sexta-feira, julho 15

Claridade dada pelo tempo


Fotografia In “O Coiso”, com a seguinte legenda, onde é identificado Mário-Henrique Leiria e um excerto com a “ficha técnica” de “O Coiso”

1975 – Almoço dos colaboradores de “O Coiso”, algures no Bairro Alto. À esquerda, em 1º plano, o Carlos Barradas, seguido do Mário-Henrique, o Zé Tó, a Mizé, a Mila e eu. À direita, o Rui Lemus, quatro tipos cujo nome me escapa, mas que trabalhavam no República e, lá ao fundo, de bigode, o Belo Marques
.

Em Novembro de 1976, ainda lançámos mais dois números de “O Coiso”, graças ao apoio de uns quantos esquerdistas amigos do Mário-Henrique. Foram dois números completamente malucos.

Transcrevo a ficha técnica:

“O Coiso – órgão oficial das agências funerárias; Director – Carlos Vidigal (quem seria este?); Propriedade: João das Regras; Colaboradores voluntários: bombeiros; Observadores: Júlio Quirino, Carlos Barradas, Cooperativa Buques e Smites (éramos nós), Painted Stones and Company, CIA, NATO, KGB e Pacto de Varsóvia, Afonso Henriques, Pantera Cor-de-Barreto, EFTA e CEE, dois ursos e um cubo, uma raiz quadrada e um integral de Lebesgue, António Crómio, Joaquim Beterraba, Antunes Candelário, Jorge Bisnaga, Vovô Gasosa (o Mário, claro), Álvaro Paz, e um grupo de doentes do Hospital de S. José, serviço 7, cama 2 e um conjunto finito, mensurável de botijas; De Coração: Sir Aiva (este era o Jorge, o namorado da irmã da Mila!… toda a família ajudava…) e Josefa de Óbidos; Desporto: Montenegro; Colaboradores involuntários: os tipos do costume”.


Claridade dada pelo tempo

I

Deixa-me sentar numa nuvem
a mais alta
e dar pontapés na Lua
que era como eu devia ter vivido
a vida toda
dar pontapés
até sentir um tal cansaço nas pernas
que elas pudessem voar
mas não é possível
que tenho tonturas e quando
olho para baixo
vejo sempre planícies muito brancas
intermináveis
povoadas por uma enorme quantidade
de sombras
dá-me um cão ou uma bola
ou qualquer coisa que eu possa olhar
dá-me os teus braços exaustivamente
longos
dá-me o sono que me pediste uma vez
e que transformaste apenas para
teu prazer
nos nossos encontros e nos nossos
dias perdidos e achados logo em
seguida
depois de terem passado
por uma ponte feita por nós dois
em qualquer sítio me serve
encontrar o teu cabelo
em qualquer lugar me bastam
os teus olhos
porque
sentado numa nuvem
na lua
ou em qualquer precipício
eu sei
que as minhas pernas
feitas pássaros
voam para ti
e as tonturas que a planície me dá
são feitas por nós
de propósito
para irritar aqueles que não sabem
subir e descer as montanhas geladas
são feitas por nós
para nunca nos esquecermos
da beleza dum corpo
cintilando fulgurantemente
para nunca nos esquecermos
do abraço que nos foi dado
por um braço desconhecido
nós sabemos
tu e eu
que depois de tudo
apenas existem os nossos corpos
rutilantes
até se perderem no
limite do olhar
dá-me um cigarro
mesmo que seja só um
já me basta
desde que seja dado por ti
mas não me leves
não me tires
as tonturas que eu teria
que eu terei
sempre que penso cá de cima
duma altura vertiginosa
onde a própria águia
nada mais é que um minúsculo
objecto perdido
onde a nuvem
mais alta de todas
se agasalha como um cão de caça
leva-me a recordação
apenas a recordação
da vida martelada
que em mim tem ficado
como herança dada há mil e
duzentos anos

deixa que eu fique
muito afastado
silencioso
e único
no alto daquela nuvem
que escolhi
ainda antes de existir

II

Deixa que eu quebre tudo que tenho e que terei
tudo o que é de todos e que só a mim pertence
deixa-me quebrar o cavalo que me deste
na noite do nosso primeiro encontro
deixa-me partir a bola o cão o espaço
deixa-me quebrar a minha casa e a minha cama
a minha única cama
não quero que me contem a aventura
nem que me dêem almofadas
não quero que me ofereçam sombras
só por mim construídas e logo abandonadas
nem sequer esquinas de ruas
não quero a vida
sei claramente que a não quero
a não ser que ela esteja partida quebrada
quebrada por mim e por ti
e a minha infância
essa dou-ta
inteira muito longa e cruel
deixa que dela me fique apenas
essa crueldade
e que nela só eu siga
ignorando o que me deste
e que
martelo ou pedra
eu continue partindo quebrando
esfacelando dilacerando
o teu corpo que já não está ao meu alcance
deixa-me ser anatomicamente autêntico
sem erro
sangrando
perdido para sempre

III

Viver com a crueldade
da criança que
tira os olhos ao pássaro
.
um desconhecido
movendo-se constantemente
no deserto
em que cada pegada deixa
bem marcada na areia
a imagem
dessa outra existência
em que a morte e a memória
ainda nada significam

mais alto

muito mais alto talvez
que a claridade
do voo das aves que
partem para o desconhecido

o próprio corpo nada mais é
do que a sombra
bem simples por sinal
em que,
por erro nosso ou dos outros,
já não existe
a persistência do que
foi perdido

e as mãos
as mãos que sentimos
bem presas seguras aptas
essas
todos sabemos
que podem ainda cada vez mais
esmagar com cuidado
com extremo cuidado
dilacerar suavemente

nos olhos
está o amor

IV

Simples como é
a claridade é a coisa
mais difícil de encontrar
talvez porque a distância que nos
separa longa muito longa
e nítida
seja a torre de chumbo do nosso
próprio isolamento
talvez porque sentir
o aparecimento da madrugada
seja a origem do desespero
sombra trópico lâmina
entre nós dois

ouve o que te digo
não esqueças os meus lábios
mesmo quando desfeitos
e a claridade
essa não a procures não nunca
deixa-a ir comigo
até ao esgotamento do meu sangue
até ao limite
do meu corpo em carne viva

V

Eu sei
que há um lugar por descobrir
um lugar tenebroso e cantante
como uma ponte de velhos manequins


o teu corpo
dois seios despedaçados
e o vento só o vento
soprado através
dos teus cabelos

(In Surreal Abjeccion(ismo)

MÁRIO-HENRIQUE LEIRIA

O Surrealismo na Poesia Portuguesa
organização, prefácio e notas
Natália Correia
2ª edição
frenesi
2002

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