segunda-feira, outubro 4

"No meu bairro já está tudo normal

“Voltou a calma ao meu bairro. Depois de quinze dias em que pensámos que estávamos todos ricos, eis que o ministro das Finanças nos tira com uma declaração aquilo que nos tinha dado com uma afirmação. Explico-me.

Lembram-se certamente de o ministro das Finanças ter ido à RTP, há quinze dias, dizer à Judite de Sousa que ia acabar com os benefícios fiscais dos PPR, PPR-E, PPA e Contas Poupança-Habitação, já que, segundo afirmou, quem investia em tais produtos eram os contribuintes 30% mais ricos de Portugal (ele só falou dos que pagam impostos; os outros ricos, ao que deduzimos, ou não pagam impostos ou não investem nestes produtos). E eram assim esses ricos que, capciosamente, se aproveitavam de tais benefícios para pagar menos impostos, ao contrário dos outros contribuintes pobres que, por não investirem em tais produtos, nada podiam deduzir à colecta. O ministro anunciou então o que faria Robin dos Bosques: tirar aos ricos para descer o IRS dos mais pobres. O país estremeceu de reconhecimento emocionado: finalmente, a justiça social pela mão de Bagão!


Pois bem: eu sabia que lá no meu bairro o sr. Joaquim da mercearia tinha feito um PPR para a mãe que está velhota. O sr. João da padaria investiu num PPR-E para quando o miúdo, que ia bem nos estudos, quisesse tirar um MBA. A sra. Ana da farmácia andava a juntar uns trocos numa Conta Poupança-Habitação para comprar uma casita. E o sr. José de uma agência imobiliária apostou num Plano Poupança Acções, depois de ter ouvido o dr. Catroga dizer em 1995 que isso ia ser muito bom para quem aí investisse, além do que servia para animar o mercado de capitais.


Ora assim que ouviram o ministro dizer que estavam entre os 30% dos mais ricos de Portugal (os que pagam impostos, insisto), os meus vizinhos entraram numa euforia, porque não é qualquer um que trata os Belmiro, os Jardins Gonçalves, os Américos Amorins e outros ricos deste país tu cá, tu lá como nós lá no bairro. E assim o Joaquim deixou de trabalhar, pensando na herança que ia receber, o filho do João deixou de estudar porque o pai tinha ficado rico, a Ana não pôs mais os pés na farmácia e o José está à espera que lhe cheguem a casa as grandes mais-valias que fez através do Plano Poupança Acções.


Estava assim o meu bairro em grande festança quando vários jornais resolvem colocar cá fora a declaração de rendimentos do ministro das Finanças. Ora ele é homem sério, competente, trabalhador, bom chefe de família, até porque é um furioso entusiasta do Benfica, mas não tem cara de ser rico. Tem, aliás, o mesmo carro desde 1994 e não é grande coisa a viatura. Ora se ele não é um rico, nós devemos ter muito mais dinheiro que ele.

Mas vai-se a ver a declaração de rendimentos do nosso ministro e a nossa surpresa foi total, seguindo-se uma profunda tristeza. Para já, se não é rico, como é que ele investe nestes produtos? Só os 30% dos ricos é que o fazem. Depois deste facto perturbador, outro se seguiu. O ministro não só investe, como investe bastante. A saber: tem uma carteira de aplicações de 655 mil euros, dos quais quase 74 mil em PPR, quase 24 mil em PPA e depois ainda uma modesta aplicação de 7.200 euros numa conta poupança-habitação, num total que se aproxima dos 105 mil euros. Aliás, o ministro não fez outra coisa se não aumentar as suas aplicações nestes produtos nos últimos três anos, que passaram de 81 mil euros em 2002 para 91 mil em 2003 e 104 mil em 2004.

Bom, eu queria que vissem a cara do Joaquim, do João, da Ana e do José quando ouviram isto. É que aquilo que o ministro tem em aplicações financeiras é bem mais do que qualquer um deles ganha por ano, na casa das cinco vezes mais.

E pronto, durante quinze dias fomos ricos, mas já deixámos de ser. Mas como em todas as coisas, há que tirar os pequenos lucros das grandes perdas. O Joaquim abriu de novo a mercearia, o filho do João voltou a estudar, a Ana regressou à farmácia e o José está de novo a mostrar casas na imobiliária onde trabalha. O bairro voltou à normalidade e estamos todos muito mais contentes. É claro que deixámos de nos dar com o Belmiro, o Jardim Gonçalves e o Américo Amorim. Mas também é verdade que eles não passavam lá muito pelo meu bairro. E quem é que se quer dar com pessoas que não investem em PPR?”

4 de Outubro de 2004

Nicolau Santos, in Expresso on line




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