Ele sempre considerou a “cena” (doméstica) como uma experiência pura de violência, a tal ponto que, onde quer que ouça uma, tem sempre medo, como uma criança tomada de pânico por causa das discussões dos pais (foge sempre dela, descaradamente). A cena tem uma repercussão assim tão grave porque põe a nu o cancro da linguagem. O que a cena diz é que a linguagem é impotente para fechar a linguagem: engendram-se as réplicas sem qualquer outra conclusão que não seja a do assassínio; e é por estar inteiramente voltada para esta última violência que a cena, todavia, nunca assume (pelo menos entre pessoas “civilizadas”) o facto de ser uma violência essencial, uma violência que tem prazer em se alimentar: terrível e ridícula, à maneira dum homeostato de ficção científica.
(Passando para o teatro, a cena domestica-se. O teatro doma-a quando a obriga a terminar: uma paragem da linguagem é a maior violência que se pode exercer na violência da linguagem.)
Ele tolerava mal a violência. Esta disposição, embora permanentemente verificada, continuava a ser para ele bastante enigmática; mas ele sentia que a razão dessa intolerância devia ser procurada por este lado: a violência organizava-se sempre como cena: a mais transitiva das condutas (eliminar, matar, ferir, dominar, etc.) era também a mais teatral, e era, em suma, a esta espécie de escândalo semântico que ele resistia (pois não se oporá o sentido por natureza ao acto?); ele não podia deixar de entrever bizarramente em toda a violência um nó literário: quantas cenas conjugais não poderão ser agrupadas segundo o modelo de um grande quadro de pintura: A Mulher Expulsa ou ainda O Repúdio? Toda a violência é afinal a ilustração dum estereótipo patético e, bizarramente, a maneira absolutamente irrealista pela qual se decora e sobrecarrega o acto violento – maneira ao mesmo tempo expeditiva e grotesca, activa e cristalizada – era o que o levava a ter pela violência um sentimento que ele não conhecia em mais nenhuma ocasião: uma espécie de severidade (pura reacção de amanuense, sem dúvida).”
"Roland Barthes por Roland Barthes" -
(Fragmento 1 de 2, pag. 16)
Edição portuguesa: "Edições 70"
(Passando para o teatro, a cena domestica-se. O teatro doma-a quando a obriga a terminar: uma paragem da linguagem é a maior violência que se pode exercer na violência da linguagem.)
Ele tolerava mal a violência. Esta disposição, embora permanentemente verificada, continuava a ser para ele bastante enigmática; mas ele sentia que a razão dessa intolerância devia ser procurada por este lado: a violência organizava-se sempre como cena: a mais transitiva das condutas (eliminar, matar, ferir, dominar, etc.) era também a mais teatral, e era, em suma, a esta espécie de escândalo semântico que ele resistia (pois não se oporá o sentido por natureza ao acto?); ele não podia deixar de entrever bizarramente em toda a violência um nó literário: quantas cenas conjugais não poderão ser agrupadas segundo o modelo de um grande quadro de pintura: A Mulher Expulsa ou ainda O Repúdio? Toda a violência é afinal a ilustração dum estereótipo patético e, bizarramente, a maneira absolutamente irrealista pela qual se decora e sobrecarrega o acto violento – maneira ao mesmo tempo expeditiva e grotesca, activa e cristalizada – era o que o levava a ter pela violência um sentimento que ele não conhecia em mais nenhuma ocasião: uma espécie de severidade (pura reacção de amanuense, sem dúvida).”
"Roland Barthes por Roland Barthes" -
(Fragmento 1 de 2, pag. 16)
Edição portuguesa: "Edições 70"
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