedos
um jeito na testa, nos olhos, e nos lábios.

(1915)


O discurso dos assassinos


Ouve-se e não dá para acreditar. O actual governo democrático de Israel adopta as práticas mais odiosas do fanatismo. Num contexto, é certo, em que o fanatismo surge de todos os lados. Mas Israel é uma democracia. Os governos democráticos que adoptam como programa a morte dos adversários (ou mesmo inimigos) não são dignos de apreço. Essas práticas são próprias das ditaduras. Ou eram? Hoje Mário Soares, no Expresso, a propósito da morte de Bobbio, refere que este grande pensador italiano, em 1987, preconizava "o aprofundamento democrático, no plano internacional, no pressuposto (que hoje se revela incerto) de que são as ditaduras que fazem as guerras e as democracias que asseguram a paz…" Os governantes democráticos que adoptam como programa a humilhação dos povos, incluindo o seu povo, não são dignos de apreço. O mesmo se pode dizer daqueles governos, e governantes, que praticam a suprema hipocrisia de fazer crer que defendem o interesse da comunidade e a paz, fazendo a guerra, e a prática do bem, fazendo o mal. Mas também como dizia um clássico: "É verdadeiramente real fazer o bem e ouvir dizer mal de nós". Se no Médio Oriente se está a viver uma situação de guerra que seja declarada a guerra. Em qualquer circunstância, concordo com Camus que, num texto de Novembro de 1948, dizia: "mais vale uma pessoa enganar-se, sem assassinar ninguém e permitindo que os outros falem, do que ter razão no meio do silêncio e pilhas de cadáveres."