terça-feira, outubro 25

PREVINAM-SE


Napoleão Bonaparte


O “povo de esquerda” está muito crítico em relação à candidatura presidencial de Mário Soares. Dizem que, após 30 anos de democracia, Soares representa “zero”, “nada”, o “vazio”, o contrário da renovação. Que, tendo sido já presidente, a candidatura de Soares fere o espírito republicano. Que, além do mais, a idade do candidato é um estorvo.

Os velhos são uns inúteis. Simbolizam a falta de energia, a irreparável antiguidade, a fatalidade da morte, uma insuperável maçada. Temo que alguns dos meus amigos de esquerda não gostem do que direi daqui até ao fim do processo das presidenciais – lá para 15 de Janeiro de 2006.

Não tem importância nenhuma pois também já se aborreceram com o que eu disse, nos últimos tempos, acerca do pontificado do Papa João Paulo II. Os velhos são o futuro mas, no ocidente, é difícil admitir que exerçam actividade profissional e, muito menos, que exerçam o poder.

Sabemos todos o que está em jogo nestas eleições presidenciais. A partir do momento em que Cavaco Silva se apresentou como candidato elas transformaram-se numa escolha entre duas personalidades com ideias e comportamentos muito distintos: Soares e Cavaco. Pela simples razão de que eles foram protagonistas cimeiros de acontecimentos relevantes na história portuguesa contemporânea.

Mas convém ter presente que as eleições, em democracia, são actos normais que não comportam escolher entre revolução e situação. Uma parte do “povo de esquerda” e, em particular, os intelectuais vivem na nostalgia dos “amanhãs que cantam” mas, para sua tristeza infinda, as “eleições burguesas” são simples escolhas pacíficas e livres de uma entre várias alternativas.

Soares e Cavaco representam, respectivamente, o “centro esquerda” e o “centro direita” mas as suas personalidades são diametralmente opostas. Soares é um cosmopolita, um “homem do mundo”. Cavaco é um provinciano, um “homem da terra”.

O que não deixa de ser interessante é os intelectuais de esquerda denegrirem as características de Soares contra os fundamentos das suas próprias convicções. Soares é um político puro, protagonista de duas aquisições decisivas na história portuguesa contemporânea: a democracia representativa e a plena adesão à UE. Soares intervém na política por prazer e, ao contrário de Cavaco, já foi tudo o que nela se pode ser.

Cavaco é um académico e tecnocrata, protagonista de um período de 10 anos de governo, com obra feita e controversa. Afirma-se o contrário do político profissional, mas nunca deixou de ser o que afirma nunca ter sido. Mostra enfado pelo protagonismo político que, para ele, é um dever mais que um prazer, um sacrifício pessoal a que “a salvação da pátria” obriga.

O que querem, afinal, à esquerda, os defensores da liberdade e da democracia? Querem “muscular” a democracia pela acção de um Presidente com poderes reforçados? Preferem um Presidente autoritário que dê voz aos detractores da política e dos partidos? Querem, afinal, bailar ao ritmo dos cantos de sereia de todos os populismos que sempre, com escândalo, repudiam?

São extraordinárias as revelações com que este período pré eleitoral nos tem presenteado.

Uma significativa parte da esquerda e, em particular, as elites, mostra não ter feito, afinal, as pazes com Mário Soares.

Eanes e os destroços do PRD, ao contrário de todas as evidências, não estão enterrados e os seus sobreviventes acotovelam-se dividindo-se entre o apoio a Alegre e a Cavaco.

Manuel Alegre sonha com um PS de “esquerda” com laivos populistas (“não preciso do apoio do PS para nada!”).

Em torno de Cavaco surge um movimento plebiscitário tentando reduzir as eleições presidenciais a um “sim ou não” ao “candidato único” ou ao “único candidato” que pode salvar Portugal. Não é, pois, de estranhar a natureza das gafes de Cavaco na primeira declaração pública, não encenada, que proferiu.

Elas são um pequeno sinal revelador da natureza do seu carácter e pensamento autoritários: à primeira pergunta respondeu como se já fosse presidente, mesmo antes da eleição – tão o seu subconsciente as dispensa – e, de seguida, referiu-se à Assembleia da República, o coração do poder político democrático, como a “Assembleia Nacional”, designação da caricatura democrática da instância legislativa da ditadura.

Previnam-se!

1 comentário:

Carlos Alberto disse...

Não podia estar mais de acordo.