sexta-feira, fevereiro 20

Cadernos de Camus - 9



Esta é a última parte dos meus sublinhados da leitura de juventude dos Cadernos de Camus. Esta leitura foi iniciada, certamente, antes de Abril de 1968, tinha eu a idade de 20 anos.

Os sublinhados que se apresentaram, com pequenas alterações de pormenor e raras supressões, foram assinalados nos livros, de forma "assassina", a esferográfica. Os livros, no entanto, sobreviveram e, recentemente, foram restaurados e encadernados a capa dura. Estão em condições de serem legados ao meu filho pois tenho a ambição de que um dia os venha a ler.

Com esta nona parte, segundo a minha nemeração, chega ao fim a estimulante tarefa que me foi suscitada pela ideia do José Pacheco Pereira. Mas devo confessar que um projecto semelhante a este, antes do surgimento dos Blogs, já me tinha, por diversas vezes, assaltado a imaginação. Esta minha participação suscitou, para minha surpresa, uma mal disfarçada "azia" em algumas pessoas que devem viver ainda no tempo da "noite fascista" e persistem em separar os campos políticos e ideológicos com base em preconceitos e mal ultrapassadas relações com os respectivos pais. Há gente adulta e com responsabilidades na vida pública pública portuguesa que ainda não saíu das "cavernas" e suspeito que delas não sairá jamais. Paz à sua alma!

Esta é uma daquelas tarefa que me deu prazer autêntico, quer pelo facto de poder partilhar uma leitura de toda a vida, quer por me ter sentido, não raras vezes, surpreendido pela actualidade das referências contidas nos excertos que reli. Continuo a sentir hoje a mesma adesão de fundo à filosofia de vida e de sociedade que, no essencial, Camus defende e que, de forma peculiar, foi explicitada nos Cadernos.

Além do mais devo confessar que este é, desde a minha juventude, um "livro de cabeceira" que, naturalmente, não li todos os dias mas que sempre esteve presente na minha vida mesmo quando os impulsos de uma desinteressada militância cívica e política exigiram, e continuam a exigir, a tomada de opções difíceis ou mesmo dolorosas.

Não sei ao certo qual o caminho que este projecto tomará mas, a partir de um dado momento, as participações numa empresa séria desta natureza carecem de ser enquadradas por uma metodologia e por objectivos precisos sem os quais cada um de nós se sentirá decerto constrangido. Estou disponível para aprofundar a minha participação.

Eis os meus últimos sublinhados do caderno nº 6 nos quais se inclui aquele que sempre me tem acompanhado e que constitui, para mim, um lema de vida: "os deveres da amizade ajudam a suportar os prazeres da sociedade":

"Não se deve julgar um homem nem pelo que diz, nem pelo que escreve, segundo Beyle. Eu acrescento: nem pelo que faz."
(Camus deve referir-se a Marie Henri Beyle, ou seja, STANDHAL)

"Começa-se por não amar ninguém. Depois amam-se todos os homens em geral. A seguir apenas alguns, depois uma única e depois o único."

""Alexandre Block.
...
Só uma compaixão total pode produzir uma mudança. Reajo assim porque a minha consciência não está tranquila.""
(Escrevi dois pontos de interrogação)

"É pela recusa de uma parte deste mundo que este mundo é habitável? Contra o amor fati. O homem é o único animal que recusa ser o que é."

"Os deveres da amizade ajudam a suportar os prazeres da sociedade".

"Num mundo que já não crê no pecado, é o artista que está encarregado da pregação. Mas se as palavras do padre produziam efeito era porque o exemplo as alimentava. O artista esforça-se por se tornar num exemplo. Eis porque o fuzilam ou o deportam, com grande escândalo seu. E depois a virtude não se aprende tão depressa como o manejo da metralhadora. O combate é desigual."

"Enquanto o homem não domina o desejo, nada dominou. E não o domina quase nunca."

"Ensaio. Introdução. Porquê recusar a delação, a polícia, etc. .. se não somos nem cristãos nem marxistas. Não temos valores para isso. Enquanto não tivermos encontrado fundamento para esses valores, estamos condenados a escolher o bem (quando o escolhemos) de maneira injustificável. A virtude será sempre ilegítima até esse momento."

""A revolução de 1905 principiou pela greve de uma tipografia moscovita cujos operários pediam que os pontos e as vírgulas fossem contados como caracteres na avaliação "por peça".
O Soviete de Saint-Peterburgo em 1905 apela para a greve aos gritos de abaixo a pena de morte.""

""Durante a Comuna de Moscovo, na Praça Trubnaia, perante um edifício destruído pelos canhões, um prato contendo um pedaço de carne humana é exposto com um cartaz com a seguinte inscrição: "dai o vosso óbolo para as vítimas.""

Extractos, in "Cadernos" (1964-Editions Gallimard), tradução de António Ramos Rosa, Colecção Miniatura das Edições "Livros do Brasil", Caderno nº6 (Abril de 1948/ Março de 1951).








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