sábado, novembro 26

GIL VICENTE

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Gil Vicente já foi (e é) uma paixão minha. Imaginem só! Pela mão do Dr. Emílio Campos Coroa participei como actor (e “faz tudo”), ainda no final do liceu, em muitas representações de peças de Mestre Gil.

Isto é um tema de cultura um pouquinho pesado assim do género daquela do Dr. Soares ter dito que era de toda a conveniência que o Presidente da República conhecesse os “Lusíadas”.

Todos aqueles que choramingam sobre o leite derramado da nossa falta de competitividade se fartaram de zurzir, mesmo através do silêncio, nas palavras de Soares. Se alguém se lembrasse de Gil Vicente cairia o Carmo e a Trindade. Já o disse, e repito, que é uma vergonha nacional não haver um teatro nacional (talvez o “Teatro Nacional”, que anda a fazer?...) que mantenha em cena, de forma permanente e continuada, o vasto e rico reportório de Gil Vicente.

Pensei fazer isso no INATEL mas não me deram tempo. Fiz até um esboço de projecto, que ficou no meu exclusivo conhecimento, acerca desse e de outros dois projectos que muito me entusiasmavam. Mas, bem vistas as coisas, à distância, como diria o povo, eram “pérolas a porcos”.

Pois hoje fui comprar os “Autos das Barcas!” O meu filho precisa de estudar o “Auto da Barca do Inferno”. Faz parte integrante do programa de português do 9º ano. E muito bem, acrescento eu.

Representei vezes sem conta, pelo “Círculo Cultural do Algarve”, “Os Autos das Barcas” que são três: “Auto da Barca do Inferno”, “Auto da Barca do Purgatório” e “Auto da Barca da Glória”. Desempenhava 3 personagens, um em cada uma das barcas, o que me dava uma trabalheira dos diabos, com a particularidade de nunca as cabeleiras me caberem na cabeça… Ficavam apertadas e faziam-me sentir desconfortável. Só aí descobri que tenho um perímetro de cabeça descomunal, mas o espectáculo tinha de continuar!

Pois fui ler, hoje, as “falas” em cada um dos meus personagens tendo em vista verificar quais os excertos que resistiram à usura do tempo e ainda se mantêm reconhecíveis por mim próprio na relação com a memória de um passado longínquo.

Na “Barca do Inferno” fazia de “Procurador”. Entrava carregado de livros e, deparando-se com o “Corregedor”, iniciava este diálogo, aliás muito actual …:

Corregedor: Ó senhor procurador!

Procurador: Beijo-vo-las mãos, Juiz!
Que diz este arrais? Que diz?

Diabo: Que sereis bom remador.
Entrai, bacharel doutor,
e ireis dando à bomba.

Procurador: E este barqueiro zomba?
Jogatais de zombador?
Essa gente que aí está,
para onde a levais?

Diabo: Para as penas infernais.

Procurador: Disse! Não vou eu para lá!
Outro navio está cá
muito melhor assombrado.

Diabo: Ora estais bem aviado!
Entrai, muitieramá!
(…)

(O Procurador foi parar ao Inferno …)


Na “Barca do Purgatório” fazia de Taful (Jogador), última personagem desta “Barca”, com diálogos muito mais interessantes dos quais alguns fragmentos me ficaram profundamente gravados na memória.

A cena inicia-se com a entrada do Taful.

Diabo: Ó meu sócio e meu amigo,
meu bem e meu cabedal!
Vós, irmão, ireis comigo,
que não temeste o perigo
da viagem infernal!

Taful: Eis aqui flux de um metal.

Diabo: Pois sabe que eu te ganhei.

Taful: Mostra se tens jogo tal.

Diabo: Baralha o jogo e partamos.

Taful: Paga, que eu não jogo em vão …
(…)


Na “Barca da Glória” desempenhava o papel de “Cardeal”, penúltimo a entrar em cena, trazido pela “Morte” e recordo uma “fala” extraordinária, demonstrativa do génio de Gil Vicente, em resposta à determinação do “Diabo” que se lhe dirige nestes termos:

Diabo: (…) E não quero declarar
mais coisas para dizer.
Determinai de embarcar,
e logo, sem dilatar,
que não tendes que arguir.
Sois perdido!
Ouvis aquel´ grão ruído
lá no lago dos leões?
Apurai bem o ouvido:
vós sereis ali comido
Pelos cães, pelos dragões.

Lição

Cardeal: Todo o homem que é nascido
de mulher tem breve a vida,
que quasi flos é saído,
e prestes logo abatido,
e sua alma perseguida.
E não pensamos,
quando na vida gozamos,
como dela nos partimos,
e como sombras passamos,
e com dores acabamos,
pois em dores já nascemos!
(…)

Texto reproduzido da 7ª edição de bolso da “Europa-América”, de “Os Autos das Barcas”, da responsabilidade de J. Tomaz Ferreira.

(Será um prazer representar, a sós, com o meu filho o “Auto da Barca do Inferno” – ele fará de “Diabo” e eu todas as restantes personagens.)

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