domingo, julho 23

Apostilha à história das instituições (o dia seguinte)

Posted by Picasa Peixe Vermelho – Desenho, realizado em Maio de 2001, de autoria de meu filho (pelos seus 10 anos.)

Para o Manuel Maria.
Rasgar o mapa dos poderes:
sorrateiramente, evitando mostrar que sabes,
dar a palavra ao servo e fazê-lo brilhar;
deixar o senhor, falando, tão solene, sombrar;
não infringir à luz do sol nenhuma norma clara,
mas agir antes pela astúcia da razão:
deturpar certos preceitos orais da tradição
e fazer com a cautela uma vergonha rara;
estilhaçar o uso das ferramentas morais,
usando-as,
usando a honra como a espada dos samurais;
ler livros proibidos às horas de refeição,
desgostar os teus amigos sendo tão solitário,
tomar a dose de individualismo diário,
falar alto ao medo, solto, pregá-lo no chão;
acreditar que os últimos podem ser primeiros,
que o calor, apertando, pode mudar os janeiros,
que a brisa, querendo, pode acalmar o verão,
que há revoltas para lá da escassez de pão.
Rasgar o mapa das estradas
e deixar a cada desvario que aconteça,
aguardar pelos perfumes nas encruzilhadas,
partir, venturoso, sem esperar que amanheça
aproveitando que as guardas dormem de noite;
escrever, sendo dextro hábil, com a mão esquerda
para pelo pasmo criar a oportunidade
de ler com ambas enterradas em corpos aflitos;
saltar da cama à noite para acudir aos gritos
aos quais te juntas noutro leito mesmo ao lado,
pedindo ao teu parceiro perdão do teu pecado
e ao teu pecado perdão pelo tempo perdido,
confesso incapaz do risco de ser mal-querido;
rasgar a solidão escrevendo letras de trovas,
e com elas ao mundo dar, mentindo, boas novas
e a todos os povos, ignaros, novos continentes:
nada importa, se acreditam, quanto tu mentes;
amar apaixonadamente todos os miseráveis
e comer chocolates belgas, dos puros, ao lanche,
aflito com a queda do cacau nas bolsas mundiais,
e com os maus desenvolvimentos desiguais;
aflito, tu que nada vês na economia,
que não ligas os pobres e a barriga vazia,
preocupas-te lindamente,
fazes por sofrer dores duras como as do parto,
saudoso das antigas crises existenciais,
das que lembram livros e boa filosofia,
antes, durante e depois de um jantar farto.
Se a literatura acabar, logo se verá.
Haja horrores:
podendo tirar deles sofrimento aceitável,
alto! alto! alerta! eu espero estar cá.
Porfírio Silva

In A Varanda das Azenhas
(Poema dedicado a meu filho.)

1 comentário:

hfm disse...

Fico-me com os desenhos do teu filho e vou aprendendo.