sexta-feira, dezembro 9

CRUCIFIXO - UM "CORPUS ABERTO"

Posted by Picasa Scarlett Johansson

"Um crucifixo, mesmo numa escola pública, não significa que o Estado passe a ser dependente de qualquer confissão religiosa ou que o ensino público tenha carácter religioso". António Bagão Félix, PÚBLICO, 9-1-2-2005


A cruzada, nos jornais, do Dr. Bagão, em prol dos crucifixos nas escolas, fez-me aflorar à memória algumas coisas terríveis que não é oportuno lembrar agora. Mas apeteceu-me, como católico, fazer um exercício de memória.

Não me lembro se, na minha escola primária, na minha sala de aula, havia crucifixo. Não me lembro se era obrigatório rezar no início das aulas. Foi, é verdade, há muitos anos. Mas lembro-me das professoras e professores, a começar pela D. Pessanha (1ª e 2º classes), que era muito tradicionalista e autoritária.

Nunca levei reguadas dela mas era assustador assistir ao suplício dos que as apanhavam. Seria diante do crucifixo? Só uma vez fui humilhado quando me mandou para casa, antes do fim das aulas, por ter sujado os dedos de tinta, resultado da incontinência daquelas canetas de aparo que se alimentavam mergulhando-as nos tinteiros incrustados nas carteiras.

Lembro-me de uma professora jovem, cujo nome esqueci, que ensinava de maneira diferente, pois era uma época de introdução de novos métodos; lembro-me de entender a aritmética e de sentir prazer com ela (a aritmética); vejo o Prof. Bica, exímio tocador de acordeão, nos corredores; sinto a D. Maria José que, na 4ª classe, fez com que tudo me parecesse fácil, incluindo os exames de admissão que fiz dois, um ao liceu, outro à escola técnica.

Eu adorava a D. Maria José, suponho que ela me retribuía a adoração, não soube mais dela, pois ao longo dos anos sempre me queria ver, acho que faleceu, mas trago o seu rosto e a sua voz sempre comigo.

Lembro-me do Padre Henrique, das actividades religiosas fora da escola e das explicações já no liceu, do seu sorriso bondoso, palavra culta, fluente e humanista desenhando a figura de um grande pedagogo solidário. Mas do crucifixo do Dr. Bagão nicles.

Não sei se o Dr. Bagão corre por conta própria, ou se tem mandato da hierarquia da igreja, mas tanto se dá, pois cada um é livre de expressar livremente a sua opinião e não sofrer penitência pelo exercício dessa liberdade. A prática é a prática! As palavras são as palavras. Somos coerentes, ou seja, as palavras e as práticas são coincidentes! Não é Dr. Bagão?

Aqui vai uma réplica, de minha lavra, à frase do “Público”, citada em epígrafe, extraída do meritíssimo texto “pró crucifixo” do Dr. Bagão:

“Um Dr. Bagão Félix colocado, mesmo num ministério das finanças, não significa que o Estado passe a ser dependente de qualquer confissão religiosa ou que a banca e as seguradoras abandonem a busca do lucro em favor de objectivos filantrópicos”.

Como já estão fartos de saber ando em leituras e releituras de Camus. Talvez muitos não saibam qual o tema da tese de Camus para obter o seu diploma de estudos superiores: “Métaphysique chrétienne et néoplatonisme, entre Plotin e Saint Augustin”.

Camus era, pois, um intelectual que estudara o catolicismo e que tinha pelos católicos mais do que simpatia: “le sentiment d´une partie liée. C´est un fait qu´ils s´intéressent aux mêmes choses que moi”. Mas acrescentava, marcando as distâncias: “À leur idée, la solution est evidente, elle ne l´est pas pour moi.

Feitas estas ressalvas, para que não me julguem, sem provas, incréu, ou me lancem à fogueira, ou excomunguem, por citar gente de pouca fé, deixo o meu contributo, via Albert Camus, para o meritório debate do crucifixo.

E porque não dedicá-las ao Dr. Bagão, hoje, em que, se não erro, passam exactamente três anos sobre o dia em que deu posse à Dra. Catalina (e eu estava lá), para que todos possamos reflectir acerca dos temas da verdade e da mentira, da vergonha e do arrependimento, da sinceridade e do cinismo, da justiça e da liberdade.

É o cristianismo que explica o bolchevismo. Conservemos o equilíbrio para não nos tornarmos assassinos.

Verdade deste século: À força de vivermos grandes experiências, tornamo-nos mentirosos.

Há quem se remanseie numa mentira como os que se refugiam na religião.

Cristãos felizes: Guardaram a graça para si próprios e deixaram-nos a caridade.

(Albert Camus, Sublinhados dos “Carnets”, por mim próprio)

"Quando se meditou muito sobre o homem, por ofício ou vocação, acontece-nos sentirmos nostalgia dos primatas. Esses ao menos não têm segundas intenções." - p. 15

Eu moro no bairro judeu, ou o que assim se chamava até ao momento em que os nossos irmãos hitlerianos limparam tudo. Que barrela! Setenta e cinco mil judeus deportados e assassinados, é a limpeza pelo vácuo. Admiro esta aplicação, esta paciência metódica! Quando não se tem carácter, é preciso ter método.” - p. 24

(Albert Camus, Sublinhados de “A Queda”, por Ana Alves).

Citações in “Cadernos de Camus”

4 comentários:

Anónimo disse...

Não sou católico nem professo nenhuma religião política ou do outro mundo, não sou agnóstico nem ateu, o ateu é um agnóstico disfarçado quando se qualifica como tal, nomeando o nada em que crê. O nada não existe por sua própria definição, e nomeia-o, seguindo uma metafísica subreptícia, quem subjectivamente se qualifica como ateu.

Sou um sem-deus, um ser que não precisa de metafísica para se justificar ou para qualquer outro fim, a quem ninguém nem nada pode cortar o direito à indignação, porque esse pertence ao íntimo de cada um. Nem a maior opressão política ou religiosa (ambas se confundem), nem as opiniões sobre a "pobreza de espírito" expandidas por uma sociedade generalizada e afinal, ela mesma, maniqueísta.

A arte, se não tem nada a ver com aquilo que me assacou, já pode o ter com a lucidez de olhar o mundo e a vida, uma lucidez muito mais desconfortável (e corajosa) do que não querer pensar como nos surgem diante dos olhos, sem o comodismo de extrapolar aquele desconforto para um deus, ou para um qualquer fluido agnóstico ou para o nada dos ateus, ou mesmo para os rasteiros clubes da partidarite, em suma para a metafísica latu sensu ou metafórico.

Estou-me nas tintas para o politicamente correcto e direi sempre, enquanto puder, aquilo que penso, e quando não mo deixarem (para aí se caminha), apenas o pensarei se a exigência de carácter não me impuser outra saída, como já me impôs.

Se quiser conferir aquela do obreiro da democracia ("representativa") a direcção já está no meu blogue.

E veja se lê como deve ser, em vez de lançar anátemas do alto do seu púlpito sobre quem não conhece e talvez exija de si mesmo ser eticamente vertical e intransigente.

Cumprimentos

Eduardo Graça disse...

O meu comentário ao post de que resultou esta diatribe não foi mais do que a resultante da surpresa desagradável - para mim -de ter tomado a consciência de que afinal também se dedica à "propaganda política barata". Não me moveu nenhuma intenção malévola nem desconsideração, antes pelo contrário, pois, nos casos dos muitos blogs que leio expressando ideias adversas às minhas, com os quais não simpatizo, não me dou ao trabalho de gastar uma palavra. O testemunho, não sei se entende, mesmo quando assume a forma crítica, é uma forma de manifestação de interesse pela obra. E a liberdade não é mais do que esta capacidade de diologar mesmo quando se não concorda. Quanto às crenças, religiosas ou outras, cada um toma as que quer. Não sei se reparou, entretanto, que assino com o meu nome próprio aquilo que dou à estampa, neste caso, à blogosfera. Ora aí está,a meu ver, uma modesta expressão de ética, intransigência e verticalidade.

Com os cumprimentos

Anónimo disse...

Não, não me dedico a nenhuma actividade política, barata ou cara, muito menos a propaganda, não creio no sistema, apenas exerço o meu direito à indignação, direito que, exercido com lucidez, parece demonstrar-me não saber fazer uso dele.

Gostaria era que me contestasse o acerto do que escrevi sobre o estado deplorável do país, isso, sim. E que me explicasse o bom uso da democracia "representativa" que só representa a alta finança por intermédio dos seus servidores, vindos dessa coisa maquiavélica chamada bipolarização de dois polos iguais.

Afinal, esse escrito que critiquei era seu, reparei há pouco. Não o felicito por ele. Ressuma o maniqueísmo de que me acusa, é uma manifestação de clubite futebolística, e reagiu com certeza pensando que perfilho as ideia da vanguarda da classe operária e que ando com uma seringa a dar injecções atrás da orelha. Sendo óbvio que não sou de direita, tenho o previlégio de poder seguir em liberdade o meu pensamento, porque não devo fidelidade a ninguém nesse campo senão a mim mesmo.

Quanto ao meu nome, não vejo que falta de ética haverá em não o querer divulgar senão apenas por duas das suas iniciais. Não sou procurado pelo Ministério Público nem pela PJ nem pelo SIS, nunca quiseram nada comigo, e seguindo o IP, de resto, logo saberiam quem eu era. Adopto, aliás, um procedimento comum na blogosfera e não tenho necessidade nenhuma de propagandear o meu nome nem o desejo. O que é outro direito meu. Mesmo assim, se quiser a minha identificação, mando-lha por e-mail (B.I. telemóvel e telefone fixo, o que me parece suficiente para ser localizável).

Eduardo Graça disse...

Seja livre. Indigne-se à vontade. Veja-se como arauto das desgraças da pátria - um entre muitos - assuma as suas iniciais como identificação perante a comunidade e seja feliz. Finito.
Cumprimentos