segunda-feira, outubro 4

O "shifter" como utopia

Recebe uma carta longínqua de um amigo: “Segunda-feira. Regresso amanhã. João-Luís.”

Tal como Jourdain e a sua prosa célere (cena de resto bastante poujadista), maravilha-se ao descobrir num enunciado tão simples como este o rasto dos operadores duplos, analisados por Jakobson. Porque, se o João Luís sabe perfeitamente quem é e em que dia está a escrever, a mensagem dele que até mim chega é perfeitamente incerta: qual segunda-feira? qual João Luís? Como hei-de sabê-lo, eu que do meu ponto de vista tenho que escolher instantaneamente entre vários João Luís e entre várias segundas-feiras? Embora codificado o “shifter”, para só falar do mais comum desses operadores, surge assim como um meio manhoso – fornecido pela própria língua – de romper a comunicação: eu falo (apreciem o meu domínio do código), mas envolvo-me na bruma duma situação enunciadora que é desconhecida para os outros; estabeleço no meu discurso fugas de interlocução (não será afinal isso que sempre acontece quando usamos o “shifter” por excelência, o pronome “eu”?).
(…)

Será possível imaginarmos a liberdade – e, se assim se pode dizer, a fluidez amorosa – duma colectividade que só falasse usando primeiros nomes e “shifters”, em que cada pessoa não dissesse senão eu, amanhã, lá …”

Nesta página escrevi a seguinte nota: “a viagem é uma tradição a recuperar com ou sem grupo”.

"Roland Barthes por Roland Barthes" - 41
(Fragmento 1 de 1, pag. 17)

Edição portuguesa: "Edições 70"

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