quinta-feira, abril 21

Poema numa esquina de Paris



Dezenas e dezenas de pessoas passam ininterruptamente ao longo do passeio.
Umas para lá.
Outras para cá.
Umas para cá.
Outras para lá.
Mas cada uma que passa
tem de fazer na esquina um pequeno rodeio
para não se esbarrar com o par que aí se abraça.
Olhos cerrados, lábios juntos e ardentes,
tentam matar a inesgotável sede.
Através dos seus corpos transparentes
lê-se na esquina da parede:

DANS CETTE PLACE A ÉTÉ TUÉ
MAURICE DUPRÉ
HÉROS DE A RÉSISTENCE.
VIVE LA FRANCE

António Gedeão

"Linhas de Força" - 1967

A Condição Humana


Charlotte Corday após o assassinato de Marat
[1860, óleo sobre tela, 2030 x 1540 mm, Musée des Beaux-Arts, Nantes, France- Quadro de Paul Baudry (1828-1886) representando o assassinato de Marat por Charlotte Corday no dia 13 de Julho de 1793, eliminando um dos mais importantes defensores da política de Terror instaurada pelos jacobinos em França em 10 de Março de 1793]. In O Portal da História

Em 5 de Julho de 2004, em “citações -8”, fiz o retrato do que haveria de ser a governação de Santana Lopes na continuidade, aliás, do governo de José Manuel Barroso.

É surpreende, para mim próprio, a nitidez com que antecipo os traços característicos da situação social originada pela governação de direita que, em Portugal, para espanto de toda a Europa civilizada, foi conduzida por um partido “social democrata” em aliança com a extrema direita.

Original não tanto pelas designações dos partidos de governo, em si, mas pelo vazio dos seus desígnios políticos salvo a submissão à estratégia da administração Bush que haveria de culminar com essa extraordinária operação de elevar ao mais alto cargo da União Europeia um “peão” dessa mesma administração americana.

Começam a vislumbrar-se, no horizonte, os sinais dessa estratégia que se destina a enfraquecer a UE senão mesmo a liquidá-la. Ver-se-á, a breve prazo, o que resultará de uma eventual vitória do “não” no referendo ao Tratado Constitucional que se realizará, no mês de Maio, em França.

Eis o que escrevi em 5 de Julho de 2004:

A vida quotidiana continua apesar da crise política. As famílias trabalham (as que têm trabalho), transportam-se, tratam da vida o melhor possível.

Os últimos dois anos levaram muitas famílias ao desespero. Quem, por dever de ofício, tem conhecimento das mágoas dos cidadãos, maltratados pelas injustiças das políticas desta maioria, terá uma palavra decisiva no pleito eleitoral.

Ver-se-á então quanta crueldade foi praticada nas políticas sociais; quanta incúria no respeito pelos mais fracos para favorecer os mais fortes; quanta desigualdade foi estimulada por acção ou omissão.

Nunca a tragédia desta política, que não foi mais do que um intervalo, será absolutamente assumida. Digo intervalo porque antevejo os argumentos do novo paladino da governação neo-liberal: antes de nós o dilúvio, depois de nós o inferno. A nós, afinal, "não nos deixam governar".

É a estratégia da vitimização. O Dr. Santana Lopes vai tentar fazer passar-se como vítima de uma "intentona" cujos contornos o oligarca da Madeira, à sua maneira boçal, já enunciou.

É um momento de tragicomédia em que a política pura, a que eleva acima da defesa dos interesses particulares o interesse geral, ameaça ser submersa pela pura traficância de interesses, arremesso de ódios e promessas populistas.Ver o episódio de hoje, na RTP-1, com a entrevista "oportuna" de Judite de Sousa a Pedro Santana Lopes.

A citação do dia: "São precisos holocaustos de sangue e séculos de história para provocar uma imperceptível modificação da condição humana. Tal é a lei. Durante anos tombam cabeças em série, reina o Terror, proclama-se a Revolução e consegue-se no fim substituir a monarquia legítima pela monarquia constitucional."

(Albert Camus, "Cadernos" - Caderno nº 5 - Setembro 1945/Abril de 1948 - Livros do Brasil)

Gota de Água



Eu, quando choro,
não choro eu.
Chora aquilo que nos homens
em todo o tempo sofreu.
As lágrimas são as minhas
mas o choro não é meu.

António Gedeão

In "Movimento Perpétuo"-1956

quarta-feira, abril 20

Joana de Arc


Joana de Arc - 1864, aguarela sobre cartão, 533 x 571 mm, Tate Gallery, Londres, Grã Bretanha - Ilustração de Dante Gabriel Rossetti (1828 - 1882) de Joana de Arc (1412-1431).
In O Portal da História

As “Citações-7”, de 4 de Julho de 2004, foram apresentadas como se falassem por si próprias.

Camus escreveu as frases citadas no final da 2ª Guerra Mundial quando ninguém sabia, ao certo, quando iria acabar.

Em plena crise política, no verão de 2004, não fui capaz de escrever uma palavra para as introduzir. Nem sempre somos capazes de encontrar as palavras certas... Mas há verdades intemporais que são duras como punhos ...

"1 de Setembro de 1943.Aquele que desespera dos acontecimentos é um cobarde, mas aquele que tem esperança na condição humana é um louco."
*
"Em período de revolução, os melhores é que morrem.A lei do sacrifício faz com que finalmente sejam sempre os cobardes e os prudentes a ter a palavra, já que os outros, ao dar o melhor de si próprios, a perderam."

(Albert Camus, "Cadernos" - Caderno nº 4 - Janeiro 1942/Setembro 1945 - Livros do Brasil)

Sujidades

“Estudo conclui que a sujidade ajuda ao desenvolvimento físico e mental das crianças” – já o tinha descoberto desde criança.

"Somos uma espécie que se adapta à sujidade e que beneficia dela” – Leia-se como se quiser!

In “Público” (só títulos pois me recuso a assinar a versão on-line).

terça-feira, abril 19

"Glosa à chegada de Godot"



Do que não desespero é muito pouco
fugaz e breve e, sem que se repita,
de não se repetir, retorna sempre.
.....

É desespero tudo, mas repete-se
tão sem se repetir, tão sempre de outros,
tão noutros e com outros que esperamos
o mais que ainda virá. Às vezes nada.
O Sim. O Não. Um simples hesitar.
Às vezes muito pouco. O pouco. O muito.
O desespero é fácil tal como esperar.

“Glosa à chegada de Godot” (1959), in Post-Sriptum

Jorge de Sena

MAQUIAVEL


Retrato de Maquiavel (1469-1527)
(detalhe), por Santi di Tito (séc. XVI) No Portal da História

Em 2 de Julho de 2004, em “citações-6”, afloro a “tese cínica”, que circulava em alguns meios políticos mais imaginativos, a qual nunca subscrevi.

Mas, tudo visto e ponderado, atentos os desenvolvimentos posteriores, andavam avisados os estrategos, com aprofundadas leituras de Maquiavel, que defenderam aquela tese.

A solução de governo Santana Lopes, sem convocação de eleições antecipadas, adoptada no verão de 2004, fez o seu caminho com os resultados conhecidos. Eis o que escrevi, em 2 de Julho de 2004, em sua antecipação.

A convocação de eleições legislativas antecipadas não é, como parece à primeira vista, uma vantagem óbvia para a esquerda. A situação da economia, o caos na administração e o mais que se verá, tornam a tarefa de qualquer futuro governo quase impossível.

Por outro lado Santana Lopes é um candidato temível se o PSD se apresentar às eleições liberto de compromissos com o PP de Paulo Portas. Segundo alguns estrategos, com leituras aprofundadas dos clássicos, incluindo Maquiavel, a esquerda teria muito a ganhar se Jorge Sampaio indigitasse o Dr. Pedro Santana Lopes para formar governo.

Conforme a actual maioria proclama ficava garantida a "tranquilidade pública" (Santana dixi) e o prosseguimento do projecto político aprovado pelo eleitorado em 2002. (Parece, em boa verdade, ter sido já há uns 20 anos!).

Para a direita seria um momento de glória a que se seguiria uma governação de direita populista repleta de contrariedades e contradições no seio do PSD. Para a esquerda seria uma folga para se reorganizar e esclarecer a questão da liderança no PS.

Reparem como a expectativa de eleições, a breve prazo, recriou a unidade no PS em torno de Ferro Rodrigues. Todos sabemos que se trata de uma falsa unidade.

Assim como a unidade em torno de Santana Lopes é uma falsa unidade. O "cheiro" do poder torna os "partidos governamentais" túmulos em que os silêncios se oferecem em troca do adiamento das disputam autênticas.Ao contrário do que parece a não convocação de eleições antecipadas pode ser, a médio prazo, vantajosa para o PS e para a esquerda.

Mas os perigos de um populismo sem freio, protagonizado por um governo Santana Lopes + Paulo Portas, sem legitimação eleitoral, farão Jorge Sampaio, muito provavelmente, tomar a opção contrária.

Mas, dizem alguns, que não é nada linear a consideração de que a eventual opção de Jorge Sampaio por eleições antecipadas seja, ao contrário do que possa parecer, um benefício para a esquerda.

As citações do dia: "Ter a força de escolher o que preferimos e ficarmos nesta posição. Caso contrário mais vale morrer."


"O tempo não corre depressa quando o observamos. Sente-se vigiado. Mas tira partido das nossas distracções. Talvez haja mesmo dois tempos, o que observamos e o que nos transforma."


(Albert Camus, "Cadernos" - Caderno nº 4 - Janeiro 1942/Setembro 1945 - Livros do Brasil)

segunda-feira, abril 18

Pranto pelo dia de hoje



Nunca choraremos bastante quando vemos
O gesto criador ser impedido
Nunca choraremos bastante quando vemos
Que quem ousa lutar é destruído
Por troças por insídias por venenos
E por outras maneiras que sabemos
Tão sábias tão subtis e tão peritas
Que não podem sequer ser bem descritas.

Sophia de Mello Breyner Andresen

In "Livro Sexto" - 1962

Fotografia de Helder Gonçalves

"apesar de tudo"


O general De Gaulle a discursar aos microfones da B.B.C. em 18 de Junho de 1940. Fotografia, Junho de 1940 - Portal da História Nesse dia o general De Gaulle, secretário de estado da Guerra no governo de Paul Reynaud, proclamou em Londres que não aceitava o Armistício, pedido pelo marechal Pétain ao governo alemão de Hitler, tornando-se assim o chefe dos franceses livres.

No primeiro dia de Julho de 2004, em “Citações-5”, retomo o tema da importância dos protagonistas na luta política. Tinha-se tornado, para mim, definitivamente claro que a mudança da chefia do governo de José Manuel Barroso para Santana Lopes, sem a realização de eleições legislativas, constituiria um desastre. Eis o que escrevi nesse dia:

Os comentários na imprensa acerca da crise política enfatizam, quase sempre, a questão das ideias (ou a falta delas) dos candidatos a "chefes". Mas o verdadeiro debate está centrado na sua personalidade propriamente dita.

Discutem-se as pessoas não se discutem as ideias e os programas. Não é por acaso. É que a política é, antes de tudo, uma escolha de pessoas. De nada serve um bom programa interpretado por um "chefe" imbecil. Mas um "chefe" honrado e competente pode partir de um programa mediano e chegar a um "bom governo".

Reparem como foi conduzida uma campanha sórdida, mas bem organizada, para liquidar Ferro Rodrigues. É um caso emblemático da importância dos "chefes". Ora Ferro Rodrigues obteve, nas eleições de 2002, um resultado excepcional, levando o PS perto da vitória em condições desvantajosas. Nas eleições seguintes, as europeias, o PS obteve a maior vitória eleitoral de sempre e, no entanto, Ferro Rodrigues é apresentado, por muitos analistas e, mesmo, por alguns dirigentes socialistas como um perdedor.

Ferro Rodrigues é, pois, um "vencedor/perdedor". Paradoxal. Mas essa encruzilhada extrema em que se encontra é o que lhe dá a força. Quem conheça o homem, como eu, sabe que não desistirá, não fará "fretes" e, mais importante, nunca abandonará "o barco". O povo entende.

Vejam, ao contrário, como um "vencedor", o Dr. Durão Barroso, ao abandonar o governo, se transformou num perdedor. O mesmo já tinha acontecido com o Eng.º Guterres. A importância dos "chefes" avulta pela perda que pode assumir dimensões dramáticas: os "chefes são glorificados pela morte em combate, o sacrifício supremo, (Sousa Franco) ou são odiados pela desistência inexplicável, a suprema cobardia. (Durão Barroso). Cito os casos mais recentes.

Na verdade nunca se discute o programa do governo ou do partido (isso é uma ilusão) o que se discute, na "praça pública" é a personalidade do "chefe". As qualidades e os defeitos dos "chefes" são apreciados, até à exaustão, pela opinião pública. Os cidadãos sabem que o programa "está lá" mas que pode ser "outro" conforme o "chefe" que o executa.

Por isso Durão Barroso não pode ser substituído por Santana Lopes mesmo que o programa da coligação PSD/PP seja o mesmo. Santana Lopes nunca cumprirá o que Durão Barroso prometeu aos portugueses nas eleições e ele próprio não cumpriu.

O que no presente os cidadãos querem é participar na criação de um consenso majoritário na sociedade em torno de uma ideia capaz de relançar a esperança no futuro de Portugal. E esse caminho em democracia é, apesar de tudo, o da escolha, em eleições livres, dos homens para governar.

A citação do dia: ""Nietzche. - Nada de decisivo se constrói, a não ser sobre um "apesar de tudo""

(Albert Camus, "Cadernos" - Caderno nº 4 - Janeiro 1942/Setembro 1945 - Livros do Brasil)

domingo, abril 17

Frank O´Hara


Autobiographia Literaria
by Frank O´Hara

When I was a child
I played by myself in a
corner of the schoolyard
all alone.

I hated dolls and I
hated games, animals were
not friendly and birds
flew away.

If anyone was looking
for me I hid behind a
tree and cried out "I am
an orphan."

And here I am, the
center of all beauty!
writing these poems!
Imagine!

*

Imaginem!
Réplica ao poema “Autobiographia Literaria”
de Frank O’ Hara

Quando era pequeno
tinha vergonha
e na escola
que ficava perto de casa
não sabia ao certo
o meu lugar

Brincava sozinho
imaginando o cheiro dos brinquedos
na feira do Carmo
e no caminho de casa
sonhava alto
a caminhar

Eu não cultivava os amigos
excepto dois e admiráveis
como os gestos ternos
de meus pais
que me ensinaram a liberdade
de esperar

Caminhei por entre
os silêncios
das gentes à minha volta
que esperavam de mim
o curso superior
e talvez casar

O lugar da minha infância
agora sou eu próprio,
imaginem!

Lisboa, 26 de Março de 2003

(A título excepcional, e porque é Abril, um poema que escrevi em homenagem a Frank O´Hara antecedido do poema original, em inglês, que inspirou o meu. A fotografia é de Helder Gonçalves e como todas as que tenho publicado, de sua autoria, é um original que a sua amizade me permite publicar.)

ALL-STARS


All-Stars - Fotografia de Margarida Ramos

Esta fotografia dos velhos All-Stars que o meu filho colocou em exposição no seu quarto tem merecido uma busca enorme a partir do Google. Eis como uma relíqua que se poderia transformar em lixo se transforma num objecto de culto.

Those are "The" old All Star shoes, from my son, exposed on his bad room. Google found this photo and since then it deserves a big request from many google users. Surprising, how something that could be considered as carbage, can becames a symbol.

sábado, abril 16

SULFATOS


O ex-ministro da saúde regressou ao Grupo Mello. O ex-ministro da saúde, no Grupo Mello, não terá nada a ver com os negócios da saúde do Grupo Mello. Vai dedicar-se ao negócio dos sulfatos!

Se tivesse sido ministro dos sulfatos regressaria, ao Grupo Mello, para tratar dos negócios da saúde e não teria nada a ver com o negócio dos sulfatos!

Estão a perceber?

ACONTECEU-ME



Eu vinha de comprar fósforos
e uns olhos de mulher feita
olhos de menos idade que a sua
não deixavam acender-me o cigarro.
Eu era eureka para aqueles olhos.
Entre mim e ela passava gente como se não passasse
e ela não podia ficar parada
nem eu vê-la sumir-se.
Retive a sua silhueta
para não perder-me daqueles olhos que me levavam espetado
E eu tenho visto olhos!
Mas nenhuns que me vissem
nenhuns para quem eu fosse um achado existir
para quem eu lhes acertasse lá na sua ideia
olhos como agulhas de despertar
como íman de atrair-me vivo
olhos para mim!
Quando havia mais luz
a luz tornava-me quase real o seu corpo
e apagavam-se-me os seus olhos
o mistério suspenso por um cabelo
pelo hábito deste real injusto
tinha de pôr mais distância entre ela e mim
para acender outra vez aqueles olhos
que talvez não fossem como eu os vi
e ainda que o não fossem, que importa?
Vi o mistério!
Obrigado a ti mulher que não conheço.

Almada Negreiros

Publicado em Almada: O Escritor - O Ilustrador, 1993

sexta-feira, abril 15

"a própria política é feita da mudança dos homens"


Foto de amistad

No último dia de Junho de 2004, em “Citações-4”, ensaio a mais curta e violenta crítica à eventual mudança de governo, sem a realização de eleições legislativas, com a mais longa citação de Camus assinalada a negro:

Voltando à questão dos "chefes". A mudança dos homens é a essência da política. A citação do dia é um pouco mais longa do que tem sido habitual. Mas parece-me que ilustra, com muita acuidade, uma faceta da crise política actual. A mudança do "chefe" da actual maioria representa uma profunda alteração da situação política.

Não é um detalhe que possa encontrar solução num arranjo de bastidores quando todos sabemos que "a própria política é feita da mudança dos homens".

E esta mudança é demasiado estruturante da própria política para não ser legitimada pelo mais nobre dos mecanismos da democracia representativa: o voto popular.

"Curioso. Historiadores inteligentes investigando a história de um país empregam todas as suas forças a preconizar tal política, realista por exemplo, a que se devem, segundo lhes parece, as maiores épocas desse país.

Apontam eles próprios todavia que esse estado de coisas não pôde durar porque imediatamente um outro homem de Estado ou um novo regime vieram e tudo estragaram.Nem por isso deixam de defender uma política que não resiste à mudança dos homens, enquanto se sabe que a própria política é feita da mudança dos homens. É que só pensam ou escrevem para a sua época.

Alternativa para os historiadores: cepticismo ou uma teoria política que não dependa da mudança dos homens (?)."

(Albert Camus, "Cadernos" - Caderno nº 4 - Janeiro 1942/Setembro 1945 - Livros do Brasil)

PARA O ZÉ


Para o Marcelo do pentimento com amizade

Divago, quando o que quero é só dizer
te amo. Teço as curvas, as mistas
e as quebradas, industriosa como abelha,
alegrinha como florinha amarela, desejando
as finuras, violoncelo, violino, menestrel
e fazendo o que sei, o ouvido no teu peito
para escutar o que bate. Eu te amo, homem, amo
o teu coração, o que é, a carne do que é feito,
amo sua matéria, fauna e flora,
seu poder de perecer, as aparas de tuas unhas
perdidas nas casas que habitamos, os fios
da tua barba. Esmero. Pego tua mão, me afasto, viajo
pra ter saudade, me calo, falo em latim pra requintar meu gosto:
"Dize-me, ó amado da minha alma, onde apascentas
o teu gado, onde repousas ao meio-dia, para que eu não
ande vagueando atrás dos rebanhos de teus companheiros".
Aprendo. Te aprendo, homem. O que a memória ama
fica eterno. Te amo com a memória, imperecível.
Te alinho junto das coisas que falam
uma coisa só: Deus é amor. Você me espicaça como
o desenho do peixe da guarnição de cozinha, você me guarnece,
tira de mim o ar desnudo, me faz bonita
de olhar-me, me dá uma tarefa, me emprega,
me dá um filho, comida, enche minhas mãos.
Eu te amo, homem, exatamente como amo o que
acontece quando escuto oboé. Meu coração vai desdobrando
os panos, se alargando aquecido, dando
a volta ao mundo, estalando os dedos pra pessoa e bicho.
Amo até a barata, quando descubro que assim te amo,
o que não queria dizer amo também, o piolho. Assim,
te amo do modo mais natural, vero-romântico,
homem meu, particular homem universal.
Tudo que não é mulher está em ti, maravilha.
Como grande senhora vou te amar, os alvos linhos,
a luz na cabeceira, o abajur de prata;
como criada ama, vou te amar, o delicioso amor:
com água tépida, toalha seca e sabonete cheiroso,
me abaixo e lavo teus pés, o dorso e a planta deles
eu beijo.

Adélia Prado, In "Um Jeito e Amor"
Bagagem

Fotografia de Helder Gonçalves

Esquecimentos

O "Director Geral dos Impostos", Paulo Macedo, esqueceu-se de pagar, em tempo, uma prestação da Contribuição Autárquica. Já a ex-Ministra das Finanças, que o nomeou, se tinha esquecido de declarar ao fisco, em tempo, uma outra “coisa qualquer”.

Todos nos esquecemos sempre de alguma coisa. Mas quem assume funções de topo na administração fiscal não pode esquecer-se de nenhuma das suas obrigações fiscais. A verdade é que, nestas questões de impostos, só o BCP não se esquece nunca de nada!

Mas nada me leva a simpatizar com esta campanha que o DN está conduzir contra Paulo Macedo. Repugnam-me estes métodos conduzidos por mãos ocultas visando atingir fins que bem podiam dispensar a humilhação pública dos cidadãos honestos que aceitam desempenhar funções dirigentes na administração pública.

Estes são os métodos do populismo. O governo PS não pode pactuar com eles. Portanto das três uma: ou o governo demite o "Director Geral dos Impostos", por falta de confiança política, assumindo o ónus da decisão, ou o defende publicamente, reiterando-lhe a confiança política, ou ele se demite por falta de condições para o exercício da função.

"Diário do Governo" - 9

quinta-feira, abril 14

Imbecilidades


Fotografia de amistad

Uma das questões que se colocavam, com mais acuidade, no verão de 2004, era a da capacidade política de Santana Lopes para chefiar o governo. Ainda para mais no contexto de uma sucessão de tipo “dinástica”, ou seja, sem a realização de eleição – nem legislativas, nem internas no próprio PSD.

Pedro Santana Lopes foi, simplesmente, nomeado primeiro ministro. Cumpriu-se a legalidade mas esqueceu-se a legitimidade. De facto “há imbecilidades de tal quilate...”

Eis o que escrevi nas “Citações-3, em 29 de Junho de 2004

Claro que o "bom governo" não se reduz às qualidades do "chefe". O "bom governo" exige um bom programa e uma equipa competente. Vejam o caso do governo chefiado por Durão Barroso. É um governo legítimo resultante dos resultados das eleições de Março de 2002.

Mas o governo não integrou, salvo os líderes de ambos os partidos, nenhuma das personalidades que, durante a campanha eleitoral, foram apontadas como futuros ministros. Nem António Borges, nem Dias Loureiro, nem outros que foram insinuados, ou mesmo apresentados, como valores seguros.

O governo de Durão Barroso é fraco e incompetente. A equipa que Durão Barroso reuniu no governo foi fortemente condicionada pela coligação com o PP. Estes dois anos de governo mostraram que o PP é um partido predador. O Dr. Durão Barroso abandonou, à primeira oportunidade, o governo porque percebeu que não seria capaz de o remodelar sem se desembaraçar do PP.

Os quadros social-democratas competentes, que qualificariam um governo de centro direita, nunca integrarão um governo de coligação com o PP do Dr. Paulo Portas. Os governos de coligação PDD/PP, mesmo que resultem de uma inverosímel "iniciativa presidencial", serão sempre governos fracos e incompetentes.

A tendência, no caso da formação de um governo assente na actual maioria, é para a qualidade baixar ainda mais. A competência do governo está na qualidade das mulheres e dos homens que o compõem. Qualidades humanas, políticas e técnicas. O governo de Durão Barroso está repleto de gente sem qualidade humana, sem tacto nem experiência política e eivado de incompetência técnica.

É difícil baixar ainda mais o nível mas Santana Lopes, se for primeiro-ministro, com ou sem eleições, vai conseguir. O primeiro a perceber esta realidade é o Dr. Jorge Sampaio. Durão Barroso não sei se percebe mas, em Bruxelas, não terá que escolher os comissários. O Dr. Santana Lopes tem como tradição escolher equipas fracas e incompetentes. Para ele é-lhe indiferente o governo que chefiar pois pensará sempre "no lugar que se segue".

A citação do dia: "Montesquieu. "Há imbecilidades de tal quilate, que seria preferível uma imbecilidade ainda maior.""

(Albert Camus, "Cadernos" - Caderno nº 4 - Janeiro 1942/Setembro 1945 - Livros do Brasil)

Uma Ida ao Teatro e Carmen Miranda


Carmen Miranda

No sábado passado fui ao teatro. Não a um teatro qualquer. Recebi uns dias antes um telefonema do Joaquim Teixeira, do Grupo de Teatro Lethes, de Faro, convidando-me a assistir, na Biblioteca Orlando Ribeiro, em Telheiras, à apresentação da peça “À Distância de um Lenço”, de Manuel Córrego.

Aquele grupo de teatro foi a minha segunda escola e os tempos que nele vivi, pela mão do Dr. Emílio de Campos Coroa, foram uma luz que se atravessou a minha vida.

Assisti à bela representação da uma comédia – alta – com a presença do próprio dramaturgo- Manuel Córrego, que eu conhecia por ter sido galardoado, em 1998, com um prémio do concurso anual de peças teatrais promovido pelo INATEL.

Foi bonita a representação que o autor da peça no fim, em breves palavras, assinalou com emoção. O teatro anda sempre onde menos se espera. Ali estiveram, na minha frente, uma dúzia de actores de qualidade que me fizeram identificar com a minha própria experiência passada.

A sala estava composta. Fiquei feliz por ver que a obra iniciada pelo Dr. Coroa continua pelas mãos do seu filho, do Joaquim Teixeira e tantos outros que se arriscam, por puro amor à arte, a pisar um palco.

A minha celebração do Dia Mundial do Teatro, embora tardia, ficou completa com este blog que descobri a propósito do aniversário de Carmen Miranda acerca da qual discorrem: “A 9 de fevereiro de 1909, nascia em Marco de Canavezes, distrito do Porto, Portugal, Maria do Carmo Miranda da Cunha - Carmen Miranda. Dois anos depois, a família já vivia no Rio de Janeiro, onde o pai se estabeleceu como barbeiro. Sob a influência da irmã Olinda, a jovem Maria do Carmo aprenderia a costurar e a conhecer e amar a nossa música.”

quarta-feira, abril 13

"Há sempre uma filosofia para a falta de coragem"


Camus

No verão de 2004 a crise política aberta pelo abandono de José Manuel Barroso conduziu a uma situação propícia à avaliação da governação de direita e às mais diversas especulações acerca do caminho a tomar para a conjuração da crise. No centro do “furacão” ficaram o PR e o Secretário Geral da PS, à época, Ferro Rodrigues.

Discorro neste post, e nos seguintes, acerca do “bom governo”, dos “chefes” e dos “programas”. Mais à frente aventuro-me numa especulação em torno da estratégia presidencial.

Diga-se que sempre acreditei, ingenuamente, que o PR convocaria eleições antecipadas em Julho de 2004. Enganei-me. Em 28 de Junho de 2004, na abébia vadia, sob o título “Citações-2”, escrevi:

O "bom governo" o que é? A crise aberta pela nomeação de Durão Barroso para Presidente da Comissão Europeia pode ser uma grande oportunidade para debater o tema do "bom governo".

Não falo de formalidades mas da coisa em si mesma. Tomando em consideração a ideologia de juventude do "putativo futuro" PCE a primeira condição do "bom governo " é a do timoneiro ou, na linguagem mais vernácula do maoismo, a do "grande timoneiro".

O "bom governo" carece de um "bom primeiro-ministro". As suas qualidades intrínsecas não são, no entanto, suficientes pois, em regime democrático, a bondade do líder carece de ser sufragada pelo povo. É a maçada das eleições.

Nas ditaduras um grupo de conjurados impõe, a golpe, o "chefe", enquanto nas democracias representativas, os eleitos são uma emanação do sufrágio popular.

Em democracia as escolhas não resultam das qualidades intrínsecas do "chefe" exaltadas pelo apoio "unânime" dos seus apaniguados. Este é o modelo populista que se aproxima tanto mais da ditadura quanto a democracia é transformada aos olhos das massas numa desnecessidade por "não resolver nada" ou "por não valer a pena votar" (quantas vezes já ouvimos estas palavras nos últimos dias!).

A verdadeira democracia exige a coragem tranquila dos homens que querem ser livres e estão dispostos a correr o risco de lutar pela liberdade.

A citação do dia: "Há sempre uma filosofia para a falta de coragem."

(Albert Camus, "Cadernos" - Caderno nº 4 - Janeiro 1942/Setembro 1945 - Livros do Brasil)

POEMA PARA GALILEU



Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano,
aquele teu retrato que toda a gente conhece,
em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce
sobre um modesto cabeção de pano.
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha Florença.
(Não, não, Galileo! Eu não disse Santo Ofício.
Disse Galeria dos Ofícios.)
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da requintada Florença.
Lembras-te? A Ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza della Signoria...
Eu sei...Eu sei...
As Margens doces do Arno às horas pardas da melancolia.
Ai que saudade, Galileo Galilei!

Olha. Sabes? Lá em Florença
está guardado um dedo da tua mão direita num relicário.
Palavra de honra que está!
As voltas que o mundo dá!
Se calhar até há gente que pensa
que entraste no calendário.

Eu queria agradecer-te, Galileo,
a inteligência das coisas que me deste.
Eu,
e quantos milhões de homens como eu
a quem tu esclareceste,
ia jurar - que disparate, Galileo!
- e jurava a pés juntos e apostava a cabeça
sem a menor hesitação -
que os corpos caem tanto mais depressa
quanto mais pesados são.

Pois não é evidente, Galileo?
Quem acredita que um penedo caia
com a mesma rapidez que um botão de camisa ou que um seixo de praia?

Esta era a inteligência que Deus nos deu.

Estava agora a lembrar-me, Galileo,
daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo
e tinhas à tua frente
um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo
a olharem-te severamente.
Estavam todos a ralhar contigo,
que parecia impossível que um homem da tua idade
e da tua condição,
se estivesse tornando num perigo
para a Humanidade
e para a Civilização.
Tu, embaraçado e comprometido, em silêncio mordiscavas os lábios,
e percorrias, cheio de piedade,
os rostos impenetráveis daquela fila de sábios.

Teus olhos habituados à observação dos satélites e das estrelas,
desceram lá das suas alturas
e poisaram, como aves aturdidas - parece-me que estou a vê-las - ,
nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas.
E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era tudo tal qual
conforme suas eminências desejavam,
e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal
e que os astros bailavam e entoavam
à meia-noite louvores à harmonia universal.
E juraste que nunca mais repetirias
nem a ti mesmo, na própria intimidade do teu pensamento, livre e calma,
aquelas abomináveis heresias
que ensinavas e escrevias
para eterna perdição da tua alma.
Ai, Galileo!
Mal sabiam os teus doutos juízes, grandes senhores deste pequeno mundo,
que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de braços,
andavam a correr e a rolar pelos espaços
à razão de trinta quilómetros por segundo.
Tu é que sabias, Galileo Galilei.
Por isso eram teus olhos misericordiosos,
por isso era teu coração cheio de piedade,
piedade pelos homens que não precisam de sofrer, homens ditosos
a quem Deus dispensou de buscar a verdade.
Por isso estoicamente, mansamente,
resististe a todas as torturas,
a todas as angústias, a todos os contratempos,
enquanto eles, do alto inacessível das suas alturas,
foram caindo,
caindo
caindo
caindo
caindo sempre,
e sempre,
ininterruptamente,
na razão directa dos quadrados dos tempos.

António Gedeão

Obra Poética
Edições João Sá da Costa
2001

Fotografia de Helder Gonçalves